ENSAIO/OPINIÃO
Cultura
Entendimentos e Realizações
António José Saraiva (1917-1993), autor do livro A Cultura em Portugal: Teoria e História (1981), que se centra na história e identidade do país com destaque para a literatura, definia a cultura como oposta à natureza, isto é, abrangendo “todos os objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. A fala é já condição de cultura. Por ela se comunicam emoções ou concepções mentais. A religião, a arte e a tecnologia são produtos da cultura”. Mas reconhecia esta definição como a mais abrangente, coincidindo com a noção de civilização, enquanto que, num sentido mais restrito, entendia “por cultura todo o conjunto de actividades lúdicas ou utilitárias, intelectuais e afectivas que caracterizam especificamente um determinado povo”. E ainda de modo mais restrito, seria “o conjunto das artes lúdicas — especialmente aquelas que os gregos antigos designavam por ‘as nove musas’ […] excluindo a ciência e a tecnologia” 1 . Assim António José Saraiva expunha a diversidade de entendimentos de cultura que, na atualidade, será ainda mais extensa e até contraditória, colocada que está entre as forças que ampliam a globalização, até como condição necessária à sobrevivência, e as que implicam uma voluntariosa auto-referência, um fechamento.
Outras questões têm atravessado as noções de cultura. Denys Cuche 2 lembra o afastamento entre as noções de civilização e cultura no século XVIII europeu. A primeira palavra era usada no contexto francês das Luzes e percebida, na Alemanha, como aristocrática pela burguesia intelectual, sendo assim própria de uma elite distante do povo e pouco genuína. Opunha-se-lhe a palavra cultura. Esta sim profunda, exprimindo os valores nacionais que deveriam ser difundidos por todos os alemães. Estava pois estabelecida uma dicotomia que chegou até hoje entre cultura das elites e cultura do povo, atravessada ideologicamente e com reflexos na questão da identidade. O povo representaria a nação, enquanto as elites, com as suas relações internacionais, estariam distantes ou opor-se-iam aos valores daquela.
Ainda outra questão que envolve a noção de cultura é o modo como ela é integrada cientificamente nas Ciências Sociais diferindo do que habitualmente se tem chamado de cultura, por exemplo nos meios de comunicação social ou em certas revistas especializadas que se reclamam da “cultura”, ou ainda na ação dos governos e instituições privadas não lucrativas no Ocidente. O dicionário Key Concepts in Cultural Theory refere-se à Antropologia Cultural que obriga a “evitar qualquer preocupação exclusiva com a ‘alta’ cultura. Implica o reconhecimento que todos os seres humanos vivem num mundo por si criado e no qual encontram sentido. A cultura é o mundo complexo que nós encontramos todos os dias e onde nos movemos”. E reforça a ideia que a cultura está para além do natural, dando o exemplo da agricultura como “o cultivo do mundo natural”, concluindo que “os dois mais importantes ou gerais elementos da cultura podem ser a capacidade dos seres humanos em criar e construir e a capacidade do uso da linguagem” 3. Mas o mesmo dicionário, na entrada “indústria cultural”, expressão criada pela Escola de Frankfurt, esclarece que tal se refere a cultura de massas, associada “ao destino da cultura na sociedade altamente instrumental do capitalismo tardio”, por um lado em termos de uma especialização de atividades e, por outro, no controlo social.
Já o Fontana Dictionary of Modern Thought coloca lado a lado duas definições de cultura, uma vinda da Arqueologia e outra da Antropologia. A primeira acentuaria a sua condição de “assemblage limitada no tempo e no espaço”, e a segunda entendê-la-ia como herança social de uma comunidade: a totalidade do corpo de artefactos artificiais (instrumentos, armas, casas, locais de culto, governo, recreação, obras de arte, etc.), dos artefactos coletivos mentais e espirituais, e as distintas formas de comportamento, criados por um povo […] nas suas próprias atividades com as suas particulares condições de vida […] transmitidas de geração a geração” 4.
Com este mergulho nas conceções de cultura, pode-se interrogar quais foram adotadas na Ordem dos Arquitetos (OA) nas suas ações para além das diretamente decorrentes do seu estatuto no que diz respeito à profissão de arquiteto e que genericamente se tem chamado de cultura. De facto, e consultando os boletins (Arquitectos Informação ou simplesmente Arquitectos) conservados na Biblioteca em Lisboa, entre 1998 e 2006 (depois passou a haver uma edição digital), fica-se com um tempo suficientemente longo sobre as iniciativas tomadas no campo da cultura no período em causa. Em primeiro lugar, pela sua longevidade e permanência está a existência da Biblioteca da Ordem dos Arquitetos (SRS) que se formou ainda quando as sedes nacional e regional Sul se situavam no edifício da Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa e adquiriu instalações próprias quando aquelas se instalaram nos Banhos de S. Paulo em 1994. Mas muitas outras iniciativas, que se estabeleceram como atividades regulares ou excecionais, marcaram os anos de existência da OA, quer por iniciativa nacional ou regional. Das primeiras temos a publicação do Jornal Arquitectos, a revista iniciada em 1981 e que chegou até hoje percorrendo várias fases e direcções; a instituição e/ou apoio a prémios e concursos, cobrindo o leque de atividades do arquiteto; as exposições, as conferências e as projeções de filmes nas sedes e delegações; e, em certa medida, os congressos. Das segundas podemos encontrar uma diversidade de iniciativas como organização de visitas, publicações pontuais (livros, catálogos, mapas e folhetos), exposições, conferências e projeções fora das sedes ou mesmo o suporte de investigações. Aqui estão excluídas as ações de formação dirigidas a arquitetos com o fim de actualizarem ou ampliarem os seus conhecimentos profissionais ou dirigidas aos que, saindo das universidades, querem tornar-se membros da OA, bem como as reuniões ou encontros específicos da profissão.
Afinal, os planos de urbanização, os projetos e as obras de Arquitetura construídas e habitadas inscrevem-se nas noções mais gerais de cultura, mas também nas mais restritas, com exceção do domínio das nove musas onde a Arquitetura estava excluída, apesar da origem da palavra ser grega. Mas a Arquitetura, enquanto cultura, inscreve-se forçosamente na sua vertente erudita, na medida em que a formação do arquiteto hoje se faz através do ensino superior e a Disciplina da Arquitetura é um corpo de conhecimentos reconhecido na Universidade, com a sua própria autonomia e epistemologia, apesar de se focar na ação sobre a realidade e a todos beneficiando, não sendo uma ciência como as da Natureza, apenas focadas na observação e explicação dos fenómenos assente na experimentação ou, pelo menos, na confirmação e reconfirmação daquela. Assim, ao entender a cultura como um campo isolado nas suas ações estatutárias, a OA tem também apostado na vertente comunicativa, na indústria cultural em contexto de uma sociedade que tem criado um vasto conjunto de meios de comunicação social (num entendimento mais atual), hoje assentes na rápida evolução do que se tem chamado de novas tecnologias.
No espaço temporal de vinte anos muito haverá que dizer sobre estas atividades da OA. Aqui lembram-se algumas, consultando os documentos que ficaram nas bibliotecas, nas prateleiras privadas ou ainda estão nas memórias digitais ou biológicas. E pode-se começar pelos Prémios, dos quais vale a pena sublinhar dois de natureza bem diferente: o Fernando Távora e o Secil. O primeiro, lançado em 2005 pela Secção Regional Norte em homenagem ao arquiteto e professor, partiu do reconhecimento da importância que as viagens tiveram na formação de Fernando Távora, na organização regular de visitas a muitos países com outros colegas e que até se refletiram no ensino na Escola do Porto. Trata-se precisamente de um prémio pecuniário destinado a subvencionar o candidato que apresente o melhor projeto de viagem e da qual fará, posteriormente, um relatório. A sua originalidade está precisamente na valorização da curiosidade que permite o conhecimento através de uma viagem programada e da qual se exige um contributo de memória organizada. O outro prémio, organizado com o apoio exclusivo de uma empresa produtora de cimento, tem duas vertentes, uma orientada para os estudantes de Arquitetura (universidades portuguesas) e outra para obras de Arquitetura projetadas por arquitetos portugueses. A primeira edição foi em 1992, tendo sido premiada a obra que consagrou Eduardo Souto de Moura como arquiteto muito promissor, a Casa das Artes (Secretaria de Estado da Cultura) no Porto 5. Com as sucessivas edições de dois em dois anos, o Prémio Secil tornou-se no mais prestigiado em Portugal para a obra construída, mas não se pode esquecer o Prémio AICA que, desde 1981, é atribuído simultaneamente a um artista e um arquiteto, sendo apoiado pela OA, tendo havido uma grande exposição em 2010 pelo seu 30.º aniversário na Sociedade Nacional de Belas Artes 6. Também vale a pena lembrar o Prémio INH (1989-2007) aplicado à habitação construída que foi substituído pelo Prémio IHRU (2008-2015), que por sua vez foi substituído pelo Prémio Nuno Teotónio Pereira (2016-) em homenagem ao ilustre arquiteto e dedicado à reabilitação urbana, todos com o apoio da AAP/ OA, havendo em paralelo o Prémio RECRIA (1999-2007) 7. Esta sequência foi sempre promovida por organismos do Estado essencialmente ligados à habitação.
Outra vertente da cultura, as Exposições, corresponde a uma prática corrente em muitas instituições e a OA não podia estar alheia. Ao incluir salas para tal atividade na sede nacional (desde 1994) e na sede regional no Porto (desde 2016), possibilitou uma prática frequente de mostra por iniciativa própria ou vindas de fora como por exemplo as exposições Sala de Projecto apresentando arquitetos mais jovens e acompanhadas por conferências em 2000 ou as sobre Adolf Loos, Otto Wagner e Joze Plecnik no mesmo ano, na sede nacional. Mas o tipo de iniciativa de maior impacto mediático que perdurou até hoje foi o de grandes exposições apresentando planos, projetos e obras concebidos por membros da OA, com raízes em acontecimentos como a Exposição Nacional de Arquitectura (ENA) que se realizaram nas décadas de 1980 e 1990 e se consubstanciaram no acontecimento bianual Habitar Portugal, cuja primeira edição foi em 2003 8 no Ano Nacional da Arquitectura, concebido com várias iniciativas em cada mês, para acompanhar a luta pela revisão do Decreto 73/73 que penalizava então fortemente os arquitetos. As exposições Habitar Portugal organizam-se por regiões e áreas metropolitanas, havendo, para cada uma, um comissário responsável pela escolha das obras construídas a incluir. É uma formulação que permite um melhor conhecimento local, possibilitando expor obras que, numa organização apenas central, poderiam não ser escolhidas. Com os catálogos destas exposições fica-se com um panorama sistemático da arquitetura construída no país. Igualmente, neste sentido da perscrutação do território nacional, vale a pena recordar três exposições, por iniciativa da SRS em 2004, sobre três arquitetos portugueses: José Pires Branco, Ruy d’Athouguia e António Vicente de Castro. Com reconhecimento variado, e trabalhando em três cidades diferentes (Castelo Branco, Lisboa e Portimão), fizeram parte da geração moderna, inscrevendo-se na história da Arquitetura em Portugal. As três exposições ajudaram a perceber que, em meados do século XX, a arquitetura moderna tinha uma presença mais espalhada no país do que muitos pensavam. Muito mais próxima temporalmente foi a exposição Arquitetura em Concurso: Percurso Crítico pela Modernidade Portuguesa que se realizou no Centro Cultural de Belém (2017) em Lisboa por iniciativa da SRS e que procurou historiar todos os concursos de Arquitetura desde 1833, apresentando um conjunto selecionado com documentos originais e maquetes numa montagem cujo projeto foi, como não podia deixar de ser, escolhido por concurso. Podia-se ver o resultado de um processo de encomenda de trabalho aos arquitetos pelo qual as sucessivas agremiações de arquitetos em Portugal têm lutado 9. Mas não se pode esquecer o apoio da OA a realizações nacionais ou internacionais da responsabilidade de outras instituições. É o caso da exposição Portogallo 1990/2004 na Triennale di Milano, Palazzo dell’Arte, inaugurada aquando da visita do Presidente da República, Jorge Sampaio, a Itália em 2004. Abordava a produção de Arquitetura e de Design no país durante aqueles cinco anos 10. Igualmente discreto foi o apoio da SRN à exposição Influx — arquitectura portuguesa recente, que foi incluída no Ano Nacional da Arquitectura (2003) e apresentada no Silo (Norte Shopping) pela Fundação de Serralves no Porto 11 , mostrando uma seleção de obras recentes de jovens arquitetos e serviu de base para a representação oficial portuguesa à Bienal de Veneza em 2004.
Outras iniciativas fundamentais devem ser recordadas nestes vinte anos. Naturalmente há que começar pelo Jornal Arquitectos (J—A) que se publica desde 1981, inicialmente com o formato e o conteúdo de um jornal para se tornar mais próximo de uma revista mensal e ganhar importância ao ponto de ter orçamento próprio. Em 2005 decidiu-se escolher um diretor, uma equipa e um projeto editorial por concurso, tornando-o independente do Conselho Diretivo Nacional, tal como em outras associações profissionais europeias. Recentemente a revista voltou ao papel, depois de uma experiência digital, e o presidente da OA passou a dirigi-la. O J—A com quase quarenta anos constitui um acervo de Arquitetura em Portugal único e até identitário da própria OA. Se em termos de publicações os catálogos ou o J—A são recorrentes, já os pequenos livros monográficos, apoiando candidaturas a prémios da UIA no seu congresso de 2005, mostram um esforço em projetar os portugueses pelo Mundo. Neste caso Nuno Portas foi galardoado com o Prémio Sir Patrick Abercrombie 12 , enquanto os Mapas de Arquitectura de prestigiados arquitetos ou cidades têm sido produzidos pela SRN desde 2008 13 , lembrando o guia de Lisboa aquando da primeira capitalidade europeia da cultura em Portugal (1994) que, por sua vez, recorda a segunda destas capitalidades no Porto (2001) onde a SRN teve papel ativo, o mesmo acontecendo no caso de Guimarães (2012).
E, para terminar esta memória de um conjunto de iniciativas inscritas na cultura pela OA, recorda-se o Inquérito à Arquitectura do século XX em Portugal (IAPXX) 14 , uma base de registo de obras construídas no país efetuada por equipas de arquitetos que percorreram o território nacional à semelhança do que tinha sido O Inquérito sobre a Arquitectura Regional em Portugal realizado na segunda metade dos anos 1950 e cujos resultados foram publicados sob o título Arquitectura Popular em Portugal em 1961, estando já na quarta edição e com reconhecimento internacional, tendo sido continuado com a Arquitectura Popular dos Açores (2000) 15 inquirida e escrita nas décadas de 80 e 90 do século passado. Tal é o exemplo da importância que a OA e as suas antecessoras têm dado à produção e divulgação do conhecimento em Arquitetura e do trabalho dos arquitetos portugueses, um forte traço identitário destes que lutam pelo seu pleno reconhecimento na sociedade portuguesa, conscientes que só pelo reforço e alargamento desse conhecimento e divulgação, acompanhando as outras ações da sua associação profissional, tal pode ser alcançado.
Nos dias de hoje, com o aumento exponencial do número de membros e a sua juventude, este percurso de 20 anos, se pode ser exemplo, implica a constante adaptação aos meios de comunicação e produção atuais, mas também a persistente constituição de uma memória documental permanente. A interrogação é como, e se, se justifica uma aposta na cultura por parte da OA, quando existem várias instituições no país que se dedicam com diferentes graus de intensidade à Arquitetura, nomeadamente a Casa da Arquitectura, entidade da Câmara Municipal de Matosinhos com um apoio institucional da SRN, a Trienal da Arquitectura de Lisboa, que se iniciou na OA e tem o patrocínio da Presidência da República e da Câmara Municipal de Lisboa, ou a Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, galeria dedicada inteiramente à Arquitetura. Para além destas três instituições outras, esporadicamente, incluem a Arquitetura na sua programação, mas de modo muito marginal. E assim se compreende que cabe à OA, como representando oficialmente os arquitetos e tendo membros por todo o país, ser ativa no campo cultural, pois orienta-se para os arquitetos e projeta-os para o exterior, tendo assim uma perspetiva bem diferente dessas instituições, aliás sediadas nas duas áreas metropolitanas. Deste modo entre a sedimentação da memória, a identificação de uma profissão (e Disciplina) e a sua defesa e valorização social, cabe evidentemente uma extensa ação cultural à OA. ◊