Os Vizinhos
Por Alexandra Areia
Neste momento, quando a Europa vive sobre o signo do fechamento, do medo dos outros e da desconfiança dos outros, acho que a arquitectura pode ser de facto uma grande arma de convivialidade.
António Costa
Primeiro-Ministro de Portugal, na inauguração de “Neighbourhood”A Europa – e os tremendos desafios que hoje enfrenta – é um tema que, mesmo indirectamente, está sempre subjacente a Neighbourhood: Where Alvaro meets Aldo, a representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza 2016, comissariada por Nuno Grande e Roberto Cresmacoli. A questão da Europa torna-se particularmente evidente em “Vizinhos”, a série de filmes documentais que acompanha a representação, realizada pela jornalista Cândida Pinto, com apoio da SIC Notícias. Editora de internacional da SIC e repórter reconhecida internacionalmente, nomeadamente pela cobertura de conflitos de guerra em territórios como Kosovo, Timor ou Afeganistão, Cândida Pinto acompanha desta vez o arquitecto Álvaro Siza Vieira numa viagem pela Europa, na visita a quatro projectos de habitação social que o arquitecto construiu em quatro cidades europeias diferentes: Porto, Haia, Berlim e Veneza. Apesar dos quatro documentários de “Vizinhos” serem indubitavelmente sobre a arquitectura desses quatro bairros, rapidamente se percebe que são também muito mais do que isso. É certo que a arquitectura de Siza Vieira é o assunto constante das conversas: seja através dos elogios dos moradores (a abundância de luz natural nas casas parece ser aquele que reúne maior consenso), seja pelas queixas que apresentam (aquela janela que tanta falta faz na casa de banho, a varanda que podia ser maior…). É certo também que o próprio Siza Vieira, como que dotado de uma irresistível “star quality”, vai conquistando com quem enceta conversa, tornando-se uma presença extremamente agradável de acompanhar ao longo dos episódios – rendidos que ficamos pelo seu carisma, simpatia e extraordinário poder de encaixe (mesmo quando lhe são dirigidas algumas críticas mais duras). E assim, sem nunca deixarem de ser o tema principal, tanto o assunto da arquitectura destes bairros como a própria personalidade convidativa do arquitecto fornecem acima de tudo um excelente suporte para ficarmos a conhecer as pessoas que realmente habitam os bairros, tantas vezes conotados como “perigosos” – rótulo que Siza desmonta rapidamente dizendo “perigoso é quem diz que é perigoso!”. A escolha de Cândida Pinto para a realização dos documentários não poderia por isso ter sido mais acertada. A sua sensibilidade jornalística é visível ao longo d a série: na maneira pouco intrusiva como a câmara se aproxima dos habitantes de cada bairro (e cada bairro encerra em si mesmo realidades sociais complexas e muito específicas); no diálogo franco e fluido que se constrói em cada episódio, não só entre moradores e arquitecto, mas também entre os próprios jornalistas (que apesar de estarem fora de campo, sentimos sempre a sua presença); e, por fim, no espírito geral de confiança que claramente se estabelece entre os intervenientes e que torna possível que os moradores abram as portas de suas casas num perfeito e desafogado à-vontade. “Vizinhos” consegue de forma bastante subtil e nada forçada estender o debate da arquitectura portuguesa para um dos temas políticos mais pertinentes da actualidade: a Europa e a forma como hoje se vive e convive dentro do espaço europeu.
No programa sobre o bairro da Bouça, no Porto, entramos por exemplo na casa de Maria Amélia e José, um dos primeiros casais a mudarem-se para o bairro. Enquanto recordam com Siza todo o processo de luta que envolveu a construção no pós-25 de Abril, mostram com carinho os retratos de João e Miguel Xu, dois jovens irmãos de origem chinesa (para quem Portugal é a “casa” e a China o “país estranho” onde passam férias), que em pequenos ficavam sempre ao cuidado do casal. Em Berlim, no Bonjour Tristesse, o jovem arquitecto sérvio Veljko, visivelmente entusiasmado pela presença de Siza na sua casa (que partilha com duas arquitectas alemãs), explica o processo de gentrificação que aquela zona da cidade atravessa e as lutas que têm sido organizadas para evitar o aumento drástico das rendas.
Em Haia, num bairro maioritariamente ocupado por estrangeiros, conhecemos Gerard, um dos poucos holandeses que ainda ali vive, e “com muito gosto” porque “a cada esquina que dobramos, descobrimos um mundo novo” – “se calhar o estrangeiro sou eu, quem sabe?”, conclui. Ainda em Haia conhecemos também Basem, refugiado da Síria, que diz que a sua casa é “muito boa e quem a desenhou é um senhor fantástico” (embora considere que seja demasiado grande para ele, que vive sozinho). A Siza, Basem fala da sua terra natal, Homs, agora totalmente destruída, da preocupação pela família que ainda lá tem e da ameaça do Daesh que está apenas a 40km da sua cidade – “Oxalá venham melhores tempos”, diz-lhe Siza ao despedir-se. E por fim, em Veneza, no bairro que acolhe o projecto expositivo português (que à semelhança da Bouça é maioritariamente habitado por locais), conhecemos as vizinhas Paola e Sónia que encontram no bairro, e na ilha da Giudecca, uma espécie de último reduto de tranquilidade e silêncio face ao intenso frenesim turístico que assalta as outras ilhas da Lagoa. São estas pessoas que fazem os quatro bairros – e que fazem também a Europa – e só ouvindo as suas vozes torna possível compreender, em toda a sua dimensão, a arquitectura de Siza Vieira. Neste aspecto, a representação portuguesa parece ir exactamente ao encontro do pretendido por Alejandro Aravena para Reporting from the Front: histórias de batalhas e de fronteiras que precisam de ser vencidas e em que a arquitectura fez, e continua a fazer, a diferença na luta por um melhor ambiente construído.