OPINIÃO

O Arquitecto (urbanista) e o território

Por Luís Jorge Bruno Soares

Arquitecto urbanista, Presidente da Mesa da Assembleia do Colégio de Arquitectos Urbanistas (OA)

A Ordem dos Arquitectos (OA) tem nos seus órgãos o Colégio dos Arquitectos Urbanistas (CAU), que tem como principal missão a valorização profissional dos arquitectos e da sua especificidade no campo do urbanismo e do ordenamento, planeamento e gestão do território.

Efectivamente o arquitecto obtém, na sua formação, faculdades que lhe são próprias e insubstituíveis na composição das cidades e dos territórios.

O Colégio, inicialmente designado Colégio de Especialidade de Urbanismo, teve a sua fundação em 2013, mas só após as alterações estatutárias de 2015 tomou uma actividade mais regular, tendo realizado em 2018 o seu primeiro Encontro Anual. Actualmente, com pouco mais de 70 membros, são questões consideradas como mais relevantes:

— As condições em que se realiza a actividade de Arquitectos Urbanistas, nomeadamente do seu quadro legal e institucional;

— O posicionamento dos Arquitectos Urbanistas na constituição das equipas multidisciplinares e na sua relação com outros profissionais envolvidos no processo de planeamento;

— A progressiva desvalorização dos planos de urbanização e de pormenor e, consequentemente, dos níveis de planeamento em que se concebe e desenha a forma urbana;

— A progressiva desvalorização do ensino e da formação específica dos arquitectos nas áreas do urbanismo e do planeamento e gestão do território.

No sentido de aprofundar a especificidade do Arquitecto enquanto Urbanista, e nos 20 anos da OA, o Colégio promoveu uma sessão de debate sobre o que é ser Arquitecto Urbanista, colocando em discussão a formação, a actividade e a integração em equipas multidisciplinares. Desse debate resultaram um conjunto de reflexões, que servem também ao balanço, nestes 20 anos do que é ser, para além de arquitecto, Arquitecto Urbanista.

 

Tornei-me urbanista a partir da arquitecturaNuno Portas 1

 

Territórios Urbanos, uma realidade em mudança 

A cidade é uma das mais antigas criações da Humanidade, e um dos maiores investimentos feitos ao longo da História. 

A maioria da população mundial vive já em espaços urbanos a que vamos chamando “cidades”. Aí concentram-se não só a maior parte das actividades quotidianas dos indivíduos e das sociedades mas também a riqueza e o conhecimento e as oportunidades de acesso às “liberdades urbanas”.

Assim, as cidades e, de uma forma mais abrangente, os territórios urbanos, apesar dos seus múltiplos problemas, são hoje um “recurso estratégico” incontornável para o desenvolvimento dos países e das suas populações e, cada vez mais, objecto de um corpo teórico próprio e de metodologias e instrumentos de abordagem específicos.

Contudo, perante a realidade das mudanças, a diversidade de critérios de classificação do que é actualmente a “cidade” e o “urbano” tornou o conceito ambíguo, com consequências na definição de políticas, de critérios de gestão pública ou de direitos dos cidadãos e, consequentemente, na actividade dos urbanistas. 

De facto, o crescimento urbano resultante de novos fenómenos demográficos, económicos e sociais, potenciado pelos desenvolvimentos tecnológicos das últimas décadas, gerou novos fenómenos territoriais que se traduziram no que foi chamado de “explosão das cidades”, que levaram, em muitos casos, ao declínio das cidades tradicionais, muitas delas existentes há séculos, e a desequilíbrios sócio-urbanísticos que se expressam nos ambientes, na imagem e na qualidade dos territórios. 

Estas mudanças, que vêm sendo progressivamente entendidas como uma nova realidade urbana, e não apenas como alargamento da dicotomia da cidade/subúrbio, deram origem a novas abordagens teóricas e práticas e tornaram o processo de planeamento urbano e territorial mais complexo e interdisciplinar, envolvendo novos conceitos e conhecimentos, alterando metodologias de trabalho, e confrontando os arquitectos, como foi reconhecido no 15.º Congresso da OA, com um novo quadro de relações interprofissionais.

 

A necessidade de regresso ao Urbanismo 

O nosso sistema de ordenamento do território assenta em Instrumentos de Gestão (IGT) realizados para diversos âmbitos e escalas territoriais, que têm tido como resultado a condensação, nos planos directores municipais (PDM), das orientações políticas e estratégicas nacionais, regionais e sectoriais, a identificação das condicionantes territoriais e uma categorização dos espaços associada à definição de parâmetros de uso e ocupação dos solos.

Lamentavelmente a evolução deste sistema, enredada em complexos e morosos processos administrativos, burocráticos e de decisão política, tem conduzido à perda de importância dos planos de urbanização e de pormenor, com consequências evidentes na deficiente estruturação e integração dos espaços urbanos, na desqualificação do espaço público e dos ambientes urbanos e na localização e distribuição desequilibrada de equipamentos e serviços.

Nesta situação, os instrumentos generalistas e de grande escala fazem esquecer que é no “fim da linha”, através das operações urbanísticas e dos respectivos projectos, que se concretiza o “fazer cidade” e se atinge, ou não, a qualidade e eficiência do processo de planeamento. 

O “regresso ao Urbanismo” não será voltar, ao que se fez décadas atrás, apenas a “desenhar cidade” recorrendo a modelos ideais e a “planos-imagem”. Torna-se agora necessário compreender os processos de transformação do território a diversas escalas espaciais, para desenhar e “redesenhar” o espaço urbano como quadro de vida, por excelência, de uma sociedade tendencialmente mais urbanizada e com os seus modos de vida em permanente mutação. 

Hoje, já não é possível antecipar o futuro desenhando tudo, mas é necessário compreender os processos e gerir de forma proactiva a sua evolução, apoiando ou contrariando tendências e dinâmicas instaladas ou previsíveis e gerindo oportunidades. Neste contexto, a questão da interdependência entre processo e projecto/desenho é mais actual do que nunca.

Contudo, a crescente imposição de lógicas neoliberais e dos valores do mercado vêm aumentando a pressão para a desregulamentação de sectores como o imobiliário, tornando mais complexa e conflitual a gestão dos espaços urbanos. 

Em Portugal, no quadro de um “planeamento generalista”, a tendência tem sido para a abordagem cada vez mais casuística das intervenções urbanísticas, com frequentes alterações aos instrumentos de gestão territorial e, inevitavelmente, aos PDM. É a este propósito que os temas da rigidez e flexibilidade dos planos e das formas integradas de intervenção no território fazem parte dos debates interdisciplinares e interprofissionais. E é significativo que não seja só em Portugal.

Sabemos que gerir tendências pesadas de mudança das sociedades como as que se verificam, actualmente, na União Europeia, marcadas por ambiciosas “agendas” ambientais e urbanas a par de políticas de liberalização das economias, dificilmente se resolve nos níveis local, regional ou, mesmo, nacional.

Reconhecendo que o mundo não voltará atrás, para Alain Bourdin o caminho será de um urbanismo de regulação que recorrerá, por um lado, à gestão, por ajustamentos, do estabelecimento de novos equilíbrios e, por outro lado, à estratégia entendendo a “produção da cidade como projeto coletivo mobilizador” 2.

Nesta linha, penso que o Urbanismo continuará a exigir um processo social/político de participação pública e concertação de interesses, um sistema de decisão assente nos pilares político, técnico e da cidadania, com as suas respectivas responsabilidades e o projecto/desenho da organização espacial dos territórios, das formas urbanas e da relação do espaço público com o edificado, como síntese de uma actividade interdisciplinar.

Por tudo isto, o Urbanismo não pode deixar de ser um tema relevante no mundo de hoje, exigindo um adequado enquadramento político, o aprofundamento de conhecimentos específicos e a formação dos seus especialistas, de forma a proporcionar novas condições e capacidades para desenhar os territórios em diversas escalas, em diversos contextos e em novas circunstâncias políticas, sociais e culturais.

 

A especificidade da actividade do Arquitecto Urbanista 

A actividade dos arquitectos como urbanistas, planeadores ou gestores do território, assenta num sistema de valores muitas vezes contraditórios e quase sempre exigentes na sua compatibilização, nomeadamente face ao primordial “interesse público”. Por isso, um dos desafios que enfrentamos é o da avaliação e ponderação dos valores em presença em cada caso, o que implica, no quadro democrático, a concertação de interesses e de opiniões de múltiplos agentes públicos e privados, para construirmos e sustentarmos as propostas de desenho do território, dos espaços urbanos e da sua arquitectura.

Acresce que uma das capacidades diferenciadoras dos arquitectos urbanistas, em relação a outros profissionais, resulta da formação de base que lhes permite ter como referência o projecto como produto final e, desse modo, entender, nos diversos níveis do sistema de planeamento, as implicações das opções, das orientações e das normas de ordenamento na “arquitectura do território”. Entendemos, assim, que a participação técnica dos arquitectos urbanistas deverá fazer-se em todos os tipos de instrumentos de gestão do território.

Mas, para isso, a formação-base de arquitecto deve ser completada com a especialização que o capacite a conhecer as diferenças conceptuais, metodológicas e técnicas, a multidisciplinaridade e a diversidade de informação necessárias à prática do planeamento territorial e urbano.

Como “confessou” Nuno Portas na sua Última Aula na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em Outubro de 2004: “O meu objectivo — e digo-vos já para não me perder nas evocações — é apenas o de mostrar que da arquitectura singular que tanto me entusiasmou (na primeira parte da carreira — também como crítico) até à construção de novos territórios do urbano — que englobam os velhos — não se tratou e não se trata apenas da ampliação de escala mas sim de uma transfiguração do próprio objecto, que implicou a procura de outra óptica e de outros instrumentos”. E explicitou adiante: “As mudanças dos conceitos de arquitectura, de espaço, de estrutura, a convicção sobre os usos contidos nesta dilatação de escala do hectómetro (quadra) aos quilómetros do território urbanizado, são, à primeira vista, quantitativas, mas resultam qualitativas a ponto de obrigarem os actores/autores a uma reformulação profunda do que devem saber decidir antes de chegar ao campo do próprio desenho”.

No fundo, embora os arquitectos urbanistas tenham uma formação de base comum a todos os outros arquitectos, adquirindo uma cultura e capacidades para entender e projectar espaços e ambientes habitáveis pelas pessoas, na sua vida individual e em sociedade, a abordagem às múltiplas problemáticas do plano e das suas interdependências e efeitos exige, para além disso, um corpo específico de conhecimentos, de informação e de metodologias e técnicas da sua aplicação. 

De facto, o Urbanismo, que tem como cliente maioritário, directa ou indirectamente, a Administração Pública, à qual compete promover a adequada organização do território no sentido da sua sustentabilidade social, económica e ambiental, focado na valorização do quadro de vida da população e na salvaguarda do interesse público, impõe aos arquitectos urbanistas relações específicas, nomeadamente com três vertentes da sua actividade:

— Diferentes escalas e âmbitos de intervenção territorial implicando diversos conceitos, métodos e técnicas de abordagem e de proposta;

— Diferentes utilizadores cujas necessidades, programas e expectativas são vistos numa dimensão colectiva e pública;

— Diferente relação com o tempo de concretização dos planos e de avaliação dos resultados, exigindo uma grande capacidade de “resiliência” profissional aos técnicos envolvidos. ◊