Sobre o ensino da Arquitectura e o futuro profissional do Arquitecto
O papel da Arquitectura nas sociedades criativas
Por José Nuno Beirão
Sumário
Num tempo em que cerca de quatro em cada mil habitantes em Portugal são arquitectos, para que serve um curso de Arquitectura?
Quais são os outputs profissionais possíveis (e alternativos às saídas convencionais) que o ensino da Arquitectura poderá promover?
Neste artigo argumenta-se que a formação do Arquitecto não serve essencialmente para a tradicional produção da Arquitectura, mas que possui a essência da formação necessária às profissões do futuro (aquelas que não conseguimos nomear porque ainda estão por inventar). A formação em Arquitectura possui uma estrutura privilegiada na medida em que é transdisciplinar, culta, tem por base metodológica a metodologia de projecto e aborda várias formas de processos criativos. Falta-lhe apenas (tradicionalmente) uma componente de contemporaneidade metodológica com enfoque nas tecnologias da informação. Como tal, argumenta-se ainda, para que se possa garantir que essa formação é adequada e completa para a formação de novas formas de trabalho, que falta complementar os cursos de Arquitectura com uma forte componente formativa em tecnologias da informação.
Assim, no futuro os Arquitectos não irão apenas inventar novas formas de habitar, mas também (e talvez essencialmente), irão inventar novos empregos e novas formas de trabalho.
Introdução
Num tempo em que cerca de quatro em cada mil habitantes em Portugal são arquitectos, e em que continuamos a formá-los à razão de cerca de 300 por ano; considerando ainda que as necessidades primárias de construção no nosso país estão essencialmente cobertas, levantam-se algumas questões pertinentes sobre o ensino da Arquitectura em Portugal:
- Quais são as valências do ensino da Arquitectura que podem ser úteis no actual contexto?
- Quais são os outputs profissionais possíveis (e alternativos às saídas convencionais) que o ensino da Arquitectura poderá promover?
- Qual deverá ser a estrutura do curso de Arquitectura de modo a promover uma formação correcta para esses outputs profissionais?
O contexto
Por muitos erros de planeamento do passado, ou mesmo talvez por ausência dele, e como se encontra já sobejamente publicado, o território português urbanizado cresceu muito além das suas necessidades reais e apresenta um parque habitacional muito acima das necessidades. Este panorama apresenta vários problemas e também algumas virtudes. Podemos ler como virtudes, o facto de não existir neste momento em Portugal escassez de habitação (contrariamente ao sucedido num passado ainda não muito distante). Não existe também nenhuma carência premente quanto a edificação destinada a equipamentos e serviços; pelo menos essa carência não se exprime em escassez de equipamentos, muito embora pontualmente possam existir necessidades de reabilitação e valorização dos existentes. Antes pelo contrário verifica-se mesmo em alguns casos algum sobredimensionamento no que toca à resposta às reais necessidades. Assim afigura-se como problema que não existe presentemente necessidade de recurso ao tradicional mercado da Arquitectura – a construção de raiz. Contudo, os cursos de Arquitectura apresentam ainda uma estrutura curricular baseada nos paradigmas do passado onde o desenvolvimento de uma formação na área visava essencialmente formar arquitectos para este tipo de mercado já inexistente (pelo menos no nosso país).
Sublinhe-se ainda que muito embora tal crise do mercado imobiliário, mesmo no contexto da vigente bolha de revitalização no campo da reabilitação, a profissão de arquitecto é já há muitos anos considerada uma das profissões mais geradoras de frustração do mercado de trabalho. Tal frustração resulta de muitos aspectos: a difícil possibilidade de concretização de trabalhos com o nível de qualidade que é ensinado na formação académica; a dificuldade de encontrar empregos bem remunerados ou de criar uma actividade com remuneração certa; a distância cultural da maioria da clientela não disponível para pagar os mesmos critérios de qualidade e mesmo em entender a prestação de serviço do arquitecto, etc. A listagem de motivos poderia ser estendida por mais uma página se necessário. No actual contexto, e acima de tudo desde a revogação das Instruções para Cálculo de Honorários, (Portaria que defendia os honorários dos arquitectos), as dificuldades e a frustração apenas tendem a crescer.
Neste panorama, três questões se colocam: porque é que continuamos a formar arquitectos? Porque é que ainda existem pessoas que querem ter essa formação? E porque é que os continuamos a formar da mesma maneira?
A primeira questão é meramente retórica. Quanto à segunda questão poder-se-ia conjecturar que o estudante que escolhe aprender Arquitectura toma a sua decisão com o coração contrariamente ao estudante de Engenharia Civil que, normalmente observa mais atentamente as suas chances no mercado de trabalho. Veja-se a significativa queda da procura do curso de Engenharia Civil comparativamente à queda apresentada em Arquitectura. Se tal conjectura fosse verdadeira poderíamos facilmente aceitar esta resposta, mas estou convencido de que existem outras motivações cuja razão poderá não estar muito evidente nem mesmo muito consciente para os que tomam tal decisão. Existem razões para defender que a formação em Arquitectura dota os formandos de qualidades aplicáveis em várias áreas profissionais além das práticas convencionais. É neste contexto que surge este texto, e pelas razões que passarei a expor que a terceira questão se torna um assunto de elevada pertinência que carece a devida atenção.
As valências da formação em Arquitectura
Quais são as principais características da formação em Arquitectura?
Vou estender a ideia de arquitecto ao conceito geral de projectista em qualquer universo criativo, o que abrangerá com evidência o designer em todos os seus campos de actividade. Assim, nos pontos adiante, onde se lê arquitecto, entenda-se arquitecto-designer.
1 – Transdisciplinaridade
O arquitecto tem uma formação transdisciplinar que abrange várias áreas de conhecimento, desde a arte, vários domínios da engenharia, das tecnologias dos materiais, o desenho, da sociologia, da geografia, da economia, da computação, da matemática, da geometria, da filosofia; a sua formação será tanto melhor quanto mais ampla e vasta for a sua aquisição de conhecimentos. A grande arte do arquitecto consiste em saber fazer sínteses holísticas dos vários domínios do conhecimento presentes no contexto do trabalho e problema que se enfrenta.
2 – A metodologia de projecto
O arquitecto recebe formação em métodos de projecto destinados a resolver wicked problems (que se poderá traduzir por "problemas perversos"). Contrariamente, uma boa maioria dos problemas em engenharia que poderão ser considerados well-defined problems sendo que, os problemas em Arquitectura e Design se enquadram na categoria genérica de wicked problems, ou seja, problemas de definição difícil, imprecisa, de dependência contextual ou ainda sub-definidos ou mesmo enganadores. Muitas vezes a nossa capacidade de correctamente explicar o problema que serviu de motor ao projecto só se clarifica com a descoberta da solução. Isto é tanto mais evidente quando nos apercebemos que muitos arquitectos maquinam uma história para explicar a razão de ser do seu projecto. Essa história é na realidade a consciencialização simultânea do problema de projecto e da razão da sua solução. Estes temas foram já objecto de intriga e estudo por muitos anos, definindo uma corrente de investigação conhecida como design thinking cuja semente geradora da intriga resulta de questões levantadas pelos pioneiros da inteligência artificial que encontraram na arquitectura e design o seu maior desafio – como poderemos replicar com a máquina o acto de projectar? Esta corrente de investigação envolveu portanto pensadores de várias áreas onde encontramos nomes pioneiros como Herbert Simon, Marvin Minsky, Nigel Cross, Donald Schön, Brian Lawson entre muitos outros (os primeiros nas áreas da computação e os últimos mais claramente nos métodos de projecto). Os métodos de projecto, de forma mais ou menos consciente, têm sido desde tempos imemoriais passados progressivamente de mestre para aprendiz, de modo mais ou menos formal, em atelier ou academia, e constituem a principal arma ou ferramenta do projectista. Diria que se trata da sua principal ferramenta intelectual. É por via do "método" que o arquitecto chega à síntese holística.
3 – A síntese holística e o processo criativo
Englobados no "método" diferentes tipos de processos criativos permitem aos projectistas atingir a síntese desejada. Tais processos encontram os seus primórdios mais conscientes na Bauhaus, evoluiram em inúmeras correntes de onde destacaria na modernidade G. Dorfles e B. Munari, até aos nossos dias onde os processos são dominados pelas abordagens multimédia e exploração computacional. Os processos criativos visam dar resposta aos problemas de composição, inovação e expressão poética do objecto de projecto, eles próprios sub-problemas do wicked problem genérico que constitui o objectivo geral do projecto. Através destes processos ensinamos o estudante de arquitectura ou design a incluir na sua síntese, não só as resoluções mais objectivas do problema em mãos mas também as mais artísticas (composição, ritmo, harmonia, textura, matéria, expressão, movimento, simbólica, etc). O Arquitecto formado tem consciência (pelo menos parcial) desses processos e faz uso deles com intensionalidade. Um bom ensino de Arquitectura deverá também dar formação nestas componentes.
4 – Os meios de representação e pesquisa (onde sublinharei a importância do multimédia e da computação)
A fim de poder expressar e explorar as suas ideias, o arquiteto recebe formação sobre os vários meios de representação e pesquisa necessários ao desenvolvimento do projecto e à transmissão dos seus conteúdos aos vários agentes envolvidos no processo (cliente, construtor, mestre de obras). Na actualidade esses meios são inúmeros e são disso exemplos: o desenho, a maqueta, as representações geométricas em suporte de papel e em suporte digital, a fotografia e a fotomontagem, os modelos digitais e as maquetas digitais, os meios de visualização em realidade virtual, os modelos BIM, os modelos paramétricos, etc. É neste campo que a formação do arquitecto se encontra muito aquém do que deveria ser a sua formação ideal. Argumento que a sua educação avançada em novas tecnologias, nas áreas de multimédia, computação e ferramentas digitais em geral, constituem uma mais-valia muito especial adicional à tradicional formação do arquitecto, formando profissionais inovadores e de cariz particularmente excepcional e adequado aos problemas que a sociedade futura nos apresenta (sustentabilidade, smart cities, etc).
A vantagem competitiva
A formação de um arquitecto completo cobre tipicamente as quatro valências acima descritas e encontra-se representada na maioria das escolas de arquitectura nacionais e internacionais. As discordâncias surgem geralmente em relação à valência 4 onde alguns defendem ainda e apenas o ensino dos meios tradicionais de representação. O meu argumento é que uma formação mais expressiva nos meios computacionais, novas tecnologias e multimédia aplicáveis à arquitectura, incluindo meios para desenvolvimento de um pensamento algorítmico, ampliam largamente o espetro de competências do arquitecto alargando significativamente as suas saídas no mercado profissional.
Vários autores contemporâneos (Richard Florida, Malcom Gladwell) têm alvitrado a previsão de que cerca de 30% dos melhores empregos no ano 2050 serão empregos que ainda estão por inventar. Tal invenção de novas profissões provém essencialmente de um grande à-vontade e capacidade de utilização das novas tecnologias. Vários autores defendem (R. Florida; W. Mitchell) que o perfil ideal de formação profissional para a criação de profissionais capazes de inventar novos empregos, ou seja, de constituir parte activa da "sociedade criativa", será um perfil idêntico ao que escrevi acima, isto é, dotado das referidas quatro valências e com uma forte componente nas áreas de computação e novas tecnologias. Era exactamente este perfil que a empresa Ydreams procurava para o seu corpo de colaboradores. Tive oportunidade de ver António Câmara em conferência no Instituto Superior Técnico expressando exactamente esta opinião: “procuramos arquitectos com formação avançada em novas tecnologias; precisamos da vossa imaginação e conhecimento tecnologógico”.
Assim, admitindo que dos 23.000 arquitectos existentes em Portugal apenas metade trabalha realmente em Arquitectura, diria que se as Faculdades de Arquitectura apenas esperarem oferecer uma formação tradicional destinada apenas a uma prática tradicional da profissão, não será de esperar que os arquitectos atinjam mais do que 0,1% do mercado de trabalho. Alternativamente, a forte formação nas novas áreas tecnológicas (novas tecnologias e ciências da computação e da informação), a acreditar em autores como Richard Florida, Malcom Gladwell e William Mitchell, deverão estender as expectativas profissionais até um potencial de abrangência de cerca de 30% do mercado de trabalho. Se as nossas Faculdades de Arquitectura não agirem de um modo determinante na oferta de uma formação completa nos termos acima descritos estaremos apenas a formar arquitectos para a frustração e desemprego. Contrariamente, se as quatro valências forem garantidas em todas as suas vertentes e em especial na dimensão tecnológica eu diria que a formação em Arquitectura/Design será uma das formações com mais possibilidade de sucesso profissional num futuro não muito distante. Apenas temos de perder a ideia que o objectivo da formação do arquitecto é formá-los para a produção de arquitectura em atelier – porque essa já não tem praticamente saída profissional. A ideia que defendo é que temos de formar arquitectos para empregos que ainda não existem onde eles terão enorme vantagem competitiva. Temos de os ensinar a criar o seu emprego.
Um Ensino para o Futuro
A mentalidade estabelecida na maioria da Academia portuguesa é ainda particularmente retrógrada. Muito embora muitos académicos já possuam uma visão relativamente progressista, maioriatariamente os curricula da maioria dos cursos são ainda marcados por um academismo passadista profundamente desactualizado sendo baseados no princípio de que alguém decidiu o que é importante para atribuir um diploma a um estudante do ensino superior. O meu argumento é que se não conhecemos 30% dos empregos do futuro porque é que continuamos tão arrogantemente a dizer que os diplomas que atribuímos têm de ter aquela formatação passadista em que insistimos? Não serão os próprios estudantes a saber bem melhor do que nós qual deverá ser a sua formação?
No meu entender chegou o momento de finalmente fazer um uso efectivo do sistema de créditos que introduzimos no ensino superior (uso que até agora tem sido quase exclusivamente burocrático). Com isto sugiro a crição de dois diplomas em estudos superiores (um diploma de licenciatura e um de mestrado) onde o estudante possa escolher livremente quais as disciplinas que constituem a sua formação tendo apenas que cumprir um número específico de créditos para a sua obtenção (180 créditos para a licenciatura e 300 para o mestrado). Admitir-se-ia ainda que o estudante pudesse querer que o seu diploma de mestrado incluísse mais créditos de formação por ver isso como uma mais-valia que necessita. “Sou mestre com 360 créditos em qualquer coisa de profundamente novo que eu próprio inventei”. É verdade que embora esta estrutura abra a possibilidade a enormes vantagens competitivas na formação dos alunos também comporta enormes dificuldades e risco pois implica visão e talvez um pouco de sorte. No entanto julgo que vale a pena. A Universidade de Lisboa, dada a sua dimensão possui neste momento no meu entender uma estrutura particularmente apta a desenvolver este passo pioneiro. Até lá, o ensino da Arquitectura/Design (desde que oferecendo as áreas relativas às novas tecnologias) terá a vantagem competitiva pois possui naturalmente a característica transdisciplinar que referi.
Sobre a comunicação de conteúdos
Ocorre-me no contexto deste artigo que muitas vezes em conversa com colegas temos comentado notar um franco desajuste entre o que comunicamos nas aulas aos nossos alunos e o que de útil são realmente capazes de registar e aplicar. A distância entre a informação transmitida e a informação registada é cada vez maior. Quero deixar aqui expressa a ideia de que o defeito no processo de comunicação não é dos alunos mas sim nosso. Não sabemos comunicar com as novas gerações.
Contrariamente ao que se passava com as gerações anteriores (digamos de há 10 anos para trás) as gerações que agora se nos apresentam nas Universidades são inteiramente digital born ou digital natives (John Palfrey and Urs Gasser, 2010). É de longe mais natural para os digital natives "pincelar" com o dedo um monitor que usar uma caneta. Mais natural consultar um website sobre um tema que procurar um livro numa biblioteca. Mesmo ler um livro será mais natural fazê-lo no monitor (p.ex: num kindle) do que no livro. Será natural concluir que não comunicamos com os meios corretos nas nossas aulas.
Imagino em alternativa às tradicionais deixas de arranque de uma aula teórica – “abram o vosso livro de História na página 47, capítulo ‘Gótico’ (...)” – poderíamos dar o início com – “peguem no vosso tablet e acedam ao link http://xpto.gotico, acedam à catedral de Chartres; vamos fazer uma visita guiada em realidade aumentada. No centro (no cruzeiro) podem abrir um pop-up com informação histórica sobre o seu contexto e data de construção, mas vamo-nos concentrar no trabalho de estereotomia afim de entender os processos construtivos do Gótico. Clicando nos arcos do cruzeiro podem ver os contornos das pedras constituintes dos arcos em destaque. No pop-up podem ver a animação da sequência de construção incluindo a estrutura de suporte que será desmontada após a sua conclusão (...)”. A aula continuará ligando links sobre geometria, as suas formas de representação e alguma matemática e física envolvida. Ainda a contextualização histórico-filosófica do costume, mas com os links certos à informação certa. Na aula prática iniciaríamos – “peguem no vosso tablet e caneta digital e abram os modelos volumétricos que produzimos a partir das maquetes de papel ou plasticina (por digitalização 3D); vamos agora explorar o potencial de desenvolvimento de espacialidades interiores e relação com a luz através da subtracção de vazios e elaboração de percursos; a validação de soluções deverá ser explorada pelo recurso a visitas virtuais aos modelos criados e através da impressão 3D de modelos; deverão ainda ser produzidas secções horizontais e verticais dos modelos para afinação da sua organização espacial e material. As secções deverão ser impressas à escala em papel para que o esquisso permita a apresentação acidental de soluções a afinar e testar no modelo digital. Avaliar se a nossa biblioteca de soluções construtivas contém os objectos BIM (Building Information Modeling) necessários à construção do nosso objecto arquitectónico. Desenvolver os objectos BIM necessários ao controlo construtivo da nossa Arquitectura (...)”. Porque é que as nossas aulas não funcionam assim? A tecnologia já existe. Estamos à espera de quê?
Seja qual for a nossa posição pessoal sobre o ensino da Arquitectura (nós professores caducos porque não somos digital born e portanto inaptos para a função de transmitir conhecimento aos digital natives) o que os digital natives procuram no ensino são as respostas do tipo das que acabei de descrever. Os digital natives sabem que só conseguirão adquirir as competências que os tornarão competitivos no futuro se aprenderem a utilizar as ferramentas profissionais que o presente lhes oferece. Eles sabem que será essa e só essa a sua vantagem competitiva. Ou aprendemos a ensiná-los fazendo uso das ferramentas existentes ou eles não estarão pura e simplesmente interessados.
Saídas profissionais para arquitectos
Quais serão então os outputs profissionais possíveis (e alternativos às saídas convencionais) que o ensino da Arquitectura poderá promover?
Bom, para começar, os tradicionais manter-se-ão sempre, mas como vimos anteriormente serão uma percentagem ínfima do todo.
Nos campos específicos do trabalho do arquitecto temos ainda algumas áreas que terão cada vez mais procura. São elas a reabilitação, a sustentabilidade e o desenvolvimento de smart cities, apresentem-se estas de modo mais isolado ou mais integrado umas com as outras, mas sempre certamente cada vez mais numa perspectiva multidisciplinar, global e multicultural. Nestas áreas, os conhecimentos avançados em tecnologias da informação começam a ter elevada importância. Neste campo a questão é particularmente óbvia: as ferramentas de digitalização 3D, as ferramentas de BIM (Building Information Modeling) e as de CIM (City Information Modeling) incluindo nestas últimas as de análise urbana. Menos óbvias mas ainda neste sector são os conhecimentos necessários ao desenvolvimento de SMART buildings e SMART cities onde o seu recurso durante a conceptualização do objecto arquitectónico se torna fundamental para a obtenção de edifícios e ambientes responsivos capazes de ajustar o seu funcionamento às variações monitorizadas na sua envolvente.
Entrando um pouco na vertente arquitecto/designer o universo de trabalho abre então um vasto campo de oportunidades, onde destaco o design de serviços como uma interessante saída que no limite já nem sequer se dedica (pelo menos na sua dimensão mais conceptual) ao desenho de um objecto. A título de exemplo lanço apenas uma ideia já existente há alguns anos, mas que a nossa sociedade ainda não conseguiu assumir: o automóvel social. O automóvel social é uma espécie de taxi eléctrico sem condutor que serve cidadãos 24 horas por dia. De manhã o seu utente solicita no website o seu automóvel que à hora solicitada se encontra à sua porta. Ao entrar o utente passa o seu cartão de crédito, digita o seu destino e senta-se fazendo o que bem lhe aprouver enquanto o carro o conduz ao destino. Ao chegar, passa novamente o cartão de crédito e o utente e o automóvel vão "cada um à sua vida". O automóvel irá servir outros utentes e, ao final do dia, o utente requisitará outro carro social pelo website. O carro poderá ser requisitado em função das necessidades específicas do utente (p.ex: poderá ter de ser grande para transportar um ou dois clientes importantes) e, portanto, o tipo de automóvel será uma das variáveis de oferta. Para tal conceito temos não só o projecto do veículo em si, mas também o projecto do modelo de negócio, do website, dos interfaces necessários, dos sistemas de manutenção, etc. No seu todo, tal projecto constitui também um projecto smart city no sentido em que dispensa largamente a necessidade de estacionamento reduzindo-o ao número de carros que não estão em serviço. Em teoria, em tal sistema, não existe a necessidade de parqueamento, uma vez que os automóveis estão, em princípio, (pelo menos maioritariamente) sempre em circulação.
Estou ainda em crer que no campo da Arquitectura a maioria dos serviços prestáveis por um arquitecto se farão por via ou com suporte na fabricação digital. Praticamente tudo está por inventar neste campo, terá necessariamente de envolver arquitectos/designers e, os modelos de negócio ainda estão por criar. Quem estiver atento e tiver o conhecimento de ponta necessário, beneficiará por ser um dos primeiros.
Conclusão – Como deveremos organizar os nossos cursos de Arquitectura?
Assim, após as anteriores reflexões, apresento um conjunto de propostas que me parecem essenciais considerar para um curso de Arquitectura capaz de responder às necessidades da sociedade do futuro.
1 – Introduzir conteúdos avançados no campo das novas tecnologias na estrutura curricular dos cursos;
2 – Introduzir tais conteúdos logo no arranque dos cursos;
3 – Flexibilizar o mais possível a oferta de conteúdos;
4 – Flexibilizar a estrutura curricular do curso: não fixar os conteúdos; aumentar o percentual de conteúdos optativos; flexibilizar a estrutura sequencial da aquisição do conhecimento (isto é: deixar à decisão do aluno quando deverá cursar conteúdos específicos em vez de tal lhe ser imposto); flexibilizar o tipo de conteúdos (isto é: permitir e talvez incentivar a aquisição de conteúdos optativos fora dos campos tradicionais da Arquitectura), etc;
5 – Incentivar a elaboração e desenvolvimento de problemas de projecto multidisciplinares e multiescalares envolvendo equipas em colaboração e conhecimentos complementares.
Para terminar, resta-me salientar a importância do conceito anglo-saxónico – school of design. Tal tipo de escola, school of design, pressupõe reunir o máximo de variadas áreas de projecto tirando partido da partilha em comum do método de projecto. Esta estrutura beneficia da possibilidade de construção de sinergias positivas baseadas no seu potencial colaborativo. Tal modelo, acrescido de uma forte componente em tecnologias da informação irá certamente ser o modelo de escola mais procurada pelas gerações futuras, ajustando-se às espectativas de formação do público-alvo: os digital natives.
Espero com o presente texto poder contribuir para que o ensino da Arquitectura se possa actualizar, abandonando definitivamente a sua actual decrepitude, abrindo novos horizontes à profissão e acima de tudo expondo novas oportunidades profissionais àqueles que com paixão ainda procuram estas áreas criativas na esperança de fomentar a novidade e a diferença. ◊
Biografia curta do Autor:
José Nuno Beirão (n.Torres Novas, PT), arquitecto pela FAUTL, 1989.Membro fundador da bquadrado arquitectos, lda (1998-2010).Assistente convidado da FAUTL desde 2001.Mestre em desenho urbano pelo ISCTE, 2005.Doutorado pelos departamento de Urbanismo e departamento de Arquitetura+Engenharia (Design Informatics) da TU Delft, 2012.Professor Auxiliar da FAULisboa desde 2013.