REPORTAGEM HISTÓRICA

Memento, um tempo até à Ordem dos Arquitectos

Por João Paulo Rapagão

Arquitecto, Docente (ULN/Porto)*

 

© Ana Aragão, 2017
© Ana Aragão, 2017

 

 

Vencido o 25 de Abril de 1974, os arquitectos dirigentes do então Sindicato Nacional dos Arquitectos — designação curiosamente imposta pelo Estado Novo — afirmam a componente social e confirmam a cultural da arquitectura, motivados por um contexto político e democrático livre, capaz de entusiasmar e causar um maior envolvimento com a sociedade. Dirigidos por desejos progressistas mas ainda corporativistas, vacila-se entre a necessidade e a obrigatoriedade de inscrição na associação. A inconstitucionalidade da segunda opção ou imposição leva a que se recorra a uma adequação e regulamentação interna do exercício da profissão. Na agenda dos arquitectos surgem as necessidades deontológicas e éticas, enquadradas pelo interesse público, claramente à procura de um comprometimento e de um reconhecimento da sociedade. À formação acrescenta-se ainda a regulação do acesso à profissão.

O mandato decorrido entre 1975 e 1977 produz o Estatuto da Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP), autonomizando as secções regionais, Norte e Sul, que exercem alternadamente uma direcção nacional não eleita. Ainda fragilizada pela contradição entre a vontade de representatividade dos arquitectos e a não obrigatoriedade da sua inscrição, a organização ambiciona filiar-se e articular-se internacionalmente com a União Internacional dos Arquitectos e o Conselho Ibero-Americano das Associações Nacionais de Arquitectos. 1975 fica marcado pela independência de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Timor.

1978 vê o novo estatuto da AAP aprovado, embrião da futura associação pública profissional. Dirigentes livremente eleitos voltam a gerir os arquitectos no triénio terminado em 1980. Os I Congresso, realizado no Porto, e II Congresso, efectuado em Lisboa, concentram-se, respectivamente, na estruturação e implantação da AAP e no ordenamento e planeamento do território, evidenciando a necessidade de organização interna da classe e de participação externa com a sociedade. 

Entre 1982 e 1984, mandato interrompido quando a direcção eleita se demite, as linhas programáticas expõem claramente uma atenção ao diálogo com o Governo e, ainda, o agendamento de temas politicamente abrangentes e estruturantes como, por exemplo, o território e o património. Procura-se agora uma dinâmica socialmente interventiva e activa fundamental para o reconhecimento dos arquitectos e da arquitectura.

De 1984 a 1986, tempo marcado pela adesão à Comunidade Económica Europeia, orientados pelo III Congresso realizado em Lisboa em 1984, a atenção e acção centra-se então na organização e articulação interna da AAP, convergindo e unindo esforços na afirmação da arquitectura e dos arquitectos. Reclama-se unidade e actividade concertada, combatendo-se a tradicional e fatal dicotomia Norte/Sul. Em 1986, o IV Congresso realizado no Porto aprova o novo estatuto dominado pela associação de direito público, tornando a AAP em parceira negocial e social importante com o Estado e a sociedade no controlo do acesso à profissão e no exercício da mesma. 

A partir de 1987 reivindicam-se os direitos e evidenciam-se os deveres. Perante um território progressivamente desregrado e desqualificado, promovem-se a arquitectura e os arquitectos afirmando a sua capacidade e responsabilidade profissional, entre as carências de um país descaracterizado e desqualificado e as exigências dos arquitectos exercerem arquitectura. Em 1989, o V Congresso dedica-se à qualidade dos espaços nas diversas escalas, também nas suas componentes materiais e formais. 

Importa agora, entre 1990 e 1992, despertar e conquistar o mercado da prestação de serviços de arquitectura, reclamando a exclusividade dos arquitectos no exercício dos actos próprios da profissão no território nacional e exigindo a inscrição na AAP que acompanha, atenta, o acesso ao Mercado Único Europeu. A Directiva Arquitectos e o VI Congresso, decorrido em Lisboa em 1992, convergem para um enquadramento e acompanhamento europeu, aliando a responsabilidade profissional à cultura comum a Portugal e Europa. Seguros e garantias entram na agenda associativa e organizativa agora atenta ao consumidor. Simultaneamente exige-se a regulação e regulamentação legal da encomenda pública de Arquitectura e Urbanismo, enquadrando a contratação e reclamando a promoção de concurso públicos. A AAP observa, ainda, os planos de estudos das escolas de arquitectura. O Prémio Pritzker 1992 é atribuído, pela Fundação Hyatt, a Álvaro Siza, com grande exaltação e divulgação nacional. 

De 1993, ano da entrada em vigor do Mercado Único Europeu, a 1995, entre conquistar o mercado interno e enfrentar o mercado único, exige-se mais coesão e acção coerente das estruturas corporativas e associativas. No VII Congresso realizado em Aveiro, em 1995, defende-se um investimento no enquadramento da profissão do arquitecto e da promoção da arquitectura associados à maior e melhor prestação de serviços. O debate participado e animado sobre arquitectura é o instrumento de aproximação e criação de uma opinião pública. Entre arquitectos e engenheiros fixam-se estratégias de interesse público úteis às duas especialidades. Do congresso resultam as sementes da Ordem dos Arquitectos, atentas às transformações económicas, políticas e ecológicas, também culturais e sociais, entre outras. Evidenciam-se os diferentes modos do exercício da profissão. Associado a estas linhas de reflexão e acção surge o Livro Branco da Arquitectura e do Ambiente Urbano em Portugal que vai enquadrar e sustentar a revisão do Estatuto e a criação da Ordem dos Arquitectos, referendadas em 1995. A participação das autarquias locais, 2 317 cidadãos e instituições públicas e privadas, para além de inúmeros arquitectos, garantem a representatividade e qualidade do estudo. Mais do que o diagnóstico efectuado, importam as propostas nos domínios do interesse público, dos profissionais e da prática, génese de uma política pública de arquitectura, com objectivos, políticas e acções enumeradas e apoiadas por um programa de actuação.

A comissão de redacção do Estatuto, aprovada no VI Congresso da AAP, é composta por Alcino Soutinho, Duarte Nuno Simões, João Santos Jorge, José Silva Carvalho, Luís Vassalo Rosa, Manuel Correia Fernandes, Manuel Moreira, Pedro Brandão, Vasco Morais Soares, Vasco Massapina e Waldemar Sá. Manuel Moreira é contrário à alteração da designação de Associação para Ordem.

Finalmente, entre 1996 e 1998, triénio da preparação e inauguração da Exposição Internacional de Lisboa de 1998, com grande protagonismo para os arquitectos — condecorados pela Presidência da República — e para a arquitectura do recinto e sua envolvente, remata-se esta estratégia convergente e crescente com a criação e aprovação da Ordem dos Arquitectos. Uma lista única concorrente, com um programa nacional e regional Norte e Sul coeso, é o reflexo da concertação e união indispensáveis. Uma observação e fiscalização atentas originam quatro listas concorrentes ao Conselho de Delegados. Inaugura-se a Ponte Vasco da Gama e José Saramago recebe o Prémio Nobel da Literatura. →

Os mandatos decorridos entre 1993 e 1998 são de promoção da arquitectura e dignificação dos arquitectos. Verifica-se uma maior e melhor participação dos membros e dos eleitos. Firma-se a competência e a independência na profissão com a responsabilização e credibilização do arquitecto. A Ordem dos Arquitectos surge então como parceiro governamental e social importante, chegando a participar e colaborar como observador na Comissão Permanente de Concertação Social, juntamente com as confederações patronais e sindicais, do Conselho Económico e Social, procurando informar e sustentar estratégias consistentes e convergentes entre os agentes políticos e económicos presentes e, simultaneamente, agir como garantia social e cultural perante os cidadãos. Concilia-se a responsabilidade colectiva perante a sociedade, o Governo e a Europa com a responsabilidade individual e profissional.

A narrativa iniciada no VII Congresso da AAP e oficializada no Decreto-Lei n.º 176/98, publicado no Diário da República de 3 de Julho, aproxima os arquitectos do poder, enquanto parceiros presentes e constantes no debate de políticas públicas e técnicas importantes. O Estado delega agora poderes na Ordem dos Arquitectos na regulamentação do exercício da profissão, especificamente nos domínios do acesso à profissão, da formação, da deontologia e da disciplina. Delega, ainda, atribuições na defesa estrita dos arquitectos mas, também, principalmente, na defesa do interesse público da arquitectura. A criação e redacção dos regulamentos procedentes do novo estatuto geram uma reflexão e ponderação úteis para a clarificação dos actos próprios do arquitecto e a definição do interesse público da arquitectura.

A imposição de um modelo de estatuto pelo Estado destinado a todas as ordens emergentes, incompatível com as especificidades do exercício da arquitectura, é uma contrariedade que importa contestar e desenhar. A definição e limitação clara dos actos próprios da profissão são conquistas importantes reclamadas e negociadas dois anos e meio com diversos interlocutores, nem sempre esclarecidos sobre o papel do arquitecto e da arquitectura na sociedade. Das negociações com o poder decorridas nesse período, registam-se as dificuldades em convencer e esclarecer disciplinar e profissionalmente quais são os actos próprios da profissão. A sucessão de versões do estatuto é reveladora dessa dificuldade, mais cultural que negocial, de esclarecimento e entendimento do que é a arquitectura e o arquitecto.

A Norte, o Conselho Directivo Regional centra-se em acções internas e externas. São implementadas as assessorias, agendadas no mandato anterior mas adiadas pela conclusão e inauguração da sua sede em 1993, de apoio à prática profissional nos universos da legislação, admissão, formação e actualização técnica. A deontologia exige então meios alocados e habilitados acrescidos, denotando a maior preocupação e participação de todos, com inúmeros processos disciplinares accionados quer por entidades quer por profissionais. 

A partir da apresentação do Livro Branco da Arquitectura e do Ambiente Urbano em Portugal no Porto, espoletam-se diversas exposições, conferências e debates de aproximação, criação e auscultação da opinião pública. Paralelamente, lançam-se pontes institucionais e instrumentais úteis às entidades regionais e locais, nomeadamente às comissões de coordenação e às câmaras municipais, com deslocações e reuniões externas. A participação e exposição pública é evidente e ensaia-se, pela primeira vez, uma assessoria de comunicação social para a maior e melhor visibilidade da Ordem dos Arquitectos, que passa a mostrar-se nos jornais e televisões e a integrar-se em inúmeros júris. É ouvida ainda em conselhos e comissões de decisão local e regional importantes. Assinala-se uma acção e gestão económica sustentável resultante da decisão de promoção de iniciativas exclusivamente autofinanciadas ou patrocinadas, e ainda da recuperação e liquidação das quotas atrasadas. 

A alteração negociada e aprovada exige convencionar, com os membros e as instituições da sociedade, a consumação dos novos poderes e a assunção das novas responsabilidades. O acordo de vontades origina a realização de uma Convenção Nacional realizada a 2 e 3 de Outubro de 1998, em Lisboa. O aumento do número de eleitos nos órgãos directivos e consultivos estatutários — mais cerca de 55% — exige a gestão e criação de consensos em fóruns obrigatoriamente mais participados e dialogados. O entusiasmo perante as novas oportunidades e possibilidades é evidente. Cumprem-se, assim, finalmente, as aspirações e ambições de Arnaldo Adães Bermudes, dirigente da Sociedade dos Architectos Portuguezes, com o reconhecimento, em estatuto, de um exercício profissional oficial e legalmente protegido através de uma Ordem dos Arquitectos.

 

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Hoje, à perspectiva cada vez mais economicista e consumista associada à concepção e à construção, importa legitimar e associar valores perenes onde o Habitar, no seu sentido mais abrangente e estruturante do espaço, é uma prioridade. 

Os arquitectos, ainda herméticos, distantes, continuam sem convencer nem vencer plenamente esta legitimação perante a sociedade. Ao espelho, concentrados em egos maiores ou menores, perseguem uma exposição individual e autoral, privilegiando a afirmação ou excepção do objecto arquitectónico e secundarizando a sua missão social e cultural, ao serviço dos cidadãos, com responsabilidade, fiabilidade e qualidade. Simultaneamente, mais isolados ou divididos que unidos, acabam incapazes de convergir para estratégias de implantação e credibilização da profissão. A contenda de aproximação e integração na sociedade e a da estimação e valorização da profissão estão, por isso, por cumprir.

Centrados nos cidadãos, traduzindo vontades e superando necessidades, os arquitectos devem actuar tomando em consideração todas as condicionantes formais e materiais, mas também económicas e técnicas de qualidade e durabilidade, de conservação e manutenção patrimonial, legitimando e consagrando o papel do arquitecto e a importância da arquitectura. Em momentos de urgência ou emergência territorial, por exemplo, não evidenciam a mais-valia dos seus instrumentos profissionais, intelectuais e culturais, para a superação e prevenção de catástrofes. Externamente, perante a administração central e o cidadão individual, reduz-se a importância do exercício da profissão. Internamente perde-se a representatividade e unidade, sem expressão e afirmação pública. Da desconsideração à desregulação do mercado, nos honorários e nos direitos eticamente desvalorizados e degradados, caminha-se para um isolamento e esgotamento da profissão, enganadoramente compensada por reconhecimentos pontuais e individuais ilusórios. 

Hoje, os arquitectos procuram exercícios da profissão diversificados, desenquadrados e desregulados por uma Ordem dos Arquitectos prospectivamente incapaz, impotente e aparentemente menos conhecedora e agregadora dos arquitectos. Lenta, incapaz de acompanhar e regular, corre atrasada atrás das oportunidades e dificuldades. A obrigatoriedade de inscrição não dispensa os eleitos da missão e regulação exigíveis. 

Importa procurar e interessar a sociedade, iniciando nas escolas e percorrendo todos os graus de ensino, sensibilizar e acompanhar organizações cívicas e públicas, convencer, promover a arquitectura através dos diversos meios de comunicação e intervenção social e doutrinar e propagar os exemplos qualificados e referenciados colectivamente. Importa ainda a credenciação, qualificação e responsabilização ética dos arquitectos, exigente, valorizando e dignificando, durante e no final da vida, o exercício da profissão, garantindo direitos e deveres. Importa, finalmente, monitorizar e informar o quadro legislativo regulamentar e enquadrador da profissão, especificamente a produção normativa relativa ao planeamento e ordenamento do território e da arquitectura, na programação e promoção de obras públicas, através de concursos públicos exigentes mas transparentes. 

Em tempo de adversidade para a arquitectura e para os arquitectos, sujeitos a estratégias económicas e políticas, mais do que sociais ou culturais, o legado é de uma enorme responsabilidade e propriedade colectiva, com uma coesão e participação empenhada e actualizada permanente. 

O interesse público é mais importante que o interesse próprio. A arquitectura é para os arquitectos e pelos arquitectos. Mas é, também, para os cidadãos e pelos cidadãos. ◊

 

 


 

 

Nota
Intencionalmente não seleccionei ou mencionei nomes mas, durante os mandatos dos triénios 1993-95 e 1996-98, conheci os meus heróis associativos e corporativos, pela elevada e qualificada participação e dedicação à profissão: José Gomes Fernandes, Pedro Brandão, Vasco Morais Soares, Olga Quintanilha, Vasco Massapina, Jorge Farelo Pinto, Dulce Marques de Almeida, Jorge da Costa, João Pedro Guimarães e Waldemar Sá. Ensinaram-me muito. Obrigado!