Street Art, Sweet Art.*
Por Pedro Bandeira
Há dois teóricos que reivindicam para si o mérito da atenção dedicada à relação entre a criatividade e a cidade — o primeiro é Charles Landry, o segundo é Richard Florida. Landry reclama ser o inventor do conceito Creative City uma epifania que teve no final da década de 80 e que, segundo o próprio, concentra-se “no modo como as cidades podem criar condições que permitam às pessoas e às organizações pensar, planear e agir com imaginação resolvendo problemas e desenvolvendo oportunidades”. Podemos ler no seu website que o seu livro Creative City “é agora um clássico que foi reeditado muitas vezes. É um livro ambicioso e um toque de clarim para a acção imaginativa na execução de vida urbana, que procura inspirar as pessoas a pensar, planear e agir criativamente na cidade, é uma fábrica de ideias que transforma inovações urbanas em realidade. O seu objectivo é fazer com que os leitores sintam: 'que eu também posso fazer isso'”. Implícita fica a presunção ou ignorância de se achar que, antes de se ler Creative City, as cidades não eram criativas nem tinham imaginação na resolução dos seus problemas.
Quanto a Richard Florida, considerado pelo MIT em 2013 a pessoa mais influente do mundo na área do pensamento, ele começa por esclarecer no seu livro The Rise of the Creative Class, que 30% da classe trabalhadora americana se considera criativa (38 milhões de pessoas), quer isto dizer, segundo Florida, que os membros da classe criativa têm: a) um trabalho independente; b) um horário livre; c) e não usam gravata. Coisa que facilmente se confunde, pelo menos em Portugal, com a definição de trabalho precário.
A empresa de consultadoria Richard Florida, a Creative Class Group (sob o slogan: “data-driven ideas to reach the Creative Class”), tem como clientes o Google, BMW, IBM, Microsoft, Goldman Sachs, o Financial Times, o New York Times, a BBC, o grupo Le Meridien Hotels, o Cirque du Soleil, a Arte Basel, as grande universidade americanas (Princeton, MIT, Harvard…), entre outros. Não se percebe exactamente o que faz Richard Florida enquanto “world’s leading urbanist” para lá de ter sido citado 46.057 vezes (conforme consta do seu CV) — 46.058 vezes agora… Talvez seja melhor tentar perceber o que dizem os clientes sobre a Creative Class Group de Richard Florida.
Diz Alexandre Alle do Cirque du Soleil: “O índice Criatividade (elaborado pela Creative Class Group) parece ser uma das melhores métricas para entender o desempenho de vendas no Cirque du Soleil. A correlação é forte, e por isso vamos agora usar essa métrica para antecipar uma melhor previsão no desempenho de vendas”.
Como cliente de Richard Florida aparece também a ONU. No seu site não é explicada a relação mas sabemos que a UNESCO, a agência da ONU para as questões da cultura, criou em 2014 a Rede de Cidades Criativas (UCCN) que “visa reforçar a cooperação com e entre as cidades que reconheceram a criatividade como factor estratégico de desenvolvimento sustentável no que se refere a aspectos económicos, sociais, culturais e ambientais” ou seja, quase tudo, o que quer dizer praticamente nada. Um dos objectivos defendidos pela Rede de Cidades Criativas da UNESCO é: “melhorar o acesso e a participação na vida cultural, bem como o gozo dos bens e serviços culturais, nomeadamente, aos grupos e indivíduos marginalizados ou vulneráveis”.
Em Portugal fazem parte desta rede de cidades criativas Idanha-a-Nova e Óbidos. A entrada de Idanha-a-Nova nesta rede “prestigiante” é, segundo o presidente da Câmara Municipal, Armindo Jacinto, o reconhecimento do investimento que se tem feito no sector cultural e, sobretudo, a ambição de, através da cultura e das indústrias criativas, promover o desenvolvimento social, económico e cultural sustentado do concelho. A chancela da UNESCO “demonstra ainda que Idanha-a-Nova e os territórios do mundo rural são espaços de oportunidade e criatividade, capazes de concretizar projetos de afirmação no contexto da Europa e do Mundo”, refere também o autarca.
A candidatura foi realizada pela Câmara de Idanha-a-Nova, preparada em colaboração com a consultora IPI Consulting Network e diversos stakeholders locais, nacionais e internacionais, contando com o apoio da comunidade idanhense, que tem no adufe, símbolo maior da riqueza e da tradição musical do concelho, o “porta-voz” do projeto. Talvez interesse esclarecer que o adufe é um pandeiro membranofone quadrangular.
Mas há também em Idanha-a-Nova o Boom Festival (que tive oportunidade de frequentar no tempo ainda da “floresta mágica da Marateca”). A criatividade deste festival começa logo pelo número de bilhetes disponíveis: 33.333, que são vendidos faseadamente entre os 130 e 180 euros cada. Uma receita de cerca de 5 milhões de euros. Os organizadores começam por justificar o preço dos bilhetes da seguinte maneira (traduzido do inglês no website):
“Vivemos em um momento da nossa história colectiva onde os direitos e deveres são esquecidos por causa do progresso humano objectivamente materialista, a fragmentação das classes sociais entre aqueles que têm e aqueles que não têm (o absolutismo financeiro), e a exortação do ego, através da armadilha de redes sociais que levam ao novo-narcisismo”.
Depois, sobre a má-consciência do preço de bilhetes que praticam acrescentam:
“Em termos económicos, o crescimento deve ser um festival sustentável. É um evento independente, sem patrocinadores e com sede em Portugal, o que significa que têm de lidar com impostos muito elevados. 13% de cada bilhete vai directamente para o Estado Português. Em bares e restaurantes a receita tributada é de 23%; um bilhete de autocarro para o Boom tem o imposto de 6%. No final do ano, se houver lucro, o Estado recebe 23,5%. Um outro imposto fiscal obrigatório é que 1% do total da receita vai directamente para o Estado. Numa base mensal, por trabalhador a longo prazo, o Boom tem de pagar 24,75% do salário para o Estado e 5% para freelancers”.
Divididos entre a crítica social de esquerda e a denúncia de pagamentos às finanças e segurança social típicas da direita, os organizadores do Boom assumem uma espécie de liberalismo hippie desmascarando-se o sentido económico da “sustentabilidade” e do “empreendedorismo”.
Sobre a integração de Óbidos na Rede de Cidades Criativas da UNESCO, poderia mencionar a “Feira Medieval”, o “Festival do Chocolate”, o “Hotel dos Livros”; mas prefiro falar da criatividade do Bom Sucesso Design Resort, Leisure & Golf . Para descrever este resort criativo projectado pelos melhores arquitetos portuguese vou citar uma notícia do jornal Público de 29-09-2014:
“Ancorado num campo de golfe e alavancado por um hotel de cinco estrelas (que não chegou a ser construído), o resort do Bom Sucesso apresentava um conceito pioneiro, assente no design. (…) A dimensão internacional do projecto surpreendeu os próprios promotores. Mais de 70% das compras de casas foram feitas no estrangeiro, sobretudo por ingleses, irlandeses e espanhóis. As casas valiam entre 300 mil até perto de 1 milhão de euros. Ricardo Salgado tem lá uma. José Mourinho também ali comprou uma residência. (…) A maioria dos compradores, porém, raramente lá residem. Naquilo que pode ser classificado como o ‘time sharing dos ricos’, os investidores adquirem a residência, podem usá-la durante um mês e deixam que o próprio resort a alugue durante o resto do ano” (…).
“Considerado um dos melhores empreendimentos turísticos da Europa, o Bom Sucesso Design Resort, Leisure & Golf está na falência. Proprietários tentam agora salvar o campo de golfe (…) por uma questão de imagem”.
Do investimento de 27 milhões no inacabado hotel Hilton, projectado por Eduardo Souto de Moura, 13,6 milhões foram fundos comunitários, dinheiro nosso, portanto (mas na realidade falamos de trocos quando comparado, por exemplo, com a dívida de 1,2 mil milhões de euros da insolvência do Grupo de Hotéis de Carlos Saraiva). A primeira conclusão a que se chega é a de que a grande indústria criativa que transforma o nosso território e as nossas cidades é a banca, com os seus promotores imobiliários e toda a cumplicidade política. A segunda conclusão é que o problema é transversal e actua a diferentes escalas, da “criatividade”, da “sustentabilidade” e do “empreendedorismo”. E todos aprendemos com Landry ou Florida a gostar de “design” do mesmo modo como gostamos de “livros decorativos”.
Comecei por pensar este texto sobre a “criatividade urbana” pensando na arte de pintar paredes — a street art. Temos de reconhecer que da marginalidade à institucionalização e mercantilização do graffiti como arte urbana ainda passaram uns anos, não havendo nada de verdadeiramente excepcional neste processo de valorização artística. Era previsível, foi sempre assim a história da arte: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Embora prefira, pessoalmente, o jogo do gato e do rato assumido entre aqueles que se afirmam como “autoridade” e aqueles que se afirmam como “marginais”. Penso ser bastante mais constrangedor ter uma Câmara Municipal a organizar um concurso de graffitis como aquele que ocorreu para a fachada do Teatro Carlos Alberto, no Porto e absolutamente desnecessário. O resultado final, é necessariamente doce, sem a radicalidade que ainda recordo em dois escritos do início dos anos 90 no Porto: o primeiro pintado na fachada da morgue, ao lado do Instituto Abel Salazar dizia: “cortam em pedaços os cadáveres dos nossos entes-queridos, são predadores dos nossos sentimentos”; o segundo, pintado no passeio da Foz, onde as famílias se passeiam aos domingos, dizia simplesmente: “come a tua mãe”.
Quero apenas defender que a arte quando deixa de transgredir, quando se acomoda, perde o seu mais puro significado que é de nos fazer questionar, inquietar. Também por isso não possa deixar de lembrar a coragem do artista de rua italiano Blu, que em protesto contra a exposição “Street art: Banksy & co” organizada pela fundação de um banco (lá estão os criativos do Richard Florida!) decidiu apagar as suas próprias obras das paredes de Bolonha, chamando a atenção para a descontextualização de uma arte que se quer pública (pode também ter sido uma bela manobra de marketing, mas não sejamos assim tão cínicos).
Com toda a afetividade inerente a uma arte pública, poderemos dizer que para lá do vandalismo e do espectáculo (no sentido situacionista do termo) resta muito pouca criatividade e ainda menos arte. Em síntese, não penso que falar de “criatividade urbana” legitime o que quer que seja, nem acredito numa colectivização da criatividade aprendida em manuais. Acredito nos artistas individualmente e na sua criatividade pessoal.
Termino citando um artigo intitulado “Criatividade; Antiguidade e Contemporaneidade” de Teresa Lousa e Isabel Lopes (FBAUL): “Aristóteles defende que a inspiração que leva à criatividade, tem origem num tipo de temperamento, melancólico, que o predispõe naturalmente à criatividade ou seja numa propensão natural do indivíduo que tem origem no próprio artista, dando-nos uma explicação naturalista que se opõe à posição platónica, que faz depender as causas da criatividade, de agentes externos ao artista, a saber, a possessão divina, concedendo ao artista o papel de intérprete dos deuses, e não de criador autónomo”. Charles Landry e Richard Florida são os novos deuses desta ilusão platónica. Desta nova forma de espectáculo patrocinada por bancos e banqueiros.
A cidade, em particular a cidade europeia, continuará o seu processo de taxidermia (do grego “dar forma à pele”; a arte de montar corpos para exibição). A “street art” actua nessa mesma superfície da cidade sem vísceras, cada vez mais regulamentada, previsível, sem espaço para experimentação. Os artistas deixaram de ser marginais para fazer parte desse espetáculo de superfície. A street art tornou-se apenas a sweet art.
Nos bastidores deste espectáculo actuam aqueles que sempre tiveram o poder. ◊