CRÓNICA

Mulheres arquitectas e uma profissão (ainda) pensada e agida no masculino

Por Patrícia Santos Pedrosa

Arquitecta, Investigadora (CIEG/UL), Docente (UBI), Presidente da associação Mulheres na Arquitectura

 

Arquitectas: Modo(s) de (R)existir. 
Reflexões a partir de um ciclo de conversas, editoras Patrícia Santos Pedrosa, Joana Pestana Lages e Lia Gil Antunes, Mulheres na Arquitectura, Lisboa, 2018
Arquitectas: Modo(s) de (R)existir.
Reflexões a partir de um ciclo de conversas, editoras Patrícia Santos Pedrosa, Joana Pestana Lages e Lia Gil Antunes, Mulheres na Arquitectura, Lisboa, 2018

 

 

Em 1996, a investigadora social estado-unidense Sherry Ahrentzen cruza, no contexto da arquitectura, as palavras começadas por F — Frank e Feminismo — concluindo que, sobre a primeira, Frank Lloyd Wright, existiam centenas de livros e que, da segunda, Feminismo, raramente se ouvia falar. A autora apresenta igualmente a ideia de que a arquitectura se imagina a si mesma como the most assexual of occupations 1 . A ficção de neutralidade do fazer arquitectura, persistente e de fundamental desmontagem, acontece ao lado de uma outra ficção de igual modo perigosa e com muitas vítimas deixadas pelo caminho: o autor solitário e genial. As F words de Ahrentzen são disto um exemplo.

Como vemos, nos países anglo-saxónicos, na década de 1990, as questões que a profissão masculinizada historicamente levantava eram já as da naturalização das opressões resultantes do estereótipo profissional. Em Portugal, passados 20 anos, estas questões ainda são olhadas com profunda desconfiança e, muitas vezes, como um não-assunto, tanto dentro, como fora do âmbito profissional. Mas observemos, de modo sucinto, alguns dados relativos a estas duas décadas da Ordem dos Arquitectos (OA) para tentarmos perceber onde nos encontramos.

Em 1998, ano em que a Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP) se transforma em OA, a presença das mulheres arquitectas situa-se nos 30% da totalidade das inscrições 2 . Curiosamente, esta transição ocorre enquanto a presidência está nas mãos da primeira mulher a ocupar este lugar, Olga Quintanilha (1942-2005). Iniciada em 1863, com a Associação dos Architectos Civis Portuguezes (AACP) e considerando também as sucessoras, este tempo da AAP, que encerra com Quintanilha, acontece depois de uma longa lista de mais de 30 homens presidentes. 3

Nestes 20 anos iniciais de OA, ainda outra arquitecta viria a estar também à frente do seu destino, Helena Roseta (n. 1947). Daqui resulta que mais de metade deste tempo recente a presidência da instituição teve à sua frente mulheres 4 . Apesar deste contexto excepcional, não se encontraram referências relativas a consciência, estratégias ou políticas que considerassem as desigualdades entre mulheres e homens no contexto da profissão enquanto preocupação da OA ou das suas presidências. Reflecte-se igualmente na diáfana presença das arquitectas na longa lista de membros honorários. Esta inicia-se em 1903 e conta com mais de 120 personalidades e instituições, nacionais e internacionais, a quem o título é concedido, mas só 3% destas menções são mulheres e todas posteriores a de 2010. São elas Cristina Salvador (2011), Olga Quintanilha (2014), Ana Tostões (2016) e Isabel Raposo (2017) 5 .

Apesar de, em 2018, as mulheres arquitectas registadas na OA corresponderam a 43% da totalidade das inscrições 6 , esta vertiginosa aproximação numérica entre mulheres e homens ainda é profundamente desequilibrada nas esferas simbólica, de representatividade e visibilidade de arquitectas e das suas obras. Basta observar com regularidade para quem são as participações em seminários, conferências ou júris, mas também para quem recebe os prémios de arquitectura 7 , para se perceber esse desequilíbrio de presenças.

 

E o que fazemos com tudo isto?

Ao iniciarmos a terceira década de existência da OA e considerando o que anteriormente foi dito, parece-nos fundamental assinalar algumas possibilidades de acção que procurem contrariar a invisibilidade ainda efectiva das mulheres arquitectas enquanto projectistas e pensadoras qualificadas, mas também o próprio problema das desigualdades, tratado como não-problema e construído através de longas décadas de naturalização das discriminações existentes 8 . Sabemos que, relativamente a este ponto, as questões mais alargadas de uma sociedade que persiste estruturalmente patriarcal exigem alterações profundas no âmbito da educação, em paralelo com acções ainda mais incisivas na esfera legislativa, mas o problema, no contexto do ser-se arquitect@, não pode deixar de ser encarado com clareza e coragem ou permaneceremos uma profissão estagnada no século passado.

Antes de mais, parece-nos fundamental que se realize um inquérito à profissão, incluindo eventualmente aquelas pessoas que, saindo da Universidade com a formação completa, não ingressam na OA. Perceber este hiato é muito relevante para compreender a articulação entre as universidades e quem as frequenta e a entrada no mercado de trabalho. Conhecer as condições efectivas em que se vive, ou não, a profissão, ou as diversas profissões dentro da profissão, com dados desagregados por sexo — entre outros indicadores — é fundamental para que se possa agir da forma mais adequada possível, pensando em acções com objectivos a curto, médio e longo prazo.

Os estudos conhecidos estão distantes do que necessitamos neste momento, tanto temporalmente, como em relação aos seus objectivos. O mais recente, o “Estudo de caraterização dos arquitetos portugueses e da sua atividade profissional” 9 , apresenta uma metodologia questionável, não apresentando, por exemplo, os dados desagregados por sexo e falhando, assim, muitas questões essenciais. Assim, soma à sua antiguidade relativa a pouca utilidade que apresenta. O trabalho de Manuel Villaverde Cabral e de Vera Borges, “Relatório Profissão: Arquitecto/a”, é muito mais sólido metodologicamente, mas os seus 12 anos de distância tornam-no profundamente desactualizado 10 . 

As questões dos percursos de vida profissional são fundamentais para percebermos uma profissão múltipla e, deste modo, sabermos actuar a diversos níveis. Veja-se o que tem sido feito, por exemplo, a partir de São Francisco, desde 2014. De dois em dois anos é realizado um inquérito à escala nacional sobre a equidade na arquitectura e o talent retention no contexto estado-unidense, como é referido no texto Equity by Design: Voices, Values, Vision 11 . O desenho deste inquérito é focado no contexto particular do país no qual é aplicado, mas, ainda assim, uma interessante matriz de reflexão e ponto de partida para o desenho do futuro inquérito português. 

Mesmo não se conhecendo ainda o tecido profissional de modo detalhado, algumas acções podem ser possibilidades de caminho e, por serem exemplos de estratégias já realizadas noutros contextos, podem resultar de uma aprendizagem do que já vem sendo feito noutras instituições e países. À imagem do Architects’ Council of Europe, através do seu grupo de trabalho Women in Architecture, cujo objectivo principal é to develop new strategies for balancing the gender gap in architecture, because every Institution that empowers women empowers itself 12 , é fundamental começar por criar um grupo de trabalho no interior da OA que, sem anti-corpos ou mal-entendidos ideológicos, desenvolva as discussões e acções que estes temas implicam. O trabalho do grupo passaria necessariamente por trabalhar com instituições fundamentais em Portugal, como, entre outras, a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade (SECI) ou a Comissão para a Cidadania e Igualdade (CIG), mas também procurar no contexto internacional instituições similares, com as quais possa intensificar as reflexões e as respostas.

Outras acções relevantes poderão passar pela consciencialização d@s arquitect@s para o tema da arquitectura e da cidade enquanto espaços necessariamente de igualdade, tal como a exigência de a mesma igualdade ser promovida no interior da própria prática profissional. Esta consciencialização deveria acontecer tanto nas formações universitárias, como nas de acesso à profissão e na formação ao longo da vida. Se, para os cursos universitários, está a ser estudada a possibilidade de todas as formações superiores virem a incluir a perspectiva de género 13 , como foi recentemente afirmado pela Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro 14 , também seria importante que, na admissão à OA, este tema fosse abordado e tratado de forma obrigatória, assim como surgirem possibilidades de inclusão nas formações ao longo da vida para os seus membros.

Por fim, mas não menos importante, existe a necessidade de se repensar a história da profissão e da arquitectura, em Portugal, necessariamente com um diferente sentido de inclusão do ainda praticado. Não se pode conquistar a visibilidade plena, justa e legítima, se as mulheres arquitectas não estiverem consideradas nas diversas histórias que se constroem e se ensinam 15 . Os conteúdos programáticos e a disseminação de conhecimentos necessitam de ser mais inclusivos, mais amplos e, para tal, a investigação de base, nacional e internacional, precisa de ser igualmente ampliada, trazendo à luz as mulheres arquitectas que ficaram décadas na sombra das narrativas históricas da arquitectura 16 .

O problema das desigualdades diversas na prática da profissão é real e afecta uma parte significativa das 43% mulheres arquitectas que a compõem. A discussão e as possibilidades de respostas são diversas. Em muitos países, as respostas encontram-se já em concretização e são apoiadas em reflexão e produção de conhecimento. Comemorando os seus primeiros 20 anos de existência, a OA pode escolher dois caminhos: confrontar-se com os seus problemas ou fazer de conta que não existem. Esperamos contribuir para se deixar de falar das dificuldades particulares sentidas pelas mulheres arquitectas na sua profissão, quando, daqui a 10 anos, se comemorarem os 30 anos da OA. Esperamos também, nessa altura, poder vir a congratular a OA pelo trabalho feito para que esse desejo se cumpra, para que, finalmente, este passe a ser um efectivo não-assunto. ◊