Arquivo. Arquitectura. Território.
A propósito das exposições, Arquitectura em Concurso: percurso crítico pela Modernidade portuguesa e Inquéritos ao Território. Paisagem e Povoamento
Por Lucinda Fonseca Correia
Decorreram simultaneamente, em Lisboa, as exposições Arquitectura em Concurso: percurso crítico pela Modernidade portuguesa e Inquéritos ao Território: Paisagem e Povoamento 1. A primeira exposição lança uma grelha de análise diacrónica dos concursos do último século em Portugal, visível na evolução das temáticas propostas: representação, instituição, espaço público, cultura, património, paisagem, lazer, infraestrutura, educação, profissão, habitação, cidade e território. O concurso é aqui “exposto”, por um lado, como revelador de processos que pretendem dar respostas a questões concretas, resultando em tomadas ou ausências de decisão, avanços e recuos com repercussões sociais, económicas e políticas e, por outro lado, como fundador duma plataforma crítica daquelas temáticas, através de sucessivos debates públicos. A segunda exposição apresenta arquitectos, artistas, etnólogos, fotógrafos, geógrafos e músicos que utilizam a fotografia, o filme e os registos gráficos herdados dos estudos etnográficos e da antropologia cultural, permitindo-nos construir um percurso por vários aspectos do país como território, do século XIX até hoje, enquanto narrativa ficcionada por quem vê. Esse território, apresentado como “um lugar de indagação e de reflexão” 2 convida-nos à sua releitura, através do confronto da fotografia e do filme com imagens e documentos impressos, que nesta exposição em concreto se articulam com objectos da colecção permanente do Museu Nacional de Etnologia.
Embora num primeiro olhar estejam nas antípodas uma da outra, Arquitectura em Concurso 3 e Inquéritos ao Território 4 são duas visões críticas sobre a arquitectura na sua relação com o território. Consideramos que, subjacente às duas exposições, utilizando um conceito de Foucault, está a ideia de arquivo, não como contentor estanque e estático, mas como “sistema geral [dinâmico] da formação e da transformação dos enunciados” 5, que estabelece um domínio onde se reinscrevem, articulam e manipulam os conteúdos no espaço e no tempo. Entendamos que estes enunciados, podem ser repetidos em cada momento histórico e que, em cada acto de repetição, ocorrem as “actualizações” do seu sentido e da sua própria identidade. Em cada novo “campo de utilização” 6 ou “superfície de inscrição” 7, actualizam-se pois as relações entre o passado e o futuro, revelando-se um fio condutor inscrito nas duas espacialidades inauguradas através do acto expositivo. A montante, temos o inquérito, instrumento fundamental de identificação e caracterização dos problemas do território, através do qual podemos imaginar e reconstituir o país real. A jusante, o concurso, mecanismo criterioso de selecção da proposta mais adequada, como uma resposta possível da arquitectura aos problemas plasmados nas premissas do programa. O inquérito indaga, descobre e manifesta. O concurso responde, propõe e intervém. Ambos descrevem um campo conceptual onde se perpetua a sua condição indagadora e congregadora de perspectivas múltiplas, às vezes até mesmo contraditórias; ambos sublinham uma continuidade interpretativa, para além do seu suporte físico 8, através de reflexões teóricas reunidas em duas publicações.
É consabido que a Modernidade, na continuidade do pensamento que está na sua origem, vem emprestar um carácter diferente ao espaço, engendrando um novo Homem que afeiçoa a Natureza aos seus interesses e a transforma a partir das suas próprias visões do mundo. A ideia de Colonialismo, tal como hoje o entendemos, por exemplo, e apenas para considerar um aspecto polémico da questão, alicerça-se numa forma de economia (europeia) que o Renascimento vai inaugurar, ousando propôr novas urbanidades, que, de algum modo, dão um novo carácter às acções da arquitectura e do urbanismo: o de racionalizações sistematicamente pragmáticas. Estas atribuíram ao arquitecto o papel de mediador: conceptualizando e respondendo ao interesse público e às necessidades da sociedade num dado momento histórico com um “projecto”, de um lado, orientando e garantindo que a “obra” é a correcta manifestação do programa que esta deverá cumprir, do outro. Precisamente por isto e para além das dimensões já expostas, emerge uma terceira dimensão que se constitui no cruzamento da genealogia dos concursos com a identidade do território construída a partir dos inquéritos – o desenho do concurso. Esta terceira dimensão, onde se lançam as premissas para a encomenda pública, deve partir da relevância daquilo que o concurso questiona e da lógica das problemáticas às quais este pretende responder. Dito de outro modo, seria concebível que os arquitectos fossem confrontados com “concursos de programas” onde, a partir do mapeamento, da identificação e da sistematização de problemas concretos se justificariam os “concursos de propostas”. Aliás, os “concursos de propostas” deveriam legitimar-se através da sistematização da Big Data resultante de inquéritos ao país real.
Dafne Editora, Porto, 2016
A Oficina, CIPRL/ Sistema Solar (Documenta), Maia, 2016