De La Ville à la Villa – Chandigarh Revisited
Uma exposição na Villa Savoye, Paris
Por Marta Jecu
Pó, condições climáticas, silêncio e som, ferrugem e ar são para Jonathan Hill2 ausências de matéria percepcionadas que, no entanto, se constituem fisicamente como arquitectura. No seu fascinante livro Immaterial Architecture representa este modelo de uma arquitectura que nasce do imaterial, contra a casa modernista que considera consistente, autónoma, sem desperdício. Transparência e luz, que personificam o modernismo, são para Hill uma camuflagem paradoxal – um dispositivo exclusivamente visual – destinado a isolar e prevenir a transmissão do poder de auto-ssuficiência do edifício. Numa leitura quase literal, Hill fala do simbolismo do pó em relação à arquitectura, como matéria vivida, expelida como detrito indesejável do edifício modernista. “Viver com o pó pode até ser poético no sentido de viver com um bocadinho de tudo do planeta.”3
Aprendemos que4 enquanto o modernismo considerava as partículas estranhas, os acidentes, o pó como extrínsecos e fora do lugar no contexto da relação funcional indivíduo-habitante, Le Corbusier defendia que as paredes brancas são moralmente superiores a outros acabamentos.
Intervenções em arquitecturas modernistas são, pois, por definição, um desafio à ideologia, estrutura e funcionalidade que estas formas induzem ao espaço e ao utilizador. Sílvia Guerra, curadora e directora portuguesa do laboratório artístico Lab’Bel, fala dos seus dois projectos curatoriais na Ville Savoye de Le Corbusier, em Paris: o primeiro, The Light Hours, com o artista Haroon Mirza, 2014; e o segundo, De La Ville à la Villa – Chandigarh Revisited, com os artistas Portugueses Ana Pérez-Quiroga e Rodrigo Oliveira, 20165. Sílvia Guerra afirma: “Há sempre qualquer coisa nesta casa que te devolve à casa… Para mim não há espaço neutro e no meu trabalho curatorial jogo com os códigos do que até um cubo branco pode representar. Nos projectos na Villa Savoye estava interessada em criar diálogos entre os artistas e a arquitectura, trabalhando com as funções destes edifícios modernistas. A Villa Savoye é uma casa de fim de semana para um casal com um filho que foi a dada altura abandonada. Funciona actualmente como um monumento nacional esvaziado de vida. Cada vez que voltava a este espaço, via o edifício consumido por este vazio, velho, usado. Mas compreendia também que este património modernista continua flexível em termos de arquitectura: o monumento em si pode quase desaparecer quando se põe alguma coisa dentro, por ser tão estruturado. A arquitectura condiciona-te. Em ambas as exposições os artistas estavam a instalar o seu trabalho no quarto dos pais e no quarto da criança na precisa localização da cama, sem conhecerem a função original daquele sítio. É por isso muito interessante fazer uma exposição nesta casa, pensando nas suas funções.”6
A utopia de uma House of Frictionless Living [Casa de Vivência sem Fricção] é a origem do muito conhecido dito de Le Corbusier de que a casa é um ‘máquina de viver’. Alexander Klein, um contemporâneo de Le Corbusier, apresentou em 1928 o conceito de uma vida privada destituída de interacção social. O seu projecto de uma Casa de Vivência sem Fricção fala da casa em termos de uma máquina e oferece exemplos de projectos que reduzem a possibilidade de encontros acidentais dentro da casa, que poderiam levar a fricção social7. O funcionalismo requeria uma relação directa entre a forma e o comportamento que ela gera, afirmando um princípio de determinismo. Neste sentido, o partidário e utilizador do modernismo é olhado como passivo e previsível na sua assimilação arquitectónica. Os seus movimentos e reacções podem ser pré-projectados de acordo com necessidades universais8.
Os trabalhos dos dois artistas portugueses Ana Pérez-Quiroga e Rodrigo Oliveira em De La Ville à la Villa trazem – cada um à sua maneira – um desvio da consistência modernista e uma ambiguidade multifuncional à lógica arquitectónica. O microclima imersivo da villa é duplicado pela experiência de outro conjunto modernista construído por Le Corbusier em Chandigarh, Índia (projecto de 1953 e concluído por volta de 1968) que os dois artistas visitaram juntos em 2014. Os objectos escultóricos, referências e desenhos de Rodrigo Oliveira e as fotografias, tecidos, peças de mobiliário e objectos do quotidiano roubados por Ana Pérez-Quiroga movem a casa em direcção ao esquecimento das suas referências, fazendo derivar a sua beleza não do cumprimento das suas funções, mas daquilo a que Bernard Tschumi chamou de prazeres da arquitectura9. Entre estes estão o prazer da ‘inutilidade’ e o ‘prazer sensual do espaço em conflito com a ordem’, prazeres que – como esta exposição parece transmitir – a arquitectura de Le Corbusier teria usufruído na Índia, onde os ruídos fervilhantes, o calor, os cheiros, o lixo orgânico e as movimentações das pessoas – dormindo no exterior em vez de no interior – penetravam a arquitectura.
© Michael Staab
O visitante da Villa Savoye é recebido pelas cortinas de Ana Pérez-Quiroga, que incorporam o sistema de abrigo efémero de tecido e bambu que oferece sombra e um lugar para descansar. Sílvia Guerra observa: “Trazer estas cortinas para dentro do perímetro desta arquitectura é um manifesto porque elas aparentemente não têm qualquer ‘utilidade’ numa casa dos arredores de Paris, mas podiam de facto ser apropriadas pelas pessoas que aqui trabalham durante o horário de verão.”10
Os objetos usados de Ana Pérez-Quiroga, que foram pontualmente roubados durante uma viagem à Índia, e simplesmente colocados no chão da villa, junto da história da viagem em 30 imagens e uma série de livros de artista, infiltram organicamente na matéria construída momentos da sua própria vida. Ela experiencia-os antropologicamente como fragmentos de prática artística no quotidiano, tal como os seus objectos resultantes de eventos performativos. Dentro da villa – como um monumento importante do património nacional francês – os seus trabalhos sugerem uma subversão da autoridade do ‘museu’ e do seu lugar, com a sua relação historicamente ambígua com a forçada apropriação, roubo e frequentemente abusiva recontextualização.
Ana Pérez-Quiroga "Self-portrait of a female artist as part of society – Travel to Auroville, 2014", imagens produzidas pela app Instagram, partilhadas de imediato nas redes sociais, Facebook, Twitter e Blog
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“Tomando como ponto de partida o design, comecei a divergir das qualidades coercivas do funcionalismo. As pessoas podem sentar-se com beleza também numa pedra. Comecei a optar pelo dito ‘A forma segue a ficção’. Não gosto de pensar em termos de ‘máquinas’ porque para mim os objectos são entidades emocionais. Os Indianos vivem nas ruas, enquanto o complexo Chandigarh parece não emergir das necessidades quotidianas, mas antes representar funções que são desenhadas de acordo com o racionalismo ocidental num contexto colonial. Foi muito interessante comparar Chandigarh com Auroville, construído nos anos 1960 pelo arquitecto francês Roger Anger, onde a integração do equipamento arquitectónico me pareceu mais orgânica do que em Chandigarh. O que me interessa no modernismo é a ideia de bem-estar democrático, mas, ao mesmo tempo, eu sou pós-moderna, e mais próxima da arquitectura de Eileen Gray do que da de Le Corbusier. Eileen Grey era também muito uma ‘designer’ nos seus espaços arquitectónicos, e eu aprecio o modo como ela articula o espaço através de objectos e mobiliário. Eu própria misturo o design, a escultura, o estudo do espaço e a ideia de interioridade. Nesta exposição, não estou a tomar como ponto de partida a análise da arquitectura de Corbusier em Chandigarh, mas a tentar construir uma relação com ela através das minhas próprias experiências de realidade, mapeamento, catalogação, diálogo, negociação, fixação e transferência de espaços para espaços.”11
As ramificações da percepção sobre o complexo arquitectónico em Chandigarh são variadas também para Rodrigo Oliveira. No seu atelier, ao mostrar os trabalhos de instalação e as caixas cheias de pilhas de cadernos de pesquisa e documentação, imagens e esquiços que emergiram da sua preocupação com o modernismo ao longo de um ano, ele fala da teoria da teatralidade da arte minimalista de Michael Fried e de como, para ele,
se aplica à arquitectura. Fried diferenciava entre o que elege como ‘arte’ e o que critica de ‘condição de objecto.12 Acusava Donald Judd e Robert Morris de confundirem a definição dos dois termos e de trabalharem com objectos de uma forma relacional no espaço tridimensional. Para Fried, aqueles trabalhos permaneciam no entanto vazios, uma vez que os objectos não transgrediam a sua condição de objecto inicial e funcionavam de um modo teatral.
Rodrigo Oliveira acede no seu trabalho a diferentes genealogias de informação, enquanto a sua confluência é concebida em termos de minimalismo pós-conceptual. O conjunto de trabalhos apresentado na Villa Savoye resulta de uma bolsa da Fundação Botín, que tornou possível a sua pesquisa em duas cidades e dois conjuntos habitacionais – Chandigarh e Brasília –, considerando também outros complexos modernos, como as Unités d’Habitation de Le Corbusier, o edifício Copan, em São Paulo (construído em 1957-66), e o complexo Kubitschek, em Belo Horizonte (1942-44, Oscar Niemeyer): ”Houve muitos elementos que entraram depois, como a arquitectura de Lina Bo Bardi, ou a cidade de Auroville, na Índia (1968, Roger Anger) e o edifício Golconde, em Pondicherry, no sul da Índia (1942, Arquitectos Antonin Raymond e George Nakashia), cuja construção foi supervisionada pelo engenheiro português Udar Pinto. Auroville, Chandigarh e Brasília eram todas cidades utópicas, construídas do zero. Auroville era a cidade utópica mística, por oposição à agenda cultural de independência, progresso e modernidade das outras duas.”13
(Observatory #8) From the series “Dissociative processes and complex approaches for any city in state of entropy” 2015/16
and complex approaches for any city in state of entropy” 2015/16
#9) From the series “Dissociative processes
and complex approaches for any city in state of entropy” 2015/16
processes and complex approaches for any city in state of entropy”, 2015/16
Para Rodrigo Oliveira, a arquitectura reúne-se com o minimalismo em estruturas efémeras que serviram o processo de construção, como andaimes funcionais e escadas que permitiram o acesso à construção mas que foram depois demolidos, ou outros elementos arquitectónicos que nunca foram construídos, apesar de projectados. Na mesma linha de preocupação, na Villa Savoye estava interessado na arquitectura das características rampas promenade e nos caminhos e escadas de acesso modernistas, que para ele expressam a consciência do corpo em relação à arquitectura: “Na Villa Savoye, Le Corbusier planeou inicialmente uma espécie de varanda com escadas de acesso ao jardim que nunca foi construída. Pensando nesta casa nos termos de Le Corbusier, como uma máquina para viver e uma estrutura autónoma (que tem inclusivamente o jardim no interior, na cobertura), torna-se óbvio que estas escadas nunca foram construídas. Tenho explorado estruturas não construídas também em Chandigarh. Os meus trabalhos agrupam qualidades multiformes (rampa, escadas, paredes, em simultâneo), e são construídos de acordo com possibilidades imaginárias de ser dobrado e alterado. A dobra não é pensada como um dispositivo para o público, mas como uma condição interna do trabalho. No entanto, podem ser reorganizados de formas diferentes no espaço arquitectónico e alterarem o seu significado se inseridos num museu, galeria ou na Villa Savoye, colocados num corredor, ou inseridos no meio de umas escadas. Foi importante para mim ligar todas estas fontes com a arte pós-conceptual e uma abordagem pós-minimalista.”14
Os seus trabalhos parecem recarregar esta referida teatralidade do minimalismo em relação à escultura e à arquitectura, mas de modo voluntário. Relacionando o minimalismo com a arquitectura ele afirma: “Robert Morris falava dos seus trabalhos em termos de não serem um objecto e não serem um monumento. Eu mantive esta ideia, parafraseando-a: o meu trabalho não é um edifício e não é uma escultura.”15
As rampas de Rodrigo Oliveira são ao mesmo tempo escadas e pode caminhar-se sobre elas, o modelo escultórico de um colector de água desenhado por Le Corbusier em Chandigarh – encontrado por Oliveira em imagens e planos de arquivo –, dão uma percepção sensual dos elementos arquitectónicos originais como uma fileira de projecções mútuas subvertidas.
A exposição dupla, na sua totalidade, induz aquilo a que Jonathan Hill chama de ambiente aural16, o que para Hill é outro componente da arquitectura insubstancial aparente. O aural é frequentemente percebido de modo menos consciente do que o visual, mas é igualmente tangível em termos de arquitectura. ◊