Reportagem de Resposta Rápida sobre a Trienal de Arquitectura de Oslo
Por Inês Moreira
“After Belonging defende que o fazer do lugar e a construção de um sentido de identidade constituem apenas as agendas mais típicas, entre outras, para as quais a arquitectura pode ser mobilizada. (…) Este projecto [a Trienal] pretende examinar criticamente como a arquitectura é articulada para fins específicos na transformação da pertença, e procura especular sobre trajectórias alternativas para a produção de arquitectura.”
Catálogo After Belonging, texto dos curadores, p. 15.
A Trienal de Arquitectura de Oslo (OAT) inaugurou no início de Setembro trazendo a Oslo uma comunidade internacionalmente mobilizada de profissionais, pensadores e académicos da arquitectura. Tendo vencido a open call curatorial, Luís Alexandre Casanovas Blanco, Ignacio G. Galán, Carlos Mínguez Carrasco, Alejandra Navarrete Llopis e Marina Otero Verzier reúnem na After Belonging Agency para analisar e expor o tema curatorial proposto: After Belonging – the objects, spaces and territories of the ways we stay in transit. (Depois da Pertença – os objectos, espaços e territórios dos modos como nos mantemos em trânsito). A proposta apresenta duas grandes exposições – On Residence e In Residence –, uma ambiciosa conferência internacional de abertura e um livro especialmente editado publicado pela Lars Müller Publishers, a par de uma academia de estudantes e outros eventos paralelos.
Como noutras grandes exposições internacionais, durante os dias de inauguração dezenas de convidados apresentaram e debateram o seu trabalho e investigação, tanto no referido programa oficial, como nos eventos paralelos. A resposta por parte do público e dos media apreendida no imediato é dupla: uma curiosidade muito positiva por parte dos interessados em diálogos multidimensionais em arquitectura como uma criação espacial híbrida humano/cultural e, por outro lado, um cepticismo duro por parte dos ainda estritamente interessados numa percepção mais objectual/autoral da arquitectura, entendida como uma disciplina de resolução de projecto. As reacções espelham um entendimento contrastante do que é a arquitectura nos dias de hoje e o que ela deveria estar a fazer. Os curadores afirmam claramente o seu objectivo de “especular sobre trajectórias alternativas para a produção arquitectónica”, aliado a pesquisas de campo e práticas cartográficas desenvolvidas por arquitectos que operam como investigadores e activistas por todo o mundo.
Oslo/Noruega
Oslo, e a Noruega, são um dos territórios mais ricos (e mais caros), onde a imigração e a população cresceram 30%. O país está a desenvolver novos investimentos em arquitectura, como se pode verificar pela quantidade de guindastes na linha do horizonte da cidade, com vários novos empreendimentos e edifícios públicos em construção. Oslo é um destino atraente para ver, projectar e igualmente construir arquitectura de alto nível, uma terra de oportunidades para profissionais – mas que divulga, no entanto, Snøhetta, acima de tudo. Muito diferente da exuberância de outras economias baseadas no petróleo, a Noruega está – através do programa Future Built , uma agência de três-quatro cidades, incluindo Oslo – a explorar novas abordagens à sustentabilidade ambiental e arquitectónica, desde a concepção/construção a toda a sua duração de vida, implementando e monitorizando novos concursos de arquitectura, nos quais a indústria é convocada a reduzir transportes, utilizar materiais ecológicos e reduzir o consumo de energia ao longo do ciclo de vida dos edifícios. Todos os anos, 50 novas escolas públicas são construídas/remodeladas, há novos projectos de habitação de renda baixa e edifícios públicos – a imprensa pôde visitar os locais dos principais edifícios em construção: o New National Museum, de Klaus Schuwerk, e o Munch Museum, de Juan Herreros, ambos na baía e próximos da New Opera House, da autoria de Snøhetta. Ao mesmo tempo, o país investe em ambiciosas instituições culturais que promovem a cultura arquitectónica e a experimentação espacial, nomeadamente, o DOGA (o Centro Norueguês de Design), a secção de Arquitectura do National Museum, a Trienal de Arquitectura de Oslo, que se assume como “uma Trienal orientada para o conhecimento”. Como o programa demonstra, há uma conversa multidimensional com a produção arquitectónica “convencional”, apoiando-a, ouvindo-a e interagindo com ela de modo efectivo.
Trienal de Arquitectura de Oslo
Para além da esperada e estrita arquitectura ambiciosamente global (e seus interesses), Oslo está, ao mesmo tempo, a promover a sua Trienal de Arquitectura como plataforma de crítica e análise cultural do construído e do fenómeno urbano no mundo globalizado. As afirmações críticas das edições de 2013 e 2016 da Trienal abordaram as preocupações ecológicas e sistémicas provocadas pelas assimetrias do mundo – a exploração de energia/petróleo, o aquecimento global e predação das matérias primas do globo são um denominador comum. As agendas e resultados das indústrias do imobiliário e da construção e a da crítica cultural não estão (obrigatoriamente) a coincidir, embora estabeleçam em Oslo um diálogo maduro: não só são patrocinadoras do programa cultural da Trienal grandes empresas do imobiliário e da arquitectura, como ambos apresentaram na conferência internacional os seus argumentos contrastantes.
Como política de práticas, as propostas/perspectivas antitéticas ecoaram na conferência: do empoderamento das comunidades contra o negócio da caridade, por Yasmeen Lari do Paquistão, a abrigos prefabricados para refugiados da Fundação IKEA; ou a presença do marketing do bairro Barcode, às intervenções de menor escala do atelier japonês Bow-Wow ou dos arquitectos noruegueses TYIN; do projecto no estrangeiro da Biblioteca de Alexandria de Snøhetta, à exposição de Michel Feher sobre criação de valor corporativo dentro da economia contemporânea. Posições e escalas caleidoscópicas reunidas em Oslo – global/local, gestor/activista, crítico/negocial, objectual/orientado para o conhecimento – com as suas muitas tensões.
© Istvan Virag
© Istvan Virag
© Istvan Virag
Exposições/Peças
No coração da Trienal estão duas exposições que respondem de forma diferente à questão de “Pertença”: uma focando-se na investigação de autores de todo o mundo e a outra trazendo respostas específicas para locais específicos identificados pela After Belonging Agency.
On Residence (DogA) é um repositório labiríntico de processos em curso (espaciais, materiais, visuais) que explora acima de tudo, através de pesquisa de campo, dezenas de locais específicos no mundo global, distribuídos numa narrativa esquizofrénica: borders elsewhere (sobre territórios), furnishing after belonging (sobre objectos e culturas materiais), sheltering temporariness (habitação e políticas), technologies for a life in transit (redes e geografias), markets and the global home (economias globais de pertença). Após uma avassaladora primeira impressão do excessivo aparato cenográfico, as peças fragmentárias imploram por atenção – de instalações de mobiliário a vídeos, de testemunhos em registo sonoro a fotografias emolduradas.
© Istvan Virag
A segunda exposição, In Residence, é uma resposta a lugares e problemáticas específicos em Oslo e no mundo, e desenvolve-se tanto “relatando” dimensões espaciais particulares de pertença presentes nos países citados (Risaralda/Colômbia, Nova Iorque, Lagos, Oslo, Kirkenes, Dubai, Prato/Itália, Estocolmo), como apresentando propostas, nalguns dos locais, de micro intervenções, por equipas distintas. A cenografia sinuosa permite uma forte experiência espacial, no entanto, os conteúdos curatoriais mantêm uma certa fragmentação. A legibilidade de In Residence é maior, talvez a quantidade menor de projectos e a clareza da encomenda a torne mais fácil ao público.
© Istvan Virag
Como o projecto curatorial da OAT pela After Belonging Agency opera uma narrativa por camadas espacial/editorial, visual e textual, explorando tecnologias, técnicas e materiais requintados, exige um esforço substancial para compreender o todo e explorar o detalhe. Os seus autores são tendencialmente grandes colectivos e consórcios informais, tornando difícil recordar autores. Expõe, mapeia e sensibiliza para problemáticas (antagonistas) de pertença. Mesmo após algumas visitas, as exposições convidam a uma análise mais atenta da maior parte dos projectos apresentados, pois oferece uma condensação actual de corpos de trabalho muito maiores. Da visita imersiva surgem algumas linhas fortes: a escala macro, o globo e o Antropoceno, que podem ser observados no Museu do Petróleo, pela Territorial Agency, apresentada na conferência inaugural, marca o tom: por favor, mantenham o petróleo no solo, não recorram ao drilling. Com esta interpelação, tanto as preocupações de sustentabilidade como a economia de riqueza encontram uma imagem de oposição do sofrimento do globo (aquecimento, fogos, poluição). A escala macro da relação natureza/cultura, apresentada pela palestra multi-escala de Eyal Weizman/Forensic Architecture, revela como a desumanização da natureza está a permitir a exploração de matéria-prima, como na Indonésia, onde fogos florestais massivos parecem estar relacionados com a expansão de plantações de óleo de palma, ameaçando tanto animais (orangotango) como a atmosfera e o clima globais. O projecto Air Drifts [em colaboração com a NASA] apresenta imagens de movimentações atmosféricas e as implicações da disseminação de partículas produzidas pelo homem num novo ecossistema global. Do solo, a governação geopolítica da região do Ártico e a fronteira entre a Noruega e a Rússia, em Kirkenes, e a permeabilidade de ambos os territórios numa relação Trabalho-Natureza, trazida por Nabil Ahmed e Dámaso Randulfe, expõe como a necessidade radical de pertença reúne forças políticas antagónicas.
Questões relacionadas com a pertença ao contexto local, a problemática da migração e a construção de identidades são uma linha social presente em várias peças/relatos. Um mapa comparando a urbanidade, escala e inserção de mesquitas e lugares de culto devotos ao Islão ao longo de 1.400 anos pode ser visto em The City of Islam, por L.E.F.T. com Laurence Abu Hamdam, trazendo a arquitectura religiosa histórica para primeiro plano, num momento em que o Estado Islâmico está a demolir – e a afirmar – a arquitectura como um dos seus gestos políticos. Colocando a realidade nacional síria, e o ataque sobre ela, em destaque, o projecto muito discreto e subtil de Sigyl, The Monuments of Everyday: the revolution is a mirror, oferece um vislumbre reflectido de realidades fragmentadas que apenas percebemos a partir dos nossos contextos distantes. Desobediência civil (espacial) relacionada com lutas de pertença, tanto de propriedade como de nacionalidade, são expressivamente apresentadas em Welcome Hotel, pelo gabinete SIC, uma pesquisa sobre a prática de resistência a despejos em Madrid devido ao incumprimento de crédito, numa grande acumulação de casos pré e pós processos de despejo. E Movement as civil desobedience: mapping migration and solidarity on Lesvos Island, que revela a acção de campo de activistas na Grécia para apoiar o fluxo de refugiados legais e ilegais que fogem da guerra através da Turquia.
© Istvan Virag
A dimensão económica do espaço e materialização arquitectónicos é exposta por HUSOS (Espanha/Colômbia) através das remessas enviadas para a Colômbia de emigrantes colombianos a trabalhar no estrangeiro para construírem a casa de sonho na terra natal, a onde regressar no lugar a que pertencem. O projecto Isle of Pleasures, de Ana Naomi de Sousa, Paulo Moreira e Petur Waldorff, relata as tensões entre migrantes económicos europeus em Angola, o seu luxo e os usos locais do resort que ocupam. Também reportando a habitação temporária e identidades ficcionais difusas, o documentário de Ila Beka e Louise Lemoine sobre o Airbnb em Copenhaga expõe como as expectativas de pertença são hoje em dia um sonho ficcional e uma manobra comercial.
© Istvan Virag
Outra linha diz respeito a questões de vidas e bens em permanente fluxo, as políticas e tecnologias que os sustêm, e sobre a sua produção e cristalização. A referência ao mobiliário de baixa qualidade tipo IKEA a revestir espaços interiores globais com a sua cultura material low cost espelha o relato sobre edifícios para armazenagem individual em Nova Iorque, uma paisagem de acumulação temporária de posses por pessoas em trânsito.
A desconstrução de amostras de peças de qualidade retiradas em operações selvagens de edifícios desmantelados, proposta por ROTOR/ROTOR, ecoa a circulação de materiais de construção e mobiliário, o seu dispêndio e a possibilidade de repensar o fluxo e os ciclos sobre os quais a arquitectura opera. A Chinatown industrial de Prato, em Itália, é a demonstração mais paradoxal de pertença e identidade: armazéns e fábricas geridas e operadas por trabalhadores e empresas chineses em Itália, produzindo com a etiqueta Made in Italy.
Trienais
Relembrando os dias de inauguração da Bienal de Arquitectura de Veneza, em Maio passado, numa das reuniões paralelas de curadores profissionais abordou-se o que parecia ser questão de senso comum e resolvida: Bienais vs. Museus. Se as bienais são encontros culturais para debater e expor o seu próprio tempo, e os museus são repositórios históricos de trabalhos de autores, onde está o limite (ou porquê a confusão) do raio de acção de ambos, evento e instituição? Deveriam as bienais importar-se com o legado e a continuidade, ou, pelo contrário, deveriam continuar a reinventar os seus formatos, como fez por exemplo a Bienal de Bergen? Estas questões parecem gastas, mas estão no entanto implícitas nas respostas radicais que temos ouvido por estes dias, entusiasmo vs. cepticismo.
A abordagem programática desta Trienal é clara: não se compromete com a divulgação de autores de arquitectura nem objectos concluídos mas, em vez disso, experimenta e relata enigmas contemporâneos onde a arquitectura possa responder/espelhar questões de pertença, habitação e vivência num amplo ecossistema. A OAT parece estar comprometida não com o conhecimento e herança disciplinar, mas em providenciar as bases para testar e estender os limites do campo. E embora nem todos os visitantes estejam disponíveis para fazer parte dos seus discursos – uma vez que o jargão performativo, de linguagem ou social exigem uma certa ”literacia” (como qualquer área do conhecimento) – Oslo parece estar comprometida em continuar a dedicar o seu evento trianual a experimentar, pesquisar e expor as ansiedades do mundo. ◊