A ambiguidade da fotografia de arquitectura enquanto prática artística
Ensaio crítico a partir da exposição Ficção e Fabricação, MAAT (19 Março–19 Agosto 2019)
Por Susana Ventura
A exposição Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitectura após a Revolução Digital, actualmente no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, com a curadoria de Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues, apresenta-nos, sobretudo, a compreensão de um conjunto de obras de fotógrafos e artistas visuais seminais (Jeff Wall, Thomas Demand, Andreas Gursky, Thomas Ruff, Wolfgang Tillmans, James Welling, entre outros) pelo olhar da arquitectura, que exerce, na exposição, um discurso unificador das diferenças entre obras, inquietando-nos, desde o início, a questão preeminente sobre o que é que vemos nas fotografias e o que é que a fotografia nos dá a ver.
Recordo-me de um encontro, há alguns anos, com Thomas Demand, em Tóquio, no hotel Okura, entretanto demolido. Logo no início da nossa conversa, dizia-me: “Quando olhas para uma obra de arte, dá-se um certo tipo de comunicação que eu não tenho de explicar. Por exemplo, se olhas para um Matisse: sobre o que é que é aquele Matisse? Se dizes — bem, é sobre uma mulher num quarto vermelho — falhas tudo sobre o quadro. Podemos falar de arte a partir do que é que está na imagem ou a partir do que se vê em relação a como é que um trabalho é feito… mas isso, também, não te leva a lado algum. Falando sobre o mesmo Matisse, dirias que existe muita tinta vermelha ou muita tinta azul e continuarias sem ir a lado algum. Então, sobre o que é que é? É muito claro que representa algo humano de uma maneira muito original. Se falas em termos de index — como, normalmente, se fala de fotografia — mesmo isso, não te leva lá, porque é do género — tem uma casa, um tractor e parece ser de tarde — isso é o que os críticos gostam de fazer, mas, no fim, o que torna uma obra de arte fantástica é que tu não podes transferi-la para outro sistema de representação sem perdas exorbitantes”. 1
À direita: "The Dentist" de Hannah Starkey, 2002
© Bruno Lopes
Olhar para uma obra de arte ou para uma fotografia e compreendê-la pelo que é, não pode passar por descrições, nem discursos sobre técnicas, nem mesmo índices, que se apoiam na iconografia e no simbolismo. Sobre o que é que é um Demand? Ou um Wall? Ou um Ruff? Se descrevermos as suas fotografias a partir dos edifícios ou das paisagens que vemos, estaremos, certamente, a perder tudo sobre essas fotografias. Entre as várias razões para a criação de uma fotografia, não é a representação tout court de um edifício, ou de um fragmento de uma cidade, que interessa a estes autores, sem que outras ideias, temas e inquietações estejam presentes. Ocasionalmente, alguns deles trabalham (ou trabalharam) com arquitectos, como por exemplo, Thomas Ruff e Jeff Wall com Herzog & De Meuron, Filip Dujardin com De Vylder Vinck Taillieu, Bas Princen com os Office ou com Anne Holtrop, André Cepeda com Nuno Brandão Costa, em que, nestes casos, a obra de arquitectura é o principal tema e objecto primeiro da imagem fotográfica, embora, raramente, possamos considerar que seja uma representação objectiva ou uma fotografia documental 2 (por outro lado, para esta exposição, foram privilegiadas, propositadamente, outras fotografias destes autores 3). As suas obras são, quase sempre, sobre outras coisas (que não nos cabe pensar no presente texto, porque são, extremamente, singulares, vastas e heterogéneas 4), mesmo naquelas em que a arquitectura (referimo-nos a projectos de autor reconhecidos pela história da arquitectura 5) é uma espécie de fio de Ariadne, que, no seu desenovelar, vai revelando os outros enredos da imagem, muitas vezes de carácter cultural, social ou político (questões que, também, deveriam pertencer à disciplina da arquitectura, mas que esta, muitas vezes, ignora e toma como externas ao seu exercício). Contudo, a reunião destas obras numa exposição deste carácter — uma exposição “construída em torno de uma imagem individual e colectiva da arquitectura e da manipulação do objecto arquitectónico” 6 — coloca-nos outros problemas que passam, sem dúvida alguma, a pertencer à disciplina da arquitectura, mesmo se os limites desta, como os próprios curadores invocam, sejam questionados a partir da imagem fotográfica e do sistema de representação desta, que, devido ao progresso tecnológico, sofreram transformações basilares que, por sua vez, irão — e será essa uma das principais linhas curatoriais — abalar a representação e, desejavelmente, o pensamento crítico arquitectónicos (que deveremos manter presente que não são primeiros na obra destes artistas).
Esta própria transformação técnica teve impactos distintos para os diferentes fotógrafos patentes na exposição. Alguns dos fotógrafos continuaram a fotografar em analógico, outros combinam os dois formatos de forma deliberadamente ambígua, outros optaram definitivamente pelo digital. Thomas Demand, por exemplo, fotografa em analógico (habitualmente, com uma câmara de 8x10), com excepção de trabalhos mais pequenos, devido à escassez actual de filmes e ao processo moroso. Por outro lado, sempre que pretende alterar qualquer coisa na imagem, fá-lo, directamente, na sua maqueta (como é, sobejamente, conhecido, Demand constrói, no seu estúdio, as cenas que pretende fotografar em cartão e papel à escala real, em que o grande formato, como o próprio refere, equivale a uma janela para essa cena), porque continua a relevar o processo físico e manual de manipulação e transformação dos objectos na realidade, durante o qual surgem, quase sempre, muitas das ideias que, depois, a fotografia cristaliza. Sobre o Photoshop refere: “A partir do Photoshop — que é, obviamente, uma ferramenta fantástica — o problema com a maioria das fotografias, que vês hoje, é que podes mudar qualquer coisa tão facilmente, que tudo é incrível, mas perdes a necessidade de saber o porquê” 7. Para Wolfgang Tillmans, por sua vez, o digital permitiu renovar “a sua ligação ao mundo contemporâneo e às suas mudanças nos vinte anos decorridos desde que começou a representá-lo. Esse mundo globalizado pós-11 de Setembro que queria captar incluía os meios com os quais era possível fazê-lo fotograficamente, em consequência das capacidades avançadas da fotografia digital anteriormente não disponíveis. O mundo não era só contraditório e “polifónico”, tornara-se “alta definição”. O progresso tecnológico enquanto marcador da mudança societal, mas também económica e política, é um tema literal nas fotografias de Tillmans e ao mesmo tempo está implícito na constante narrativa subjectiva da generalidade da sua obra” 8. Certamente que as questões técnicas são, para a maioria destes artistas, subjugadas às suas intenções conceptuais e artísticas, embora estas possam, também, advir das primeiras no respectivo campo de experimentação material. 9 Mas estará o carácter iminentemente crítico, que os curadores pretendem trazer para o pensamento da fotografia de arquitectura (e, concomitantemente, para a disciplina de arquitectura) nessa revolução digital e nas respectivas tecnologias e técnicas (incluindo as “abordagens deliberadamente ficcionais” 10)?
© Bruno Lopes
© Bruno Lopes
Na origem da selecção das fotografias da exposição está a distinção entre duas categorias que Pedro Gadanho denomina de “fotografia arquitectónica” 11 e “fotografia de arquitectura” , em que a primeira se define pelos discursos da disciplina de arquitectura que procuram na fotografia a representação documental de uma obra de arquitectura, a partir das ideias e dos valores que esta expressa mediante os seus próprios instrumentos, orquestrados sob a visão de um determinado arquitecto; enquanto a segunda toma como matéria expressiva a obra de arquitectura, gozando da liberdade e da criatividade do fotógrafo-artista desimpedido dos códigos da disciplina da arquitectura e, sobretudo, dos das suas representações. Interessou aos curadores (tal como o subtítulo da exposição o afirma) a segunda categoria que, segundo os mesmos, tem vindo a afirmar-se e a intensificar-se a partir do campo da arte contemporânea (na sua essência mais experimental, também) após o que designam de “revolução digital”, permitindo, devido a esta transposição dos limites disciplinares, à arquitectura questionar, de forma crítica, a realidade e os seus acontecimentos, assumindo um protagonismo, que sempre procurou reivindicar, de expressão cultural do seu tempo (e, na exposição, de um tempo em específico, o tal da revolução digital, que os curadores demarcam a partir da invenção do photoshop).
Existe fotografia de arquitectura, na acepção que lhe é atribuída na presente exposição, desde que existe fotografia. Nos primeiros anos de desenvolvimento da fotografia, edifícios e paisagens, devido à sua imobilidade, coadunavam-se às longas exposições necessárias para se obter uma imagem nítida. Não podemos ignorar, também, que o nascimento da fotografia coincide com o advento da modernidade, com a transformação do tecido das cidades medievais e a construção das grandes metrópoles, assim como vários movimentos de ruptura e de mudança de paradigma estético na própria história da fotografia estão associados a transformações no mundo construído e na paisagem e respectiva percepção, como sucedeu com a histórica exposição New Topographics: Photographs of a Man-Altered Landscape, na qual um conjunto de fotógrafos nos fez olhar para formas de arquitectura anónima, paisagens suburbanas e industriais desoladas, para objectos e cenas quotidianas e banais, para ocupações informais e esquecidas no tempo e no espaço.
Desde a sua invenção, também, que a fotografia manipula a representação da realidade e nunca poderá confundir-se com esta, embora André Bazin tenha um dia acreditado que a fotografia é o objecto em si mesmo, uma vez liberto do tempo e do espaço que o condicionam, porque no próprio processo de devir fotográfico, a reprodução captura o ser do modelo (ou do objecto fotografado) 12. Para Susan Sontag, é muito claro: “ao decidir como é que uma imagem deve parecer, ao preferir uma exposição em detrimento de outra, os fotógrafos estão continuamente a impor standards sobre os seus temas. Mesmo que exista a ideia que a câmara, de facto, captura a realidade e não a interpreta apenas, as fotografias são tanto interpretação do mundo como as pinturas e os desenhos o são” 13.
As categorias de documento e ficção em fotografia (na que é considerada como prática artística) nunca foram consensuais e, dificilmente, poderemos atribuir-lhes definições precisas, como os seus contornos foram, também, sofrendo transformações, que advêm mais da obra singular de um fotógrafo ou de um conjunto de fotógrafos e das alterações dos regimes de percepção (de que a obra é, muitas vezes, visionária) do que dos progressos técnicos (frequentemente subvertidos por aqueles). Bas Princen comenta, por exemplo, que, actualmente, já nem podemos considerar as obras de Lewis Baltz, um dos fotógrafos de New Topographics, na categoria de fotografia documental 14, quando, aparentemente, pareciam aproximar-se o mais possível da representação impessoal da realidade, da mudez e de uma estética sem qualidades (onde, já o sabíamos desde Walter Benjamin e Atget, se esconde a potência criativa e crítica da fotografia 15).
Não foi a revolução digital, mas sim a prática artística da fotografia desde a sua origem que, ao utilizar o mundo construído e as suas multiplicidades, complexidade e ambiguidade, permitiu e continua a permitir à arquitectura questionar alguns dos seus fundamentos. Já Bloβfeldt vira as mais belas estruturas construídas nos seus close-ups de flores, testemunhando a imensa capacidade de analogia possibilitada pela fotografia... Os fotógrafos contemporâneos continuam interessados na cidade, nas paisagens construídas e nas respectivas contradições, tensões e paradoxos. A própria ideia de ficção pertence ao medium da fotografia, independentemente da tecnologia utilizada, como Vilém Flusser comenta: “A fotografia é o resultado de um olhar sobre o mundo e, ao mesmo tempo, uma transformação do mundo; é uma coisa nova” 16. Interessantemente, muitos dos artistas expostos trabalham a ideia de ficção a partir de imagens encontradas e de arquivos, como por exemplo, Aglaia Konrad ou Antoni Muntadas, algo que está na origem da fotografia, como defende David Campany 17. Outros, apropriam-se de técnicas das vanguardas do início do século XX para trabalhar, directamente, sobre a imagem, seguindo as linhas de composição estética desta e amplificar as suas possíveis derivações (como se a imagem pudesse ela própria reinventar-se e delirar). Para outros, a ideia de ficção nasce dentro de uma série e entre as fotografias dessa série (Ruff), ou então entre várias fotografias da sua obra (Princen) entendida sempre como aberta.
Subsiste, então, uma questão — na qual encontramos a pertinência desta exposição independentemente dos discursos oficiais que a contextualizam — por que é que a disciplina da arquitectura se deve interessar por estas obras (e todos nós, também)?
À direita: "Water Cooling Plant, Dubai" de Bas Princen, 2009
© Bruno Lopes
À direita: "Concrete City", 2010; "Zweimal Belichtet B34", 2016 de Aglaia Konrad
© Bruno Lopes
Ao centro: "Shanghai" de Andreas Gursky, 2000
À direita: "Museum, Munich #2", 2011; "Lenbachhaus, Munich", 2013 de Roland Fischer
© Bruno Lopes
A exposição no MAAT relembra-nos o pensamento de Ignasi de Solà-Morales no seu ensaio “Terrain Vague”, na década de 1990. Os livros de Gilles Deleuze & Félix Guattari sobre capitalismo e esquizofrenia haviam sido publicados há pouco tempo 18 e assombrado muitos autores com um entendimento do sujeito pós-capitalista que, na interpretação de Solà-Morales, habita, como forma de resistência ao aparelho de Estado, as margens da metrópole automatizada e do mercado liberal, resultando numa condição de vagabundo (entendido como figura deleuziana), que encontra nos terrenos vagos e expectantes, contaminados por estruturas pós-industriais obsoletas e ruínas de tecidos da cidade antiga, a expressão espacial correlata do seu modo de estar no mundo e da sua condição de estranho (que Solà-Morales fundamenta, ainda, em Freud e Kristeva).
Para Solà-Morales, era inquestionável que a fotografia fora, desde a sua origem, o instrumento privilegiado de representação da metrópole e a responsável pela manipulação do nosso olhar e da nossa imaginação sobre a cidade e a sua experiência. Os artistas, como seres sensíveis e criadores do por-vir (segundo, igualmente, o pensamento deleuziano), detêm essa capacidade, mágica ou mística, de ver (e dar a ver) o imperceptível, o invisível e o virtual, que entretecem o tecido sensível das coisas no mundo. Solà-Morales vai, exactamente, fundar a noção de terrain vague a partir de um conjunto de obras de fotógrafos seus contemporâneos (como por exemplo, John Davis, David Plowden, Thomas Struth, Olivo Barbieri, Lewis Baltz, Jannes Linders, Manolo Laguillo, entre outros) que, segundo refere, “inauguraram uma outra sensibilidade que dirige um outro olhar ainda sobre as grandes cidades” 19.
Para Solà-Morales, as fotografias de lugares expectantes, baldios entalados entre o crescimento voraz das cidades e resquícios de terrenos agrícolas, ou povoados por indústrias obsoletas abandonadas e em decadência, lugares marginais, improdutivos e, por conseguinte, capazes de escapar ao domínio da arquitectura de tudo ordenar e regrar, detinham a capacidade de capturar tanto a percepção, como os afectos do sujeito pós-capitalista, revelando, nos problemas estéticos e éticos que colocavam, os problemas da vida contemporânea 20.
Semelhantemente, as obras presentes na exposição do MAAT falam-nos da nossa condição contemporânea, hoje, necessariamente fragmentada, dilacerada, esquizofrénica, ou até, por vezes, onírica (o ensaio de Sérgio Fazenda Rodrigues acaba por exemplificar, através das obras seleccionadas, exactamente, isto, ao referir os arquétipos de domesticidade, as relações entre exterior e interior, a transitoriedade, a interioridade, os conflitos políticos, a condição da mulher, o espaço público e a sua relação com o poder económico, a destruição e decadência, tanto ideológicas, como materiais, etc.), em que a situação ou o acontecimento arquitectónico representado denuncia um modo de estar no mundo, assim como as percepções e os afectos de um sujeito, necessariamente, em convulsão.
A questão para Solà-Morales era muito simples e, estranhamente, actual, porque a fotografia, enquanto prática artística, continua a transformar os edifícios e as paisagens em poderosos signos visuais das transformações do mundo e das tensões da vida, espelhando, de forma crítica, a nossa condição de sujeitos no mundo: como é que a arquitectura pode abrigar a condição problemática da vida contemporânea? As fotografias, que vemos na exposição do MAAT, tornam esta questão ainda mais aguda e urgente.