REPORTAGEM HISTÓRICA
Moto-perpétuo*
Os concursos de arquitectura na organização profissional dos arquitectos
maquete do projecto, 1.º prémio
O tema dos Concursos de Arquitectura no seio da organização profissional dos arquitectos funde-se de tal forma com a sua própria existência que não é possível delimitá-lo e analisá-lo dentro dos 20 anos da Ordem dos Arquitectos (OA), sem que se entendam os seus antecedentes. Mas antes importa delimitar três questões a partir das quais será possível enquadrar a leitura que aqui se pretende fazer.
Em primeiro lugar interessa estabelecer a distinção entre o concurso e a mais vasta questão da encomenda de arquitectura, sobre a qual as diversas associações profissionais de arquitectos em Portugal se vêm debruçando ao longo da sua história. Se o primeiro encerra especificidades próprias, cujo teor lhe confere uma clara autonomia temática, o segundo abrange um maior conjunto de questões com as quais o primeiro se cruza e com as quais frequentemente (e erradamente) se confunde. A delimitação do exercício da profissão, que durante muitos anos alimentou um debate no seio das diversas formas associativas, e a questão dos honorários profissionais, que nos concursos rapidamente deriva para os preços-base e os elevados custos associados à participação, são dois exemplos que extravasam o âmbito específico dos procedimentos concursais, mas que sempre foram centrais na reflexão e nas reivindicações dos arquitectos.
A segunda questão prende-se com a vocação e o carácter público das diversas formulações associativas dos arquitectos em Portugal. O progressivo reconhecimento do trabalho do arquitecto e do interesse público da profissão caminhou (não sem altos e baixos) a par com o seu reconhecimento estatutário como órgão representativo da profissão perante o Estado, um percurso que culmina com a passagem da Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP) a OA em 1998. Os concursos de arquitectura reflectem este itinerário, testemunhado através da sua inclusão nos diversos estatutos associativos 1 .
Por último, é importante que se tenha uma certa imagem “iceberguiana” dos concursos no seio das organizações profissionais dos arquitectos, representativa do desequilíbrio entre a face visível, pela sociedade, pelos promotores, mas sobretudo pelos arquitectos, e as diligências que têm lugar nos bastidores. É sempre com alguma apreensão que as entidades promotoras encaram a especificidade do concurso de arquitectura, e entre arquitectos o tema tanto faz detonar acesa polémica como perspectivar resoluções quase sempre pessoais e circunstanciais, gerando um debate tão acalorado quanto empírico e inconclusivo. Mas, por frequentemente resultarem das inevitáveis e súbitas frustrações a que o concurso se presta, essas resoluções não têm em conta as gigantes batalhas que, nas diversas frentes, foram levadas a cabo pelos responsáveis associativos ao longo dos tempos.
Antes da OA
Quando, em 1985, Portugal assina o tratado de adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), a AAP vivia ainda tempos de consolidação. Em 1978, quatro anos após a revolução de Abril, tinha sido finalmente consagrada a nova Associação, legítima herdeira de todas as anteriores formulações corporativas da classe dos arquitectos no país. Embora a questão dos concursos de arquitectura não tenha constituído uma prioridade inicial, que se centrara sobretudo na regulamentação da profissão e na representação da classe, o tema fica desde logo fixado no seu estatuto, prevendo, para além da nomeação de representantes para júris, herdada das associações anteriores, a presença da AAP na preparação de programas de concurso. A partir do início da década de 80, os concursos aparecem já visivelmente na ordem de trabalhos das direcções da Associação. A sua regulamentação, a par com a regulação da própria participação da AAP em concursos públicos, começa a constituir-se por esta altura como prioridade e a constar dos programas das direcções, espelhando a crescente relevância do tema no seio da classe profissional. Em 1984, Nuno Teotónio Pereira, no primeiro dos dois mandatos em que dirige a AAP, destaca o tema, com forte apoio de Olga Quintanilha, como uma das duas prioridades no domínio do exercício da profissão, a par com a revisão do Decreto 73/73. Em 1987 revela a sua urgência ao diagnosticar o franco crescimento de concursos “selvagens”, alheios aos fundamentais princípios de qualidade, igualdade de oportunidades e abertura a novos valores a que se deveriam vincular. O desfasamento entre a constatação e denúncia desta inultrapassável realidade no domínio da encomenda pública, por um lado, e a necessidade de uma regulamentação específica para concursos de arquitectura, por outro, constitui motivação suficiente para que constassem também das mais ambiciosas intenções a possibilidade de uma obrigatória vinculação da AAP à totalidade dos concursos públicos nacionais de arquitectura.
É importante referir que a AAP consagra o estatuto e a independência das secções regionais Norte e Sul, e embora ficasse prevista a alternância entre elas na direcção nacional, a condução dos assuntos de âmbito nacional acabaria por recair quase exclusivamente na Direcção Sul (de Lisboa), que centralizará na prática a questão dos concursos até meados da década de 90.
Com a entrada de Portugal na CEE, a 1 de Janeiro de 1986, a encomenda pública de arquitectura em geral, e os concursos em particular, vão sofrer importantes e graduais alterações. A adesão marca o início do período durante o qual o país vai receber importantes fundos estruturais que garantem a possibilidade de construção de um grande número de planos, edifícios e infra-estruturas, aspecto que se reflecte num significativo aumento do número de concursos de arquitectura 2 . Por outro lado, o país recebe também um conjunto de directivas no domínio legislativo que, à medida que vão sendo transpostas para legislação nacional, vão regulando e “domesticando” a encomenda pública de arquitectura debaixo dos princípios políticos e económicos que gerem o Mercado Único.
Ao reforço das competências e responsabilidades institucionais que são cometidas à associação de direito público, em 1988, designadamente a sua exclusividade como interlocutor com o Estado no domínio do exercício profissional e regulador da profissão, corresponde internamente uma efectiva autonomização das duas secções regionais em relação à direcção nacional, facto importante por vir a conduzir, com o tempo, à real autonomização dos pelouros que se encarregam dos concurso, tanto a Norte como a Sul. No triénio seguinte (1990-1993), Francisco Silva Dias assume a direcção do Conselho Directivo Nacional (CDN) (e da AAP) e Pedro Brandão a da Secção Regional Sul (SRS), consolidando-se também a clarificação da separação de competências entre os órgãos nacionais e regionais: se sobre a direcção nacional vai recaindo cada vez mais a definição de políticas gerais e o relacionamento institucional com o Estado, são as secções regionais que vão ficar responsáveis pela efectivação prática dessas políticas perante os membros e a sociedade. Nos concursos, esta divisão vai separar duas áreas de actuação relevantes: por um lado, os importantes contributos para os sucessivos diplomas legais que virão a enquadrar os concursos de arquitectura ficam a cargo do CDN, por outro, a prática quotidiana de assessoria às entidades promotoras, a par da auscultação ao panorama da encomenda pública de projectos, vai recair sobre os Conselhos Directivos Regionais (CDR).
Numa altura em que subia fortemente o número de concursos a que a AAP é chamada a prestar apoio, importa referir o significativo peso que as universidades vão ter, por via da adopção privilegiada do concurso como metodologia para o projecto de construção dos seus equipamentos e infra-estruturas, movimento que não encontra paralelo em nenhum outro dos vários programas de implementação de equipamentos públicos.
Mas são outros dois aspectos que vão marcar, também neste período, não só aquele preciso momento como todo o futuro dos concursos na AAP e na futura OA. O primeiro diz respeito à definição das regras pela qual os concursos se virão a reger, dentro e fora da AAP. Já desde o final dos anos 1980 que a Comissão Europeia preparava a chamada directiva “serviços”, que visava normalizar a contratação pública de serviços pelos estados-membros, e a quem o Conselho Europeu de Arquitectos (CEA 3 ) havia feito chegar um conjunto de orientações sobre concursos de arquitectura. Pela mesma altura, em 1989, a AAP vai publicar internamente o Manual de Encomenda dos Serviços de Arquitectura e Urbanismo, um documento que tem como objectivo colocar à disposição da administração pública e da sociedade uma resenha de regulamentos, normas e pareceres em vigor relacionados com a encomenda de projectos.
Diagnosticando, mais uma vez, a ausência em Portugal de uma prática correcta nesta matéria, esta publicação preparava terreno para a entrada em cena da directiva europeia “serviços”, em 1992 4 , e que vai imediatamente passar a servir de referência nas reivindicações da classe e orientar o trabalho da AAP. É também esta directiva que introduz pela primeira vez na nomenclatura nacional o termo “Concurso de Concepção” e o associa a alguns princípios vitais para os arquitectos, como a sua aplicação obrigatória na contratação de serviços acima de um determinado valor, o anonimato dos projectos, e uma equivalência entre as habilitações profissionais dos membros do júri e dos concorrentes.
Se esta regulamentação veio tornar fixas e específicas as regras da realização de concursos de concepção, representando, ainda que de forma incipiente, um importante passo nesta fase, não menos importante foi a decisão paralela, tomada em 1993 pelas direcções nacional e regional Sul, de também tornar fixa e específica uma estrutura interna própria dedicada aos concursos. Pedro Brandão, que assume neste ano a direcção nacional da AAP, dava assim corpo ao segundo aspecto marcante neste período, materializando um serviço profissional e exclusivamente dedicado aos concursos, designado Serviço de Concursos, e abrindo as portas a Carlos Abrantes 5 , que ao longo de quase 20 anos vai ser uma importante peça na administração dos concursos na AAP e na futura OA.
Desde 1987 o número de arquitectos quase que duplicara por via da multiplicação de cursos superiores. Com um quadro regulamentar definido e o serviço montado, e apesar das adversidades conjunturais próprias de um rescaldo de crise internacional 6 , o momento é de optimismo nos concursos no seio da AAP, reforçado pela inauguração em 1994 da sua nova sede, no edifício dos Banhos de São Paulo, sintomaticamente resultado de concurso promovido pela própria AAP em 1990.
Para o contributo na regulamentação dos concursos públicos, que aguarda a transposição da directiva europeia para a legislação nacional, mas também porque o Serviço de Concursos pedia a fixação de normas e procedimentos estáveis, são, em 1993 e 1994, produzidos internamente na AAP estudos que visam fixar princípios e tipificar documentos para os concursos, e também definir as relações da AAP com os potenciais promotores. E se o primeiro aspecto vai conduzir à elaboração de documentos de referência, não só para orientação interna do novo serviço, mas também como base para a sua desejada fixação em diplomas legais decorrentes da acção legislativa então em curso, já o segundo vai promover a aprovação em reunião plenária do CDN, em 1994, do “Regulamento de Participação da AAP na Organização e Realização de Concursos”, documento orientador da colaboração da AAP com as entidades promotoras, e que, mantendo-se em vigor até aos dias de hoje, vai estabelecer as formas da assessoria, que ficam divididas em três tipos: Apoio Técnico, Assessoria Simples e Assessoria Completa.
O Apoio Técnico, a mais simples das formas, resume-se à análise dos processos elaborados pelos promotores, já ambas as formas de assessoria prevêem a elaboração e organização de todo o processo de concurso, diferindo uma da outra apenas pela extensão do serviço prestado, que no caso da Assessoria Completa perdura para além do concurso no acompanhamento do cumprimento do contrato entre a entidade adjudicante e o concorrente vencedor.
Em todos os casos, está sempre contemplada a indicação de dois jurados para integrarem o júri do concurso: um efectivo e um suplente. Refira-se que ao longo do tempo a Assessoria Simples foi sempre a forma de colaboração preferida, não só pela AAP (e depois pela OA), que vê assim garantido o controlo do processo de concurso, melhor salvaguardando os interesses dos arquitectos, como pelas próprias entidades promotoras que, delegando na associação toda a tramitação processual, garantem um procedimento cujo formato não dominam. O regulamento vem prever também valores a cobrar aos promotores, não só pelos serviços prestado como pela participação dos jurados designados. Este facto vai encontrar sempre alguma resistência por parte das entidades públicas, cujo interesse num primeiro contacto se resume, frequentemente, à indicação de um jurado, o que inicialmente acreditam não constituir qualquer encargo.
A meio de 1995 entra em vigor, em Portugal, o Decreto-Lei 55/95, que transpõe para a ordem jurídica interna a directiva europeia. Duas matérias merecem desde logo os elogios da AAP a este diploma. Em primeiro lugar, a definição do seu campo de aplicação, que vem deixar claras quais as entidades abrangidas: todas as pessoas colectivas de direito público. Em segundo lugar, a existência de uma secção especificamente dedicada aos Concursos de Concepção, que inclui os procedimentos destinados a fornecer, entre outros, planos ou projectos no domínio da arquitectura, do planeamento urbano e do ordenamento do território. Estes, não sendo procedimentos exclusivos para o trabalho do arquitecto, não vêm responder na íntegra às históricas reivindicações da classe, mas o diploma deixava em aberto a futura publicação de portarias com modelos de programas e cadernos de encargos tipificados para os contratos mais frequentes, motivando no seio da AAP a esperança, não apenas de uma rápida autonomização e especificação dos concursos de arquitectura, mas igualmente do reforço do seu próprio papel na regulamentação e administração destes procedimentos.
Algumas outras regras vão formatar o concursamento de arquitectura a partir deste diploma. Desde logo, a diferenciação entre concursos públicos ou de prévia qualificação. Fixava-se igualmente a obrigatoriedade dos júris serem compostos por uma maioria de arquitectos, o que respondia a uma histórica reivindicação da classe e superava a cota de um terço estipulada como mínima na directiva europeia. A estes era ainda dada total autonomia na tomada de decisões. No entanto, a sua composição nominal só poderia ser tornada pública após a inscrição no concurso, uma medida discutível que, pretendendo salvaguardar a lisura dos procedimentos, não respondia à especificidade do concurso de arquitectura enquanto competição assente em critérios inevitavelmente subjectivos, e nos quais não deixa de ser relevante o perfil do avaliador. Outra salvaguarda ficava garantida com a decisão do júri poder ser alvo de audiência prévia pelos concorrentes, o que, constituindo uma defesa dos seus direitos, viria na prática a resultar num aumento da conflitualidade já de si congénita deste modelo. Esta medida viria a ter como consequência a inesperada e gradual deslocação do centro das atenções do Serviço de Concursos para a área jurídica, consubstanciada no apoio aos intervenientes e na mediação de conflitos.
É também no ano de 1995 que Pedro Brandão coordena a edição do Livro Branco da Arquitectura e do Ambiente Urbano em Portugal. Este importante documento não deixará de fora a questão da encomenda e dos concursos, efectuando uma primeira avaliação ao Decreto-Lei recentemente aprovado. Vincando o insignificante número de concursos que apesar das acções da AAP tem então lugar em Portugal, não deixava no entanto de ser com tom optimista que registava os avanços da lei. Nele exortava-se a necessidade de formatar concursos com bases credíveis e com estruturas e prestações simplificadas, com regulação das modalidades em função da complexidade, com suportes de avaliação padronizados, prazos curtos e atribuição de prémios justos. Mencionava, por fim, a intenção de melhorar o Serviço de Concursos. Refira-se que, mesmo sem estas valências plenamente desenvolvidas, é claramente patente que a AAP, através do Serviço de Concursos, é já nesta altura a entidade que maior experiência detém na organização de concursos de arquitectura no novo contexto legal, e que a sua intervenção vem gradualmente a constituir uma valiosa garantia de rigor e credibilidade na complexa teia técnica, administrativa e jurídica que envolve a sua realização. Uma garantia válida não só para os arquitectos mas principalmente para os promotores públicos, como em Novembro desse ano esclarece Carlos Abrantes, na comunicação que profere no seminário Concursos para Trabalhos de Concepção — Princípios e Prática, “(…) não será despiciendo concluir que, hoje em dia, não deve organizar concursos quem quer, mas quem sabe. Trata-se de uma tarefa que não admite improvisos e, por isso, destinada a profissionais.”
O Livro Branco marca na história associativa o culminar de um período de mais de 12 anos de intenso envolvimento activo por parte de Pedro Brandão que, de saída, no final de 1995, o considera como um dos projectos particularmente decisivo para o futuro da profissão. Outro, e aquele que virá a constituir o principal desafio no triénio seguinte, já sob a direcção nacional de Olga Quintanilha, será o do reforço das competências da organização associativa dos arquitectos e a consequente aprovação do novo estatuto. Ou seja, o projecto da OA. Estavam então já lançadas as bases para o regular funcionamento do Serviço de Concursos, e o tema não vai ter, no decurso do mandato, o protagonismo do triénio anterior. Numa altura de transição entre a AAP e a OA, Olga Quintanilha vai chamar a si e à sua equipa a responsabilidade pela orientação do Serviço de Concursos, retirando-o da competência regional. Carlos Abrantes passa assim a responder directamente ao CDN e Leonor Figueira assume a responsabilidade pelo pelouro, começando ambos a trabalhar num primeiro projecto para um Código de Jurados.
Das matérias claramente identificadas como vitais para o sucesso dos procedimentos concursais, duas delas vão manter-se, até hoje, longe da directa interferência dos Serviços de Concursos. Uma delas é a responsabilidade pela elaboração de Programas Preliminares, da responsabilidade das entidades promotoras, cuja incorrecta formatação estava já diagnosticada como causa suficiente para comprometer um concurso. Outra, não menos importante, é a escolha dos elementos dos júris representantes da AAP, cuja responsabilidade vai desde sempre recair directamente sobre as direcções eleitas. A designação de jurados encerra sempre, ainda que tenuemente, uma vontade política, pelo que a sua nomeação extravasou sempre a vocação técnica e administrativa do Serviço de Concursos. Não sendo raro serem contestadas as nomeações, vai ganhando urgência a elaboração de um código de conduta que tornasse esta matéria isenta de qualquer dúvida.
A questão dos jurados é uma das que virá reforçada no estatuto da OA, aprovado em 1998. Este, para além de manter prevista a colaboração corporativa na organização e regulamentação de concursos e a participação nos júris, estabelece agora também a correspondência entre as diferentes competências e os seus órgãos, deixando claro o retorno às direcções das Secções Regionais da responsabilidade pelas assessorias nos concursos e a nomeação de representantes de júris, cabendo aos Conselhos Regionais de Delegados (CRD) o estabelecimento de critérios para a sua nomeação.
A história, a partir daqui, contar-se-á definitivamente em dois capítulos diferentes, um a Norte e outro a Sul, entrecruzados sempre que sobre a mesa se colocam questões de fundo e de âmbito nacional. Tanto a Norte, com o Pelouro da Encomenda, como a Sul, com o Serviço de Concursos, estavam delineadas as regras, os princípios e a forma como, durante os anos seguintes, pese embora as diferentes orientações políticas e estratégicas, o assunto vai ser regido dentro de uma OA recém-nascida.
Depois da OA
Com duas estruturas autónomas de apoio a concursos, por onde passaram mais de uma dúzia de diferentes direcções, muitas foram as variáveis, as políticas, as lutas e os casos significativos nas duas décadas da OA. A já referida questão da designação de elementos para os júris, por exemplo, vai ser amplamente debatida, oscilando entre um aleatório sistema de sorteio entre todos os associados com um determinado número de anos de inscrição (método utilizado na SRS logo no triénio 1999-2001, sob a direcção de Leopoldo Criner), até à constituição de uma bolsa de jurados (nem sempre eficaz) com critérios claros (nem sempre unânimes) protagonizada por Fernando Martins e Telmo Cruz enquanto presidentes dos CRD, também a Sul, nos triénios seguintes.
A este último deve-se igualmente a implementação do “semáforo”, que, no âmbito da análise aos processos de concurso externos à OA, vai assinalar com as cores verde, amarela e vermelha uma avaliação dos procedimentos com vista a alertar os arquitectos para os concursos de alguma forma irregulares. Este procedimento foi igualmente implementado a Norte, inclusivamente de modo mais acutilante, por Margarida Vagos Gomes, através do qual os concursos inaceitáveis são denunciados aos membros, à comunicação social e às entidades oficiais, tendo-se mesmo chegado à formalização de participações disciplinares contra arquitectos concorrentes. Estas acções serão possíveis a partir da regular disponibilização online dos anúncios de concursos publicados em Diário da República, e da presença permanente das Secções Regionais na Internet, o que só acontece já na década de 2000. A presença online dos concursos é alvo de diferentes estratégias internas, com destaque para a implementação em 2008-2009, pela SRN, sob a alçada de Margarida Vagos Gomes, dos “micro-sites”, plataformas individualizadas para cada concurso que, a par com a simultânea introdução de um sistema de apartados e de geração de códigos, vão ser pioneiras na tramitação à distância de projectos em concursos com absoluta garantia de anonimato. E também para o lançamento, já em 2016, do Portal da Encomenda da SRS, uma plataforma exclusivamente dedicada a concursos e prémios promovida por Paulo Borralho e João Costa Ribeiro.
Fora de uma reflexão, ainda que sumária, sobre a actividade dos pelouros da encomenda das Secções Regionais no período de vida da OA não pode ficar todo o trabalho efectuado em torno das diferentes propostas legislativas que foram sendo debatidas e aprovadas. A colaboração com o Estado na regulamentação dos concursos é uma competência estatutária da Direcção Nacional, mas esta sempre contou com o contributo das Secções Regionais que, por estarem perto da realidade prática e serem as interlocutoras perante membros e promotores, sempre foram consultadas nos processos. Logo em 1999, é aprovado o Decreto-Lei 197/99 que revoga o anterior Decreto-Lei 55/95. Mas as alterações, no que concerne os concursos de concepção, não são benéficas, principalmente porque ampliam as formalidades burocráticas, incluindo aquelas que, pretendendo alargar os direitos de audiência prévia aos concorrentes após a divulgação dos resultados, irão colidir com a absoluta impossibilidade de se ver alterada a hierarquização dos trabalhos após a quebra do anonimato.
Ainda mais comum passa assim a ser a litigância e a frequência com que os processos redundam em impugnações e anulações meramente formais e administrativas. Vai ser só em 2008, com a aprovação da primeira versão do Código dos Contratos Públicos (CCP) que esta situação vai melhorar. Mas se, por um lado, o código agiliza e simplifica os processos, tornando-os mais convidativos para as entidades promotoras, por outro, vai ampliar o espaço para contratação de arquitectura fora do modelo de concurso de concepção. Ganha-se aqui, contudo, o conhecimento prévio da composição nominal dos júris, muito por mérito das equipas dos pelouros da encomenda da SRS e da SRN. Mas o principal contributo vai ser a formatação dos Concursos de Concepção, que passam a possuir pela primeira vez regras jurídicas próprias detalhadas e claras. Decorrente do processo de preparação do CCP, que ocorre entre 2006 e 2008, vão ser encomendadas ao escritório do advogado Sérvulo Correia, responsável pela redacção do Decreto-Lei e com quem Margarida Vagos Gomes e Telmo Cruz haviam trabalhado na sua preparação, as bases para os novos regulamentos (designados Termos de Referência) e Cadernos de Encargos para os concursos de concepção, documentos que passam então a constituir bases estáveis e seguras para os concursos a que a OA presta assessoria. Mas não deixam de sofrer previamente algumas adaptações que melhor os formatam à realidade dos arquitectos e da arquitectura. Realizadas separadamente na SRS e na SRN, essas adaptações vão resultar em documentos diferenciados, atestando mais uma vez diferenças entre o Norte e o Sul que contribuíam para legitimar, já desde 1994, a duplicação dos serviços de apoio a concursos no seio da organização profissional da classe.
Pese embora todo o trabalho em torno da legislação e dos modelos de documentação, o Concurso de Concepção não deixa de constituir para a grande maioria das entidades promotoras públicas uma rara excepção no seu panorama de encomenda, muito mais familiarizado com as formatações do concursamento público simples, baseado em critérios quantitativos de preço e prazo, ou com o Ajuste Directo. Por este motivo, e manifestando uma das mais invisíveis áreas de actuação para os arquitectos, foram sempre relativamente constantes as movimentações das diferentes direcções junto de entidades públicas e privadas na defesa e na procura de angariação de Concursos de Concepção, consubstanciadas através de acordos, protocolos e propostas de colaboração. Com o mesmo intuito foram também realizados alguns eventos e produzida documentação específica sobre o tema. Destaque desde logo para a realização em 2003, no Porto, do Encontro Nacional e Exposição de Encomenda Pública e Concursos de Arquitectura, organizado pelo Pelouro da Encomenda da SRN, e que, sob a coordenação de André Tavares, Cristina Machado e Nuno Grande, vai-se focar sobretudo na validação e no reconhecimento do concurso de arquitectura enquanto modelo abrangente, procurando fazer sobressair as suas vantagens culturais, sociais e económicas.
Principalmente para debate no seio da classe, para além dos diversos textos e artigos publicados de forma avulsa, destaca-se o número 216 do J—A, de 2004, que, com edição de Manuel Graça Dias e Ana Vaz Milheiro, vai ser inteiramente dedicado aos concursos sob o provocador título Os Cavalos Também se Abatem. Já em 2008, coincidentes com a entrada em vigor do CCP, são levadas a cabo algumas iniciativas mais pequenas, como o colóquio Projectar com o CCP — Concursos de Concepção, uma iniciativa da SRN em conjunto com a Associação Comercial do Porto, e as Jornadas de Reflexão sobre Concursos de Concepção, da SRS, com a consequente aprovação por aquele órgão de uma Carta de Princípios sobre Concursos de Concepção, apresentada como documento orientador para o mandato, e que define os princípios para participação, colaboração e promoção de Concursos de Concepção, reiterando e complementando as regras do CCP.
Já em 2012, inserida no programa IntraMuros - Encontros de Arquitectura, é realizada na sede da OA a sessão Concursos de Concepção: Balanço e perspectivas para novos modelos, uma iniciativa do CDN que acompanha o lançamento do número 227 do Boletim Arquitectos, também dedicado aos Concursos. João Costa Ribeiro, que em 2008 tinha elaborado a “Carta de Princípios” e que volta à direcção regional Sul no triénio 2014-2016, vai desenhar no início do mandato o Documento Estratégico da Encomenda 2014-2016, um texto que, apesar das limitações legais, vai preconizar uma abertura a novos modelos de concursamento, modelos esses que são também defendidos e apresentados num Manual dos Concursos, um documento de apresentação do Serviço de Concursos da SRS realizado no mesmo ano. Note-se que estes documentos surgem depois da aprovação, em 2012, da primeira alteração significativa ao CCP, realizada em pleno período de acentuada crise económica no país, e que esta vai estipular uma grande subida do valor até ao qual a contratação pública de projectos pode ser realizada por Ajuste Directo. E é esta alteração que, libertando um grande espectro de projectos da estrita obrigatoriedade do concurso, vem motivar a SRS na definição e defesa de modelos de concursamento alternativos e simplificados, apresentando-os às entidades promotoras como procedimentos atractivos, já não por dever legal, mas unicamente por manifesto benefício económico, cultural e social.
Também a SRN, já em 2016 e através do seu pelouro da encomenda, vai editar um catálogo ilustrado, simplesmente designado Pelouro da Encomenda, o qual, destinado a sensibilizar as potenciais entidades adjudicantes da sua área geográfica para a promoção de concursos, vai sintetizar o trabalho desenvolvido por aquele pelouro nos anos precedentes.
Por último, há que destacar a mais significativa iniciativa dedicada ao tema dos concursos realizada durante as duas décadas de vida da OA. No ano de 2015, no segundo mandato da SRS dirigido por Rui Alexandre, o concurso é eleito como uma das áreas estratégicas da secção, e são para o efeito preparados três projectos: a elaboração de uma plataforma online dedicada à encomenda e aos concursos, activada em 2016; o lançamento, pela própria SRS, de cinco concursos de ideias, temáticos e exploratórios, dos quais três foram efectivamente realizados por intermédio do novo portal; e a realização da exposição e respectivo catálogo, Arquitetura em Concurso: Percurso Crítico Pela Modernidade Portuguesa, com curadoria de Luís Santiago Baptista, revelando o cruzamento da história dos concursos com os desafios e a transformação do país ao longo de quase um século.
Um olhar sobre a participação da OA na realização de concursos pode ser também ilustrado pelos casos que, positiva ou negativamente, marcaram a OA e os seus serviços de assessoria.
Um deles ilustra bem a questão que se coloca com os concursos de projectos a construir na área geográfica da SRN com processo assessorado pela SRS. O concurso realizado em 2004 para o Museu de Arte e Arqueologia do Vale do Côa, no distrito da Guarda, é angariado e negociado em Lisboa com o Instituto Português de Arqueologia e toda a tramitação se dá a Sul. Percebida a importância deste projecto, ainda numa fase embrionária, foi desde logo dedicado um grande envolvimento por parte das direcções em funções no sentido de ser realizado um concurso, método que não seria, como raramente é, a primeira opção do promotor. A importância do edifício construído não é hoje posta em causa, e atesta bem as maiores vantagens deste modelo de encomenda, fazendo o tempo apagar todas as tensões que lhe são inerentes.
Outros casos há, no entanto, em que os processos não terminam bem, e cujos desfechos, sempre com pesadas perdas para todas as entidades envolvidas, não deixaram de constituir matéria-prima para reflexão e futura adaptação dos procedimentos. O concurso para a Remodelação e Ampliação da Casa dos Corte-Real, para adaptação a Biblioteca Pública em Angra do Heroísmo, de 2001, extinto por não ter sido atribuído valor absoluto a qualquer dos trabalhos, bem como os concursos para a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, de 2004, e para a Sede da AMI, de 2008, anulados por impugnação judicial, são disso alguns exemplos.
Todos os casos mencionados ocorrem no período de vigência do Decreto-Lei 197/99, no qual toda a divergência e tensão dos concursos facilmente ganha uma expressão judicial suficientemente intrincada para esmiuçar, a níveis perniciosos, questões formais, como uma simples legendagem ou a rigorosa implantação nos painéis de um qualquer elemento solicitado, ou o tempo, contado em minutos, dedicado pelos jurados à análise de cada projecto, como aconteceu nos exemplos dados. Todos estes casos produzem lições, mas também anticorpos a um modelo de encomenda visto por muitos como caro, lento e litigioso.
A estas críticas não foram sendo insensíveis os diversos responsáveis associativos pelos pelouros, que as foram revertendo em princípios ou regras internas. Telmo Cruz, por exemplo, no final do concurso para a Sede da Delegação de Faro da Ordem dos Arquitectos, em 2004, regista o promíscuo paradigma que encerra alguns procedimentos, o de o valor necessário à organização do processo — assessoria, jurados, prémios etc. — ser superior ao total dos honorários auferidos pela equipa vencedora.
Realizado em casa própria, este concurso vai permitir perceber uma das causas das frequentes resistências que as entidades adjudicantes colocam ao concurso, e provavelmente veio contribuir para o crescimento de uma visão mais aberta sobre a encomenda, não a vendo esgotada num único modelo de competição. Não será por acaso que o próprio Telmo Cruz insiste em designar a área pela qual foi responsável na SRS, entre 2002 e 2007, como Pelouro da Encomenda, e não Pelouro dos Concursos.
Pedro Brandão, já em 1995 7 , nos elucidara numa questão fundamental que sempre esteve presente na gestão dos concursos, inicialmente na AAP e depois na OA, e que ganha terreno com o crescimento da complexidade normativa dos concursos e a decorrente formalidade a que vão progressivamente ficando sujeitos. Trata-se da perspectiva com que são privilegiadamente abordados e com que são olhados, corporativamente, pela classe. Pedro Brandão resume-o naquilo que indica serem “duas lógicas contraditórias”: a tendência para a flexibilização de critérios e procedimentos, de forma a atrair o maior número possível de concursos e de propostas em cada um, e a tendência para um estrito cumprimento dos requisitos legais e normativos, procurando garantir o rigor e a integridade formal nos procedimentos, recusando a participação naqueles que não os cumpram.
Este assunto pode ser ilustrado com as posições defendidas por João Costa Ribeiro e Luís Afonso, ambos responsáveis pelos concursos na SRS em triénios alternados entre 2008 e 2016. O primeiro focaliza o seu interesse na abertura da instituição a possíveis modalidades alternativas, procurando convergir as necessidades dos arquitectos com a dos promotores; o segundo, centrado num rigoroso cumprimento da lei, foca o seu mandato na análise, denúncia e condenação de concursos e das respectivas entidades promotoras. Inabalável nos seus fortes princípios éticos, os quais já o haviam levado à exposição e denúncia, anos antes de ingressar na OA, do programa Parque Escolar, ao abrigo do qual todos os projectos públicos haviam sido adjudicados sem recurso a concurso, Luís Afonso vai afastar-se precocemente dos desígnios associativos. Também Carlos Abrantes, em parte por motivos idênticos, vai em 2012 colocar um ponto final no seu já longo percurso à frente do Serviço de Concursos da SRS.
Não estando em causa a validade de cada uma das posições, importará talvez questionar um ponto na qual convergem, que reside na latente e inevitável hegemonia que as complexas questões normativas e procedimentais acabam por ter na abordagem corporativa sobre os concursos. É que com elas tende a ficar secundarizada, quando não mesmo totalmente eclipsada, a inigualável potencialidade do Concurso de Arquitectura enquanto instrumento de construção e sedimentação de discursos e de identidades arquitectónicas e culturais. ◊
Este texto resulta da investigação do autor e da troca de ideias com Luís Santiago Baptista.