Sobre “o Público”* no Espaço
Por Wim Cuyvers
Pretendemos, continuamente, justapor o espaço público ao espaço privado numa oposição simples: queremos afirmar que o espaço público é o oposto do espaço privado e, de forma decisiva, formular uma definição de espaço público, por um lado, e de espaço privado, por outro. Mas tanto o espaço público puro como o espaço privado puro não existem; não podemos sequer esperar poder imaginar, inventar ou projectar espaço privado ou público puros. O espaço público puro (e, de facto, o espaço privado puro) é como o hidrogénio: um elemento químico que não existe de forma isolada, que forma sempre compostos. O espaço tem sempre aspectos de "público" e aspectos de privacidade ao mesmo tempo, mas a proporção de publicidade/privacidade difere enormemente. Estou interessado na procura de espaço(s) com um elevado carácter de "público".
O que é público no espaço é o oposto do que é privado no espaço.
A privatização do espaço é organizada por vendas e heranças, é protegida por leis, hábitos e poder.
A parte privatizada do espaço é aquela que é controlada no espaço. O que é público no espaço é o que não é controlado.
Quanto menos poder se tem, mais se procuram espaços com elevado carácter público.
A parte pública do espaço não faz sentido economicamente.
Procuramos espaços com um elevado carácter público estamos em situação de necessidade.
É a parte pública do espaço que oferece possibilidades de transgressão.
Um espaço completamente público seria um espaço onde alguém poderia fazer qualquer coisa a qualquer momento. O espaço público é, então, uma ideia platónica: um espaço 100% público é impensável.
O grau de publicidade do espaço é indicado pela sujidade.
O espaço das ruas é muito menos público do que se pensa; as ruas separam diferentes movimentos de tráfego, evitam o conflito entre esses movimentos. Precisamos de ter um carro para sermos aceites numa parte da rua, ou uma bicicleta para outra parte.
As praças não são espaços muito públicos; os donos da loja ou do bar apropriam-se do espaço para as suas esplanadas ou para expor os seus produtos, limpando cuidadosamente o lixo que se acumulou.
Espaços com alto grau de carácter público são caracterizados por resíduos: numa sociedade que é inequivocamente impulsionada pelo lucro, os lugares onde o lixo se acumula são lugares ignorados.
Espaços com alto grau de carácter público são espaços de perda, não de lucro; são espaços para desperdiçar energia (pessoal), não para a poupar cuidadosamente.
Espaços com alto grau de publicidade são, por definição, próximos de espaços frequentados com alto grau de privacidade.
O momento de violar as regras da sociedade é o momento de confronto consigo mesmo e com o mundo.
A verdadeira violação das regras da sociedade ocorre em espaços com elevado carácter público: crianças a brincar com o fogo, os primeiros encontros sexuais, drogas ...
Por breves momentos podemos transgredir as regras da sociedade no espaço com um elevado carácter público.
O espaço com elevado carácter público é o espaço de ser (o espaço de não ter), é o espaço existencial.
O espaço com um elevado carácter público é o espaço onde quem precisa vai, onde os necessitados se encontram.
O lazer mata o carácter público do espaço.
Os necessitados deixam os seus vestígios em espaços com elevado carácter público (resíduo a resíduo) como fluidos corporais: lágrimas, sangue, esperma e urina. Quase ninguém os limpa. Os seus vestígios indicam quão público o espaço é.
Pessoas de diversas idades, raças ou culturas, pessoas com necessidades completamente distintas procuram e visitam espaços com elevado carácter público. As suas necessidades são diferentes, mas lêem o espaço da mesma forma: a criança, o velho, o drogado e aqueles que procuram contactos sexuais, aqueles que cedem às suas necessidades, lêem o espaço da mesma forma: parecem manter um equilíbrio, como a Justiça, um equilíbrio com o "público" num prato da balança, a privacidade no outro.
Aqueles que aceitam as suas necessidades irão ver, ler, reconhecer e compreender espaços com elevado carácter público.
Todos precisamos de espaços para quebrar regras, para transgredir os padrões da nossa sociedade. Todos temos necessidades e somos vulneráveis.
Quando um escritor escreve um livro, um leitor irá lê-lo como um livro distinto, enquanto outro leitor lerá algo diferente, mas todos lemos o espaço inequivocamente, sem ruído ou distúrbio, desde o momento em que aceitamos a nossa necessidade e esquecemos o poder, o conhecimento, percepções e contemplação.
Através de espaços com alto grau "público" é possível uma conversa não verbal ou, melhor, uma conversa pré-verbal.
Quando consigo ler espaços com alto grau "público" da mesma forma que muitas outras pessoas, tenho a capacidade de conversar com os outros sobre mim, sobre os outros, sobre as nossas necessidades, os nossos medos e sobre o mundo, através do espaço com um alto grau "público".
Quanto maior o grau de carácter público do espaço, maior a possibilidade de eu o poder tocar, a si, por um momento, através desse espaço. Você pode pensar que "comum" 1 é uma palavra melhor para "público" 2 , mas isso não é verdade.
Através da, desde ou pela instalação do digital, o carácter público do espaço aumentou rápida e enormemente. O controlo permanente, imposto pelo digital, significa o fim da verdadeira exposição. Estar conectado, estar permanentemente conectado, significa que incorporámos permanentemente as normas; que transgredir essas normas, mesmo que por um momento, se torna cada vez mais difícil. Ao falar de espaços com alto grau "público", eu pensava em espaços de encontro informal para um encontro sexual rápido e fugaz, lugares esses que eram, também, e muitas vezes simultaneamente, usados por crianças (para acender uma fogueira), por consumidores de drogas ou como lugares que são usados como um depósito ilegal de lixo. Mas quando todos estão permanentemente equipados com uma máquina fotográfica e de vídeo e um telefone, todos se tornam um guarda, um controlador, um polícia, uma autoridade.
Estamos permanentemente vigiados na e pela nossa vida digital (telefone, computador, cartão de crédito, câmaras de vigilância, bancos de ADN, sistemas de reconhecimento de íris, redes sociais e assim por diante).
Quando ignoramos a redução do carácter público do espaço desde que o digital se instalou e percebemos que a evolução digital é cada vez mais rápida, como uma parábola, sabemos que o colapso do espaço público de alto grau continuará muito rapidamente. Anteriormente, afirmei que o espaço, o espaço real, não pode existir sem aspectos do privado e do público. Compreendeu bem: na era digital o espaço com um elevado carácter público não pode existir e, provavelmente, o espaço, o espaço real, desaparecerá. ◊
© Milena Vergara Santiago
Bio
Wim Cuyvers é um arquitecto belga altamente funky conhecido por fazer convergir projetos de design, tendo realizado estudos sobre cidades como Sarajevo e Pristina em condições pós-guerra e acerca de usos informais em áreas de serviço de autoestradas 3 - um arquitecto que nunca deixou de sentir a paixão.
Com um percurso profissional muito bem sucedido, realizou, entre outras, uma exposição individual no deSingel Art Centre em Antuérpia (1995) e recebeu o prestigiado prémio de cultura do governo Flamengo (2005) 4 Wim Cuyvers abandonou a prática e mudou-se para a região do Jura, em França, onde, perto de Chatillon / St. Claude, tem tentado, desde 2000, encaminhar um projeto de refúgio chamado Montavoix. 5
Ainda que as suas últimas obras tenham sido frequentemente consideradas arte, o jazzy Wim Cuyvers afirma que esses trabalhos são meditações específicas sobre o lugar, acerca do espaço público e a arquitectura na generalidade. 6 This is a cool hand…( Michael Lothar )