O Devir-Forma da Matéria
Recensão crítica do livro Architectonica Percepta: Texts and Images 1989-2015, de Paulo Providência
Por Susana Ventura
O livro Architectonica Percepta: Texts and Images 1989-2015, de Paulo Providência com fotografias de Alberto Plácido, foi publicado no final do ano de 2016 pela Park Books, uma editora Suíça dedicada a livros de arquitectura e áreas que lhe são próximas. Providência é arquitecto e Professor de arquitectura na Universidade de Coimbra, cuja obra está profundamente enraizada numa investigação persistente que ultrapassa a rígida nomenclatura da disciplina de arquitectura, procurando incorporar uma reflexão introspectiva a partir das ligações próximas encontradas com outras disciplinas, nomeadamente, com a filosofia, a arte, a geografia, a antropologia, entre outras. Esta característica singular do processo, do pensamento e da obra de Providência é, também, o que torna este livro num exemplo raro e testemunha de como a arquitectura não está fechada nos seus próprios preceitos, mesmo contendo um título enigmático (se não irónico), uma vez que não apresenta as regras ou as doutrinas da arquitectura do ponto de vista da norma (percepta, em Latim, contém, igualmente, este significado), mas desenha uma constelação de ideias, autores, obras de arte e de arquitectura, que, nas suas identidades expressivas, remetem para problemas que, na maior parte das vezes, estão mais próximos das preocupações e dos discursos filosóficos. Providência traz estas preocupações para o coração da disciplina de arquitectura, porque ajudam a questionar os fundamentos, os mal-entendidos e as oposições que a disciplina tem negligenciado, como estão, sobretudo, intimamente ligadas à própria vida. A este respeito, a citação que utiliza de Pikionis pode resumir e comprovar a sua própria investigação no livro: “A arquitectura, mais do que qualquer outra arte, pode trazer a poesia para a vida quotidiana”. 1
Texts and Images 1989–2015
A partir do estrito ponto de vista da disciplina de arquitectura, é verdade que o livro apresenta uma série de textos e imagens produzidos entre 1989 e 2015, como afirma o subtítulo, levando o leitor a acreditar que se trata de uma monografia tradicional da obra de Providência. No entanto, nota-se, imediatamente, que a palavra “obra”, geralmente utilizada neste tipo de livros, está ausente do título e do subtítulo. Providência prefere, talvez seguindo o trabalho de Bergson a quem alude no preâmbulo do primeiro ensaio, utilizar a palavra “imagens”, colocando, desde logo, um problema relativo à representação em arquitectura, em que a própria forma do livro está, igualmente, em questão: como é que se representa e/ou apresenta arquitectura? E como é que se representa arquitectura através da palavra escrita e de imagens, combinando os dois media? E, mais importante ainda, esta forma específica de pensar e fazer arquitectura (que, como veremos mais tarde, intensifica a questão da representação em si mesma)? Existem vários mecanismos ao longo do livro que nos permitem responder a estas questões e, mais ainda, entrar no processo e no pensamento de Providência. A principal evidência surge quando os projectos, tradicionalmente representados pelos desenhos técnicos, como plantas, cortes e alçados, aparecem quase como um apêndice no final do livro antes das notas (que, por sua vez, parecem formar uma iconografia dos textos), reduzidos à expressão mínima necessária como se se tratasse de uma nota curiosa para aqueles que desejem saber um pouco mais sobre o espaço das fotografias. As fotografias assumem, então, um duplo propósito: são a principal representação da obra construída (não obstante, mais próximas do trabalho artístico de Plácido do que das suas fotografias de arquitectura, revelam o olhar poético do fotógrafo que não está apenas a documentar fotograficamente os edifícios, trazendo outra riqueza para o trabalho e para o livro, à semelhança do papel das fotografias de Hélène Binet na famosa monografia de Peter Zumthor) ao mesmo tempo que permitem ao leitor responder a várias questões que Providência deixa, propositadamente, em aberto nos seus textos. Estes, por sua vez, não são sobre a obra de Providência (não existem, em momento algum do livro, descrições escritas dos edifícios), apresentando aquelas preocupações e problemas que não podem ser separados de uma prática que procura a experiência da presença do facto arquitectónico em si (como veremos, através do devir-forma da matéria).
Se poderíamos entender o livro como uma colecção de fragmentos, Providência fornece-nos a chave para o ler (e ver) como um todo, especialmente quando nos relembra a relação que existe entre as fotografias de Lewerentz da viagem a Itália e a obra construída deste: “Este carácter fragmentário, ou melhor, o enquadramento de um fragmento de uma realidade visitada, dá a estas fotografias uma qualidade enigmática, o que nos impulsiona a interpretá-las como um todo, como pequenos pedaços de um grande mosaico que só faz sentido quando visto na sua totalidade. Estes fragmentos podem, também, ser lidos como pequenas narrativas parciais, pequenos contos de fantasia. Narrações fragmentárias, peças de um mosaico, partes de um caleidoscópio que compõem e recompõem imagens diferentes a partir dos mesmos elementos conforme o ângulo de visão”. 2
É neste texto específico que Providência nos ajuda, igualmente, a compreender as fotografias de Plácido da sua própria obra e o papel que lhes pode ser atribuído no livro. Referindo-se, ainda, às fotografias de Lewerentz: “Estas imagens removem o carácter contemplativo que fotografias assim poderiam ter, conduzindo, em vez disso, a uma experiência sensorial das texturas dos materiais que as formam. Desta forma, a imagem fotográfica produz uma percepção sensorial háptica que já não é exclusivamente óptica. Esta experiência é, igualmente, reconhecível nas obras arquitectónicas de Lewerentz, em que o acto de caminhar nos empurra para entrar em contacto com a parede, para a experiência física da nossa mão a tocar nos materiais e na parede”. 3 As fotografias de Plácido produzem esta mesma percepção háptica da obra de Providência. E certamente que as fotografias foram seleccionadas não apenas por documentarem os edifícios, mas também pela qualidade estética que possuem, trazendo à sua superfície a experiência sensorial dos edifícios. As primeiras fotografias, com que o livro abre, do Lavadouro e Balneário Públicos de São Nicolau, no Porto, são um exemplo notável do que é a experiência do edifício, não do ponto de vista do olhar de um visitante, mas do da pessoa que habita o espaço e o utiliza diariamente, revelando, ainda, a matéria que preenche o espaço, a matéria expressiva (curiosamente, ao longo do livro, existem pouquíssimas fotografias de largos planos exteriores, sendo, maioritariamente, de espaços interiores ou espaços intersticiais, onde luz e sombra se entrelaçam e desenham espaços virtuais — que são fundamentais para compreender a relação entre percepção e memória seguindo o pensamento de Bergson). As matérias de expressão da arquitectura devêm pura presença nas fotografias. Sentimos a água, o seu barulho a correr pelos canos, inundando os tanques e caindo sobre o chão, sentimos o cheiro do sabão borbulhante, a força dos corpos lavando debaixo da luz que cai sobre eles desde cima. As fotografias não só desvelam uma qualidade poética do espaço interior, como também nos aproximam da fisicalidade dos corpos e, neste caso específico, da dura tarefa de lavar, esfregar, as roupas (e o espírito). Mais tarde, quando nos cruzamos com o ensaio sobre a obra de Peter Zumthor, intuímos já que Providência deseja “alcançar uma arquitectura de presença”, mas, ao contrário de Herzog e Zumthor, não nega a representação, como é a própria representação (a fotografia, neste caso) a abrir espaço para que alguém entre no espaço além da imagem, 4 “deixando cair os [seus] véus”. 5
Outra questão surge da colecção de fotografias: que presença é esta que ganha vida na obra de arquitectura, ou, por outras palavras, aparece na forma? A resposta é-nos revelada ao longo do livro e de forma mais aguda nos ensaios The Memory of Matter: Pikionis and the stones of the route to the Acropolis e Type and Antitype: the Becoming of Form and Organic Expression. Se no primeiro ensaio Providência está mais preocupado em pensar sobre a possibilidade de criar e desenhar uma obra de arquitectura a partir da “matéria na qual a forma aparece”, 6 dando como principal exemplo o projecto para a área envolvente da Acrópole de Atenas, de Dimitris Pikionis, e no qual reconhece “a invisibilidade ou ausência da forma”, 7 no segundo ensaio, relembra Goethe e o seu estudo sobre a metamorfose das plantas: “A tarefa da arte, da representação, torna-se a de capturar o momento em que a forma, na sua génese, contém em si mesma as determinações das formas posteriores. A forma é uma manifestação de vitalidade e, por conseguinte, dinâmica, em constante mutação”. 8
A forma como problema remonta aos Gregos e, como Maria Filomena Molder 9 nos recorda, foi apenas com Nietzsche que se compreendeu plenamente o que deve ter sido uma evidência para os próprios Gregos: “O amor à forma, enquanto constituição de uma figura sustentada por um princípio interno de perfeição e beleza, engendra-se no coração de um combate nunca levado ao seu termo, não contra o caos, mas como resposta ao caos, um prolongamento projectivo da compreensão que supreende a inseparabilidade das forças destrutivas e criativas da natureza, da vida”. 10 E “se a forma se atreve a anular as forças do caos, não é menos evidente que as forças, insubmissas, retornam. Sempre que acreditamos poder anular o caos, operando a sua superação definitiva, ficamos presos àquilo a que poderíamos chamar uma forma morta, isto é, aquela que se petrifica numa falsa configuração, assentando no mal-entendido que consiste em confundir a força com o inimigo da forma, uma vez que o inimigo da forma não é a força, antes a sua imobilização total”. 11 A ideia de Goethe de metamorfose implica a consciência dos perigos que existem quando a forma enfrenta as forças do caos, no entanto, Goethe vê, igualmente, nesse encontro um impulso de especificação, uma força de perseverança que permite que algo reste e persista. A obra de arquitectura é um vestígio de tal combate, resultante de um desejo de criar uma permanência, uma presença, que, no entanto, contém, ainda, na sua identidade expressiva, uma centelha do que antes foram as forças insubmissas do caos, “as forças criativas da natureza, da vida,” devolvendo-nos a inquietação de uma beleza maior que poderemos, então, descobrir na forma.
Ao longo do livro, Providência tenta aproximar-se desta arquitectura de presença (que não deve ser confundida com uma forma petrificada, mesmo que a obra seja de madeira e pedra), no que a sua experiência pode revelar, todos os espaços virtuais que contém e as memórias que detém, uma arquitectura que resulta do devir-forma da matéria (sendo a matéria o jogo informado das forças criativas), que tem uma aura, uma poesia e beleza ocultas, ansiando pelos corpos mesmo na sua ausência. Providência escreve sobre várias obras nas quais reconhece estas características, mas em momento algum menciona a sua própria obra, o que faz com que este livro, no fim, não seja apenas sobre a sua prática, mas, sobretudo, sobre uma série de preocupações que a arquitectura não deve desistir de pensar, nomeadamente sobre os dualismos entre forma e matéria, percepção e experiência, e como estes problemas aparecem intrincados na criação e experiência de uma obra de arquitectura (de onde o conteúdo crítico do livro). ◊