ENSAIO

Jornal Arquitectos 1981-2015*

Por Vitor Alves (texto e infografias)

Arquitecto, Doutorando (FAUP)

 

 

 

Pode-se considerar o Jornal Arquitectos (J—A) um caso particular nos periódicos especializados em Portugal, quer pela longevidade (começou a publicar-se em 1981), quer pelo número de edições (quase 260), quer pela sua continuidade. Apesar de ser um meio de comunicação de uma associação/ordem profissional, o que o poderia confinar a um mero instrumento corporativo (que também foi em alguns dos números publicados até ao ano 2000), ao longo das suas várias direcções foi ganhando uma maior autonomia enquanto projecto editorial, tornando-se progressivamente mais teórico e crítico. Esta transformação, aliás bem visível nos diferentes formatos que a publicação adquiriu, manifesta-se a partir da abordagem quase apenas de carácter noticioso e agregadora de uma possível identidade profissional colectiva, no início em formato de jornal, à posição mais reflexiva, enquanto vontade das suas últimas equipas editoriais e da direcção da Ordem dos Arquitectos, em formato de revista.

Em Novembro de 1981, começou a ser publicado pela Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP) — Secção Regional do Sul (SRS), o J—A sob a direcção de António Mattos Gomes, Presidente da SRS 1 na época. No primeiro editorial, alerta-se para um problema da classe dos arquitectos: “a dificuldade dos arquitectos em discutir os problemas que enfrentam, tanto os inerentes à vida associativa como os que surgem na sua actuação ao serviço da Arquitectura e da sociedade” 2 . É neste contexto em que o J—A opera que podemos ver as questões que preocupavam a profissão à época; das notícias dando conta das conferências e exposições à publicação de concursos e seus resultados; das reportagens das iniciativas da AAP às questões sobre o património e o urbanismo; os vários números do J—A eram ritmados pelas questões da vida associativa e da prática profissional. Mas não só de questões corporativas era feito o Jornal. Ao longo destes anos, entre 1981 e 1987, foram produzidos alguns textos críticos que respondem ao apelo — várias vezes repetido nos editoriais das diferentes direcções — da necessidade de reflexão. Os eventos que marcavam a agenda cultural ou a formação disciplinar eram os pretextos escolhidos para se elaborar em algumas incursões nos caminhos (ainda) pouco explorados da teoria e crítica. Mas é no editorial que justifica a necessidade do lançamento do “Concurso de Texto Crítico de Arquitectura” que Gonçalo Byrne, enquanto director do J—A entre 1985 e 1987, alerta para “a crónica debilidade teórica” 3 da arquitectura portuguesa, não só na sua vertente escrita, mas sobretudo na sua dimensão projectual. Nesta série, é talvez a perspectiva de Gonçalo Byrne 4 que melhor integra as várias dimensões da “razão de ser” do arquitecto (desde as mais corporativas às mais teóricas), seguindo a organização por números temáticos, num projecto editorial mais coeso e integrado.

A segunda série inicia-se em 1987 com Fernando Gonçalves como director e dá continuidade à linha editorial definida pelas anteriores direcções. No primeiro editorial que assina reforça essa ideia: “fomentar a consciência colectiva dos arquitectos, nomeadamente através de um diálogo crítico e debate de ideias” 5 . Mas alguns dos acontecimentos a que o país e a sociedade estiveram sujeitos, e por arrasto a profissão, acabaram por determinar profundamente os conteúdos e o formato desta publicação. O facto do J—A passar a ser distribuído por todo o território nacional 6 e da AAP passar a ser reconhecida como uma associação de interesse público, fazem com que estes temas, amplamente discutidos nos primeiros números desta série, contribuam para um aumento do sentimento de classe. Nestes anos, dão-se os primeiros passos para a criação de cursos de arquitectura nas universidades privadas e é criado o terceiro numa universidade pública (Coimbra); estão reunidas as condições para, mais uma vez, se reflectir sobre o ensino da arquitectura em Portugal, agora à luz das directivas europeias. Esta “nova” relação com a Europa terá impacto a vários níveis nos conteúdos produzidos pelo J—A; iremos assistir a um repensar da profissão em contexto europeu e à reflexão sobre a identidade da arquitectura nacional. A relação com a Europa passa também pela atenção que o J—A dará aos grandes eventos internacionais 7 nos quais Portugal, e a arquitectura portuguesa, também marcarão presença. Progressivamente, com a chegada dos fundos de coesão, o Jornal dá cada vez mais atenção à arquitectura na sua vertente projectual, retrato da nova dinâmica económica do País; como efeito secundário, assiste-se a uma diminuição de textos críticos. Mas é durante esta série que o panorama editorial português dedicado à arquitectura se altera e vê aparecer novas revistas dedicadas à disciplina 8 . É nesta altura que o J—A aproveita para adoptar o formato de revista ainda que a estrutura e os conteúdos se mantenham relativamente os mesmos.

A terceira série, dirigida por Michel Toussaint, a mais longa da história desta publicação (entre 1993 e 2000), separou, pela primeira vez, com a criação do Boletim Arquitectos inicialmente designado Arquitectos Informação, a informação de carácter noticioso (a qual, devido à dificuldade do J—A em manter a periodicidade, nem sempre chegava em tempo útil), da restante. No entanto, a criação deste novo meio de comunicação da AAP não fez com que os assuntos corporativos estivessem totalmente ausentes das páginas do J—A. O Jornal manteve a atenção dada aos assuntos da classe com a publicação de reportagens sobre os Congressos, a divulgação dos Programas e Listas para as eleições dos diversos órgãos da AAP que, progressivamente, ia ganhando maior reconhecimento social até culminar, em 1998, na criação da Ordem dos Arquitectos (OA) — um reconhecimento público (e legal) — há muito desejado pela corporação. Seguindo uma organização temática, o Jornal mostra a diversidade dos principais campos de trabalho em que a profissão se insere, para além das exposições, prémios e dos “percursos de carreira”, mas principalmente os concursos que, como publicação oficial da corporação, tinha por obrigação publicar 9 , e que reflectem o progresso que o país atravessa nos anos de 1990 com a chegada dos fundos comunitários. Talvez este sufoco de concursos sirva em parte para explicar o decréscimo de textos críticos a que o Jornal assiste nesta série, apesar do aumento do número de arquitectos, entretanto licenciados pelas novas escolas, e que viam, nestes concursos, um modo de acesso à profissão; por outro lado, como Michel Toussaint explica numa conferência a propósito da sua experiência como director do J—A, “havia certos problemas no sentido de encontrar colaboradores […], naquele tempo havia pouca gente com interesse em escrever” 10 .

É com Manuel Graça Dias que, no ano de 2000 e pela primeira vez, o seu director não pertence aos órgãos sociais da então recém-criada OA. A convite da então Presidente Olga Quintanilha, Graça Dias, que contava já com uma vasta experiência no mundo das publicações, exige como condição para dirigir o novo J—A a autonomia editorial, um conselho editorial, melhores condições de trabalho e a profissionalização do Jornal, isto é, que os colaboradores fossem pagos pelo trabalho que desenvolviam, o que não tinha acontecido até então. A dimensão crítica que o Jornal reflecte nesta série, ancorada em números temáticos e que tomavam como fio condutor uma determinada obra literária, é alimentada pela voz de vários autores (que começam a aparecer a partir do ano 2000), para quem o exercício de reflexão sobre arquitectura é o exercício da escrita. É sem dúvida uma visão muito mais culturalista e menos corporativa daquilo que deveria ser o Jornal (dos) Arquitectos aquela que se constrói nestes anos. Mas a vocação crítica que esse J—A transporta, provocada pela carência de textos que aprofundassem a reflexão sobre a disciplina, não é necessariamente uma ruptura com as direcções anteriores (a presença de Michel Toussaint no conselho editorial na presente série desmente-o) 11 , mas sim um intenso desejo de discutir a disciplina e de explorar as suas tensões internas (mesmo socorrendo-se do contributo de outras). Assiste-se a um debate que procura uma mediação constante entre o passado, o presente e o futuro para se compreender que história se está a construir. Para Graça Dias este é “Um J—A que precisará talvez de continuar a perturbar certezas, a abalar as convicções, a instaurar a dúvida. (A crítica a tentar criar “sentido crítico”). A crítica a continuar a procurar a liberdade12 .

Com a eleição dos novos órgãos sociais da OA em 2004, a escolha da equipa editorial do J—A é feita, pela primeira vez, através de concurso. José Adrião e Ricardo Carvalho, como vencedores e com experiência no mundo editorial, apresentam um projecto que aposta na continuidade do modelo anterior, ainda que com a preocupação de debater, sobretudo, temas da contemporaneidade, mais centrado numa cultura global em proximidade com o ambiente internacional. Com a profissionalização do Jornal conquistada na série anterior, esta direcção encontra as condições necessárias para expressar “aquilo que de melhor se poderia produzir a partir de dentro da profissão, se quisermos, da cultura erudita de elite” 13 . Mas esta “cultura erudita de elite” que Ricardo Carvalho refere não é tanto aquela produzida pelos textos críticos e ensaios que publicam que, relativamente à direcção anterior, são em menor número apesar da maioria dos seus autores pertencerem a instituições académicas e, tal facto, reflectir-se no tipo de discurso produzido. Trata-se, antes, daquela que está ancorada no trabalho produzido a partir de dentro dos escritórios; uma arquitectura que produz significado a partir do projecto e da obra, onde pensamento e construção podiam ser expressos numa síntese (é por esta razão que tanta atenção deram às entrevistas a autores consagrados e à ampla divulgação de projectos).

Em 2008, com o lançamento do concurso para uma nova equipa, Graça Dias retoma a direcção do J—A com os mesmos elementos com quem já tinha trabalhado na quarta série apenas com uma pequena alteração: a saída de Michel Toussaint e a entrada de Diogo Seixas Lopes para o conselho editorial. O projecto que apresenta tem como primeiro desafio o problema de redução de custos 14 e a sua contextualização no difícil momento que o país atravessava no Verão de 2008; não seria essa, contudo, razão para fazer um projecto editorial menos interessante. Tendo como objectivo “construir uma revista com maior penetração internacional” 15 , o Jornal é pela primeira vez, em 2009, editado numa versão bilingue (português/inglês) e, em paralelo, num website, onde todos os artigos e projectos da versão impressa são publicados. Os 12 números que constituem esta série são organizados sob vários temas que têm por base um provocatório “Ser... qualquer coisa”, e no interior, várias secções, com diferentes níveis de aprofundamento, que se organizam para o debater. Mas, se a primeira série de Graça Dias é o ponto de viragem face às anteriores — com desenvolvimento do J—A numa plataforma de debate cada vez mais abrangente –, nesta nova série as posições radicalizam-se: “assente numa dicotomia de posições que tentarão reproduzir as tensões que atravessam a sociedade actual e que se extremam à volta do binómio esquerda/direita — não na sua leitura mais maniqueísta, mas reproduzindo tomadas de posição sobretudo contrastantes, que não facilmente catalogáveis” 16 . Todavia, a ambição que esta direcção tinha para o Jornal ia um pouco mais além. A propósito desta série e do J—A como objecto reflexivo e legitimador de uma certa cultura arquitectónica, Ana Vaz Milheiro, enquanto directora-adjunta, refere: “Nós não pedíamos textos de três páginas, pedíamos ensaios ambiciosos de dez páginas! [...] Depois, tínhamos esta ideia: queríamos que viesse gente de fora legitimar a nossa cultura arquitectónica. Portanto, a presença de críticos internacionais era muito importante para que o Jornal tivesse algum sentido” 17 . É talvez por esta razão que, de todas as séries do J—A, esta tenha sido a mais complexa, mais densa, mais espessa; aquela que melhor soube ir detectando os sintomas, recolhendo pequenas (e por vezes, não tão pequenas assim) pistas — e reflectindo sobre elas –, quanto às alterações à nossa condição de arquitectos.

“Para além de uma aguda circunstancialidade que nos apanha e tolhe nesta reflexão (da precariedade ao desemprego, da ausência da encomenda pública ou privada aos constantes “convites” à emigração), a figura continua por construir, no discurso equivocado do mainstream que é o popular, o do poder político ou o dos media18 .

O último projecto editorial concluído do J—A, dirigido por André Tavares e Diogo Seixas Lopes entre 2013 e 2015, também eles com experiência no mundo das publicações, apresenta-se com uma abordagem completamente diferente em relação às séries anteriores, procurando reagir positivamente a uma situação social complicada 19 . Para além da direcção, este projecto propunha ainda uma redacção, em vez dos conselhos editoriais anteriores, que contribuiria com artigos, reportagens e entrevistas a vários actores da disciplina. O projecto assentava em cinco pontos: “uma revista de actualidade, não temática, crítica, económica [e] de arquitectura” 20 . Definidas que estavam as bases em que se construiria esse novo J—A, esta direcção aboliu o pendor mais erudito e académico que o Jornal vinha adquirindo nos últimos anos (posição, afinal, em contra-ciclo com o que vinha acontecendo nas universidades portuguesas, com o número de estudantes de doutoramento a aumentar), para se concentrar no discurso entre a prática profissional da arquitectura e as contingências da profissão, sem nunca prescindir de um discurso teórico e crítico. Ou seja, o que se procurava, “não era uma elaboração teórica sobre os projectos que estávamos a discutir, mas discutir as circunstâncias da sua própria execução e, digamos, o encontro dessas circunstâncias com o quadro cultural mais abrangente e com a própria prática da produção do projecto” 21 .

A publicação oficial de uma classe garante, à partida, um maior índice de sucesso e continuidade da sua publicação, para os quais contribui o carácter como que obrigatório do seu público — o J—A é distribuído gratuitamente a todos os membros da Ordem profissional –, mas esta razão, por si só, não será suficiente para explicar o motivo pelo qual este meio se tornou, para muitos, a publicação de referência no panorama editorial português de arquitectura. Para tal, contribuiu certamente a ausência de pressão comercial 22 (apesar de exigir uma responsabilidade acrescida nos conteúdos que apresenta), mas também como as diferentes direcções que o J—A albergou permanentemente lhe actualizaram a pertinência enquanto meio de reflexão sobre a disciplina. A maneira como progressivamente se foi libertando das obrigações corporativas, a autonomia editorial que soube conquistar, como as últimas direcções souberam articular teoria e prática, não como actos isolados mas que correm em simultâneo, mostra que a vivacidade intelectual de um projecto como o J—A só é possível através da exigência crítica, teórica e projectual. “Uma profissão que pensa corre menos riscos de ser arrastada pela maré tecnocrática e de se tornar irrelevante” 23 . ◊

 

 


 

 

* Para uma melhor descrição das diferentes linhas editoriais do Jornal Arquitectos, optou-se por considerar apenas aquelas concluídas, excluindo, deste modo, o presente projecto editorial, formalmente mais complexo e ainda em curso.