Que vai ser de nós?
Por Rui Campos Matos
© Rui Campos Matos
A grande novidade do incêndio que, este Verão, atingiu a Madeira, não foram os danos causados (em 2012 a devastação também foi grande) mas sim o facto de as chamas terem ameaçado o antigo Funchal de intramuros. Por algumas horas a baixa da cidade viu-se envolvida numa massa irrespirável de fumo que semeou o pânico entre a população. O episódio poderia ter tido graves consequências não fora a providencial mudança das condições atmosféricas e a pronta intervenção dos bombeiros no controle dos poucos focos que se desencadearam. O centro permaneceu intacto, exceptuando 3 ou 4 edifícios que já se encontravam em estado de ruína e, como tal, mais vulneráveis às faúlhas trazidas pelo vento. Nada de comparável, portanto, ao que havia sucedido na baixa do Funchal em séculos passados.
Com efeito, os incêndios não são um problema novo na história da capital do arquipélago. Já em 1470, o Infante D. Fernando, governador das ilhas atlânticas, havia determinado que as casas da florescente Rua dos Mercadores, que na sua grande maioria eram construídas em madeira e cobertas de palha, se «cobrissem de telha». Aparentemente, de pouco serviu esta determinação, porque no Verão de 1593, numa noite em que o vento leste soprou quente e seco, um violento incêndio devastou a baixa, tendo queimado, em apenas 4 horas, como refere António Aragão na sua história do Funchal, cerca de 154 casas, «as melhores e mais principais de toda a cidade». A devastação foi tal que o episódio sobrevive ainda na toponímia local dando nome às ruas da Queimada de Baixo e da Queimada de Cima. Ao longo do século XVII, as casas em madeira e colmo foram sendo progressivamente substituídas por construções de pedra e cal com cobertura em telha, tornando mais difícil a propagação das chamas. Ardia pontualmente, aqui ou ali, uma casa sobrada, mas a ossatura de alvenaria ficava de pé e o corpo da cidade sobrevivia, como sobreviveu este Verão (e continuará a sobreviver).
Os incêndios continuaram, porém, a devastar as periferias urbanas, despojadas da sua vegetação endémica e mais resistente ao fogo. O padre Augusto da Silva deu conta de um monstruoso incêndio que, no Verão de 1919, varreu o perímetro do Funchal: «no Monte e em São Roque, tomou proporções verdadeiramente assustadoras, abrangendo uma área de alguns quilómetros e ameaçando destruir um grande número de habitações». A semelhança com o que se passou este ano é gritante. Será que nada pode ser feito para prevenir este tipo de tragédias?
Tudo indica que sim. Trata-se, em primeiro lugar, de um problema de ordenamento do território e planeamento urbano. O Funchal é uma cidade que tem vindo a crescer desordenadamente nas suas periferias altas: acessos difíceis, arruamentos estreitos, construções em contacto com vegetação desadequada. Teria sido necessária uma persistente política de requalificação urbana destas áreas. Infelizmente, pouco ou nada foi feito nas últimas décadas. Exemplos de bom planeamento não faltam, porém, na história da cidade. Em 1910, por iniciativa do Visconde da Ribeira Brava, o arquitecto Ventura Terra é incumbido de traçar um Plano de Melhoramentos para a capital do arquipélago. Pela primeira vez, a cidade foi diagnosticada como um todo e as medidas curativas e modernizadoras propostas tentavam adaptar a velha urbe de origem tardo-medieval aos novos tempos do turismo (desse plano herdou a cidade um dos seus mais generosos espaços públicos: a Avenida do Mar).
Em finais dos anos 60, sob a presidência de Fernando Couto na Câmara Municipal, a cidade conheceu o seu primeiro Plano Director. O Funchal foi, aliás, uma das primeiras cidades portuguesas a beneficiar de um Plano Director. A sua elaboração ficou a dever-se ao trabalho da equipa liderada pelo arquitecto Rafael Botelho e foi precedida por um debate aberto a toda a comunidade, que teve lugar em 1969 com a realização dos Colóquios de Urbanismo. Temas como a salvaguarda da cidade histórica (fundamentada no precioso levantamento de António Aragão), a conservação das quintas madeirenses e a preservação da originalíssima paisagem do anfiteatro urbano, mantêm toda a actualidade. Em artigo que publicou na revista Arquitectura n.º141 de 1970, Botelho fez saber quais os objectivos do seu plano, as dificuldades com que se deparou e a natureza percursora que teve no Portugal de então. Meio século passado, verificamos que, apesar da estratégia delineada, foi difícil conter a destruição sistemática do enquadramento natural, que resultou da “dispersão desordenada de construções por todo o vasto anfiteatro”.
Ora foi precisamente esta dispersão desordenada, resultante de 40 anos de desgoverno, mau planeamento e vistas curtas, que agora estamos a pagar com vidas humanas e destruição de património construído cada vez que um incêndio ou um aluvião assolam a cidade. Foi assim em Fevereiro de 2010 (aluvião), foi assim em Julho de 2012 (incêndio), foi assim em Agosto de 2016 (incêndio) e, a manter-se a actual política de planeamento urbano e territorial da ilha, assim será nas próximas décadas. Na tarde do fatídico 9 de Agosto, vendo o centro da cidade mergulhar numa nuvem de fumo, resolvi avançar até à ponta do cais, ganhar recuo para tentar perceber o que estava a acontecer à cidade, já que a informação oficial não existia. Pelo caminho encontrei muita gente desorientada, em pânico, sem saber para onde ir. Muitos, como eu, refugiaram-se no cais. Ao pé do mar, o vento soprava com tal intensidade que tive dificuldade em tirar a fotografia que acompanha esta crónica. Um homem aproximou-se de mim, com lágrimas nos olhos, provavelmente em estado de choque: "só tive tempo de salvar a minha mãe, deixei em casa tudo o que tinha! Que vai ser de nós?". Não lhe consegui responder. Infelizmente, a pergunta continua sem resposta. ◊
Presidente da Delegação da Madeira, Ordem dos Arquitectos, Secção Regional Sul
Setembro 2016