Ivrea e Olivetti
Arquitectura de um Património Mundial da Unesco
Por João Rocha*
Quando Le Corbusier visitou a cidade de Ivrea em Itália pela segunda vez, em 1936, comentou que a avenida Guglielmo Jervis, via estruturante da cidade, era la strada più bella del mondo. O plano Director da autoria dos arquitectos Luigi Fini e Gino Pollini, acabara de ser publicado na revista Casabella, e Le Corbusier em contacto com Adriano Olivetti, não deixou de expressar o arrojo e visão do desenho e da arquitectura propostas para a nova cidade industrial Olivetti.
© cortesia Associazione Archivio Storico Olivetti
© João Rocha
Foi esta visão de conjunto urbano, da relação de um núcleo industrial na periferia de um centro histórico, na correlação com o meio ambiente e com a vida social e cultural da própria cidade, e a integridade e autenticidade do seu corpus arquitectónico industrial, que levou a Comissão da Unesco, tendo por base um relatório do ICOMOS, a nomear em Julho de 2018, a cidade de Ivrea como Património da Humanidade: "cidade industrial ideal do século XX". Este reconhecimento é singular e permite pela primeira vez, que uma cidade industrial seja colocada no mesmo nível de "interesse histórico, cultural e estético" e com o mesmo grau de proteção, que um monumento ou cidade do séc XV ou XVI, o que levanta uma série de novas questões sobre o usufruto de uma (ideia) de patrimonialização.
Ivrea está situada no Vale D´Aosta, a 50km Este de Torino, e recebe o rio Dora Baltea que divide a organização urbana histórica, com o seu teatro romano e catedral barroca, do núcleo industrial da Olivetti, conhecido fabricante de máquinas de escrever, calculadoras mecânicas, computadores que teve a sua fundação em 1908 com a primeira fábrica construída por Camillo Olivetti no início da avenida Guglielmo Jervis.
A cidade industrial de Ivrea representa um exemplo significativo das teorias de desenvolvimento urbano e de arquitectura do século XX, e exemplifica uma resposta à transformação industrial, com uma preocupação social humanista, incluindo também a transição de uma indústria mecânica para uma indústria electrónica. É a ideia de uma civitas hominum, que Adriano Olivetti, um dos cinco filhos de Camillo Olivetti e engenheiro pelo Politécnico de Torino, começa a delinear nos anos 30 após suceder ao seu pai na liderança da companhia. Giulio Carlo Argan já identificara Ivrea como reflexo intelectual de Adriano Olivetti onde a ideia de “cultura” surge organicamente inserida dentro de um grande ciclo de actividade produtiva conferindo-lhe um lugar que em Itália não havia surgido ainda. Esta ideia de cultura contribuíra igualmente para dar aos intelectuais italianos uma clara consciência da necessidade e alcance do seu trabalho. É neste binómio entre cultura e produção industrial que reside o segredo da Olivetti e de toda a sua estrutura organizativa e planeamento urbano.
Trata-se de um desenvolvimento urbanístico que teve lugar de um modo ininterrupto desde 1934 até 1961, à excepção dos anos da Segunda Guerra Mundial. Um longo período conturbado politicamente com a presença do regime fascista, da implantação de leis anti-raciais, e da própria história da arquitectura italiana. Por si só, esta estratégia de expandir as infraestruturas fabris da Olivetti e dos edifícios adjacentes, no contínuo do plano Director como se de um campus universitário se tratasse, confere desde logo a Adriano Olivetti uma visão que incluiu projectos de arquitectura e design de: Luigi Figini, Gino Pollini, Eduardo Vittoria, Costantino Nivola, Giovanni Pintori, Marcello Nizzoli, Ignazio Gardella, Roberto Gabetti, Aimaro D´Isola, Ettore Sottsass, Mario Belinni, Carlo Scarpa, Le Corbusier, Louis Khan.
Adriano Olivetti desempenhou um papel em todas as áreas da vida social da cidade: o planeamento territorial, a organização urbana, a preocupação com o meio ambiente, a promoção de actividades culturais e serviços sociais, mantendo um estreito diálogo com instituições, políticas e cidadãos. No centro residia uma visão para a promoção do talento e da dignidade humana, como fomento ao crescimento económico e de uma estratégia de gestão global em que a Olivetti foi pioneira. Reflexo de uma educação erudita também na interpretação do que significava à época o Grand Tour americano, meta cada vez mais habitual para empresários italianos. Em meados do séc XX, Alberto Pirelli, Giovani Agnelli, Agostino Rocca, Gaetano Marzotto e notoriamente Adriano Olivetti, destacaram-se entre os empresários que viajaram à América de Henry Ford e de Scott Fitzgerald. Quando Adriano Olivetti chega a Nova Iorque em Agosto de 1925 depara-se com o “novo mundo” mas não se deslumbra. Durante seis meses de viagem visitou as principais indústrias americanas em seis diferentes estados, pensando sempre em como adaptar a realidade industrial e organizativa americana para o projecto de Ivrea. Não é de estranhar que no pós-guerra, Olivetti seja precursora na criação de centros de pesquisa e inovação, de equipes multidisciplinares de arquitectos, designers, cientistas e engenheiros para o desenvolvimento de novos produtos seguindo uma filosofia de negócios inovadora, da aplicação de princípios estéticos às práticas industriais. Esta cultura veio facilitar a inserção de arquitectos nos vários domínios criativos da Olivetti nomeadamente nos projectos dos 27 edifícios que se distribuem ao longo da avenida Guglielmo Jervis e áreas adjacentes, que foram construídos entre as décadas de 1930 e 1960.
© João Rocha
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A primeira ampliação do núcleo original (mattoni rossi) é reconhecível nas Oficinas da ICO (acrónimo para engenheiro Camillo Olivetti) caracterizando uma das perspectivas urbanas industriais mais conhecidas na Europa do século XX e são o exlibris de Ivrea. Estes primeiros volumes de cerca 300m paralelos à avenida Guglielmo Jervis foram construídos entre 1934 e 1936 sobre o projecto de Luigi Figini (1903-1984) e Gino Pollini (1903-1991) que na altura participavam em activos debates sobre os princípios da arquitectura racionalista. A ampliação é caracterizada pela construção de uma passarela de vigas em betão armado reconhecível atrás de uma parede de vidro. Uma intervenção claramente identificada com a arquitectura racionalista alemã dos anos 1920, com a fachada de vidro continua em três pisos, embora em Ivrea se tenha optado por uma dupla fachada.
No conjunto agora classificado, sobressai na cota alta da colina Sul, próximo da estação de comboio, o edifício da creche que representa uma visão mais distante do racionalismo italiano para se aproximar ao international style de Richard Neutra. Também da autoria de Figini e Pollini esta obra apresenta uma planta de um só piso em “T” com uma forte geometria permeando a luz e a vista sobre o complexo industrial. Uma década depois em 1953 Ignazio Gardella (1905-1999) projecta a cantina Olivetti na colina oposta, onde a forma hexagonal e materialidade de betão e madeira inserida na paisagem recorda o projecto de Edoardo Gellner para o “villagio Eni”, em Borca di Cadore. A construção da utopia social tomava lugar e textura em ampla escala. Estes dois edifícios de serviços contrastam com a arquitectura industrial mecanicista que as oficinas ICO apresentam nas suas diversas ampliações mas a unidade residencial Oeste projecto de Roberto Gabetti (1925-2000) e Aimaro D´ Isola (1928-) composta por 82 células residenciais dispostas num único espaço em planta semicircular de dois andares ao longo de 300 metros em anfiteatro, constitui um dos primeiros exemplos de land architecture. Um programa habitacional concebido para receber quer funcionários quer visitantes, que originários de vários países da Europa e EUA queriam conhecer o fenómeno Olivetti. É sem dúvida um dos mais emblemáticos e contemporâneos edifícios.
fonte: http://www.hiddenarchitecture.net/2015/07/collective-housing-for-olivettis.html?m=1
fonte: http://www.hiddenarchitecture.net/2015/07/collective-housing-for-olivettis.html?m=1
fonte: http://www.hiddenarchitecture.net/2015/07/collective-housing-for-olivettis.html?m=1
Grande parte da cidade industrial de Olivetti relaciona-se às ideias sociais e políticas de Adriano Olivetti. O Movimento Comunitário foi oficialmente lançado em 1947, após a publicação em 1945 de seu manifesto: A Ordem Política das Comunidades. Este livro analisou as instituições de uma Itália convalescente e abandonou as ideologias de esquerda e direita. Sugeriu fundar a renovação do país em “comunidades”, ou seja, entidades pertencentes a áreas autónomas e unidas por uma cultura coesa. O grande interesse de Adriano Olivetti pela arquitectura e urbanismo levou-o a editar em italiano importantes livros de autores como Lewis Mumford, Erwin Gutkind, Le Corbusier e mesmo de Bruno Zevi. É todo este legado que merece agora a distinção da Unesco.
Ivrea, “cidade industrial do século XX”, significa reconhecer igualmente, a partir de um interesse histórico, estético e cultural, que o contexto social e funcional industrial já não existem, como vestígios de uma civilização que não é mais. O desafio que se coloca é grande até porque a própria história da Olivetti e da sua cidade teve um percurso que não seria o mais previsível após a morte inesperada de Adriano Olivetti em Fevereiro de 1960, quando se deslocava de comboio para a Suíça para um novo encontro com Le Corbusier. Resta o seu legado humanista, eventualmente ainda pouco divulgado, o legado do urbanismo, do design industrial onde a Olivetti ganhou por mais de uma vez o prestigiado prémio, Compasso d’Oro, de um fragmento da história da arquitectura do séc XX que ainda se cristaliza no sopé de um vento branco que corre dos Alpes até aos nossos dias. A distinção da Unesco não trará a vida e a função original à avenida Guglielmo Jervis, onde hoje várias multinacionais ocupam o espaço interior de uma arquitectura que já fora transparente. Talvez possa promover uma reflexão sobre o lugar da arquitectura como elemento de resistência e de resiliência em lugares tão fascinantes e determinantes como os da industria e das periferias urbanas. ◊
rjoao@uevora.pt