A panificadora de Nadir Afonso
Um caso de destruição misteriosa, precisa e contínua no Nordeste do país
Por Catarina Ribeiro e Vitório Leite
“Aos olhos de um indivíduo, de uma família, ou até de uma dinastia, uma cidade, uma rua, uma casa, parecem inalteráveis, inacessíveis ao tempo, aos acidentes da vida humana, a tal ponto que se julga poder contrapor e opor a fragilidade da nossa condição à invulnerabilidade da pedra.” 1
A destruição misteriosa
Na madrugada de domingo 8 de Abril de 2017, os vizinhos da antiga e abandonada fábrica panificadora de Vila Real, acordaram com um enorme estrondo. Alguns espreitaram pela janela e repararam que parte da fachada estava no chão. Possivelmente encolheram os ombros e voltaram para a cama, pensando que se tratava do início de mais uma reconstrução que, como muitas outras que se têm realizado no nosso país nos últimos anos, começara pela demolição integral do existente. Poderão não ter percebido nesse momento que a devoluta panificadora de Vila Real projectada na década de 1960 por Nadir Afonso ficou, após esse estrondo, em risco de desaparecer.
Os relatos destes vizinhos e as marcas no solo revelaram o recurso a máquinas pesadas, denunciando que a causa do desabamento da fachada, não fora mero vandalismo, como registado. 2
Estas demolições durante o fim-de-semana, não foram o primeiro acto de destruição. Uma breve visita ao local e a consulta de fotografias recentes revelam que, durante os últimos meses, a destruição tem vindo a assolar o interior deste edifício abandonado e inalterado há já vários anos. Uma demolição gradual, realizada em horários que permitem pouca visibilidade. Um empurrão para a destruição total que o tempo e o abandono, sozinhos e desamparados perante uma estrutura tão resistente, não estavam a conseguir levar a cabo.
A destruição precisa
Talvez por mero acaso, estas demolições tenham começado após ter dado entrada na Direcção Geral do Património Cultural (DGPC) uma candidatura para classificação do edifício a Imóvel de Interesse Público, entregue em Maio de 2016 e empreendida por uma estudante de arquitectura, Ana Luísa Morgado, natural de Vila Real, na sequência da sua tese de mestrado em arquitectura sobre o edifício.
Talvez por coincidência, a destruição esteja a incidir em elementos arquitectónicos salientados nessa candidatura, como o antigo forno de pão revestido a azulejos ou a caixilharia em betão que separa o espaço interior e apoia os grandes envidraçados da fachada frontal. Perante a “ameaça” da protecção, a destruição surge apontada aos elementos mais marcantes do edifício.
Talvez por casualidade, os “vândalos” vão demolindo os elementos mais resistentes do edifício. As estruturas metálicas, os portões e os envidraçados, elementos mais valiosos para uma possível venda ou re-utilização, continuam intactos, enquanto as paredes de alvenaria de tijolo, as estruturas de betão e o forno em tijolo burro se encontram gravemente danificados.
E, talvez por se tratarem apenas de vicissitudes de menor importância, não se conhece qualquer queixa feita às autoridades após se ter detectado a destruição e o suposto vandalismo gradual que assola um edifício com provável interesse histórico.
A destruição continua?
Perante a relutância dos serviços da Câmara Municipal em responder àqueles cidadão que os contactaram, na segunda-feira após o fim-de-semana da demolição da fachada, um grupo de habitantes decidiu divulgar as demolições ilegais evidentes em vários meios de comunicação locais e nacionais, tentando obter uma reacção dos responsáveis políticos. Perante a pressão dos meios de comunicação, a reacção foi imediata, tanto por parte do município, que alegadamente mandou uma equipa de técnicos para investigar o acontecimento, como por parte da DGPC, que tomou medidas extraordinárias de aceleração do processo de classificação. 3
Tratando-se de um dos poucos vestígios de Arquitectura Moderna em Vila Real, que para além do seu valor patrimonial incalculável e reconhecível, foi destacado como um importante elemento da memória colectiva da cidade, é no mínimo insólito que os responsáveis políticos não tomem a iniciativa de o proteger ou recuperar.
Numa recente consulta à população de Vila Real, no âmbito de um concurso de ideias de regeneração urbana 4, promovido em 2015 pela CIP e pela Câmara Municipal, o edifício foi destacado como um ponto importante da cidade. Nesta consulta, a panificadora foi o elemento da cidade mais referenciado para uma possível recuperação. E a sua relevância terá sido tão evidente que, embora afastado do centro histórico da cidade, o edifício foi objecto do concurso de ideias de arquitectura para a regeneração urbana da cidade, com apresentação pública dos resultados em Setembro de 2015. Este concurso e o reconhecido interesse arquitectónico do edifício, sobre o qual se têm escrito vários artigos e realizado extensos trabalhos académicos, de nada parecem ter valido para a sua salvaguarda, nunca se tendo revelado da parte de nenhuma instituição da cidade, qualquer interesse ou intenção na sua recuperação.
As características morfológicas e construtivas da Panificadora são: a estrutura em betão armado que permite a configuração aberta e flexível das suas naves; as coberturas abobadadas, ligeiramente apontadas em diagonal, que facilitam a iluminação natural de todo o espaço e os revestimentos, correntes e funcionais, sugerem um projecto de reabilitação de custos controlados, com poucos recursos, e facilmente adaptável a diversos usos e programas.
No entanto, os responsáveis políticos teimam em ignorar a opinião de grande parte dos habitantes que os elegeram e que desejam a recuperação deste elemento fundamental da história recente da sua cidade.
Hoje, ainda sem protecção, a panificadora projectada por Nadir Afonso continua à mercê dos “vândalos”, que tanto desejam a sua demolição. ◊