CRÓNICA

Maldita Arquitectura, uma leitura à distância

Por Nuno André Patrício

Arquitecto, um dos dinamizadores da Maldita Arquitectura — Lisboa

 

Lançamento da subscrição da Declaração Maldita, 2011
© Gui Castro Felga
Lançamento da subscrição da Declaração Maldita, 2011
© Gui Castro Felga

 

 

Entre as lembranças do pouco tempo que fui arquitecto em Portugal, entre 2009 e 2011, guardo com orgulho a oportunidade de ter estado ao lado de muita gente numa coisa que a malta do Porto chamou de Maldita Arquitectura, a que nós, em Lisboa, pedimos o favor de nos juntar. No Brasil desde então, darei aqui o testemunho do que entendo ter sido a Maldita, do descolamento da Ordem dos Arquitectos (OA) face à realidade e mais uns pitacos 1 deste lado do Atlântico. Quem sabe quanta coisa continua actual.

A Maldita Arquitectura foi fruto de uma série de encontros entre arquitectos sem qualquer tipo de hierarquia, estatutos ou um mínimo de formalização. A Maldita Arquitectura assumia-se como “plataforma de discussão e reflexão sobre a prática profissional da Arquitectura em Portugal, independente de quaisquer movimentos, partidos ou candidaturas aos órgãos da OA. Com núcleos no Porto e em Lisboa, reúne em assembleias públicas abertas e divulga o seu processo de trabalho e respectivas conclusões online em www.malditaarquitectura.blogspot.com”.

Não vale a pena correr para o link, era precário como nós. Dimensionar a Maldita também é precário; presencialmente superámos certamente a centena mas não arriscaria muito mais que isso. Online, via Facebook, nas caixas de comentário do blog e via e-mail chegou-nos muita coisa. Sobretudo denúncias, desabafos, cansaço e raiva que escapava entre dentes. Após muitas reuniões em que se acolhiam e se recolhiam histórias de exploração, fizemos duas assembleias para traduzir as discussões em papel. Foi daqui que saiu a Declaração Maldita, esta sim ainda pode ser consultada. É googlar, é de 2010, mas são 30 páginas que valem a pena 2 .

O que nos juntou — a precariedade — foi também o que nos afastou. Muitos saíram do país e muitos não tiveram fôlego para continuar. Não era certo o que poderia ter sido se continuasse. De fora, havia quem apostasse que seríamos uma lista à OA, coisa que nunca foi o cerne das discussões e quando a hipótese se colocou rapidamente foi descartada. Poderíamos ter continuado como plataforma de denúncia canalizando as abusivas propostas de trabalho e casos de violação das leis laborais sem resposta institucional. Chegámos a denunciar um concurso cujo prémio era um estágio não remunerado. No entanto, e isso foi bastante discutido, o nosso papel nestes casos era limitado e perigoso. 

O caso do concurso mostrou-nos o perigo dos linchamentos digitais que em 2010 já eram uma realidade. Neste caso, o principal alvo acabou por ser o arquitecto que entrou para o júri desconhecendo o vergonhoso prémio quando quem deveria ter sido responsabilizado seria a entidade promotora. Por outro lado, a natureza precária das situações colocava quem denunciava numa situação de enorme fragilidade. Não raro, a denúncia era feita em tom de desabafo seguida de um pedido de anonimato com receio de represálias. Um caminho discutido foi a possibilidade e a urgência da constituição de um Sindicato de Arquitectos. Os nossos vizinhos espanhóis tinham avançado com o Sindicato em 2008 e chegámos a trocar algumas informações. Era certamente um caminho óbvio atendendo às nossas discussões. Mas aqui esbarrámos como uma construção de muitos séculos e a sua desconstrução seria um dos principais desafios da Maldita.

Pegando uma carona 3 dos colegas da Arquitetura Nova 4 aqui no Brasil, estes identificaram em Brunelleschi o momento histórico em que a técnica de projecto arquitectónico emerge e se separa da produção do objecto material em si. Com a intenção de se valorizar em relação ao trabalho manual, reivindica para si o controlo e dominação da produção, dos artesãos e de toda a cadeia de construção. É a ilusão do controle através da autonomia de projecto. O processo de distanciamento de quem constrói, de quem mora e de quem passa foi sendo alimentado pelo fetiche do projecto construindo assim o mito do profissional liberal. Esta ilusão do indivíduo sem patrões era já a máscara 5 que Brunelleschi usava enquanto beijava a mão dos Medici. 

Passaram-se séculos e aprofundou-se um sistema de exploração mas a nossa máscara insistia em descolar-nos do mundo da gente. Foi este descolamento que nos fez bater palmas a Brasília assobiando para o lado para os corpos de pedreiros mortos que ainda hoje jazem no interior das colunas de Niemeyer. Como dizíamos na Declaração Maldita, durante a maioria do século XX “a profissão de arquitectura em Portugal foi desenvolvida por um número reduzido de arquitectos que, oriundos na sua maioria de classes sociais favorecidas, respondiam perante um mercado restrito de clientes e de encomendas”. Vimos o século passar e continuamos a achar que a maioria de nós tem clientes e não patrões. Em renegação freudiana (vulgo avestruz com a cabeça na areia) o pensamento dominante desta elite não quis tomar consciência que somos parte do sistema. 

Na Maldita fomos chegando à conclusão do óbvio, nos últimos 30 anos as transformações da profissão, à semelhança das restantes profissões liberais, foram revelando a face em carne viva por detrás da máscara. A crescente liberalização e desregulação da profissão e a bem vinda democratização do acesso ao ensino superior revelou um sistema de exploração de arquitectos por arquitectos. A profissão, na transição do século XX e para o século XXI, caracterizou-se pela aceleração de uma divisão de classe entre um pequeno número de arquitectos-estrela, o surgimento de grandes empresas de arquitectura de resposta ao mercado e, face da mesma moeda, a formação de um exército de precariado. 

Face a estas transformações em que ponto estava a OA em 2010? Esta foi sendo transformada na aparência ao longo do século XX e por lá ficou. Entendemos o atraso da OA e o pensamento que representa, quando a sua grande causa, o que mobiliza a elite em torno da instituição é o fetiche corporativo de assinar projecto. A sua grande causa ainda se vincula à pretensão de Brunelleschi de se distanciar de quem produz, de quem habita, revindicando a sua autonomia enquanto beijam a mão dos Medici da ocasião. 

É claro que levar este discurso até às últimas consequências levaria à implosão da própria OA. Era isto que a Maldita defendia? Não. É claro que reconhecíamos a importância de profissionais qualificados para a qualidade disciplinar da arquitectura no sentido do potencial transformador que a arquitectura pode e deve ter no espaço construído para uma sociedade que desejamos melhor, mais justa, menos desigual, e por aí fora. Mas a questão é se a exclusividade de projecto dos arquitectos é garantia de qualidade arquitectónica. No passado quantas das nossas periferias desqualificadas tiveram a assinatura de um arquitecto? 

Por outro lado, na Maldita fomos percebendo que a desregulação da profissão e a sua proletarização precarizada tinha reais consequências na qualidade do trabalho e portanto no ambiente construído. Ora, para muita gente, se o estágio, a renda da casa e o jantar dependem do envelope com salário mínimo lá dentro, dobramos as folhas, a garganta e engolimos o sapo. Quantos arquitectos, pela fragilidade da regulação, dão o desconto do desconto do desconto e assinam projectos nos quais as soluções propostas atendem mais ao mercado do que à qualidade do nosso ambiente construído? No limite, seria legítima a dúvida se são hoje actos próprios da profissão projectos para Airbnb que expulsam gente das suas casas?

A crise de 2008 fez sair do armário muitas crises que estavam debaixo do tapete e foi essa a génese da Maldita. Quando o Presidente da OA em 2010, João Belo Rodeia, falou em crise a nossa resposta 6 foi: qual crise? É que para a maioria dos profissionais crise era um modo de vida. E agora a crise acabou? O que mudou? Especularia que talvez tenha mudado a visão que a sociedade portuguesa tem do estereótipo do arquitecto. Será que deixámos de ter a patine da glamorosa vedeta para sermos vistos como mais uns precários de recibo verde que tanto trabalha na Remax como na Ryanair? Se assim for, só nos aproxima da sociedade, dos problemas reais e isso tem um enorme potencial de darmos resposta aos problemas que nos competem em conjunto com as pessoas para quem este sistema não chega. 

E na Maldita conseguimos alguma coisa? Bem, em 2010 não havia obrigatoriedade de remuneração de estágios, algo que só veio a acontecer em Junho de 2011. Uma pequena mas importante vitória. A Maldita propunha ainda um Regulamento do Trabalho por Conta de Outrem em Arquitectura, com a fixação de uma tabela mínima de honorários e consequentemente um salário mínimo em arquitectura. Para a sua efetivação propúnhamos que a OA estabelecesse protocolos com a Autoridade para as Condições do Trabalho que definisse as competências de fiscalização e sanções para o seu não cumprimento. 

Qual foi a resposta da OA desde então? Admito que possa estar desactualizado, mas aqui de longe só me dei conta da alteração de estatutos de 2015 com um regulamento para formalizar as empresas de arquitectura. Entre o arquitecto assalariado e o arquitecto patrão a prioridade foi para... Mais recentemente notei a OA bem activa com cartas abertas a partidos políticos. Qual o assunto? Recordados do amigo Brunelleschi? Ainda a sua luta pela “... prática da Arquitectura feita exclusivamente por arquitectos”. Enfim...

Entretanto, há uns Malditos e Foras da Ordem 7 espalhados por aí. Claramente, a OA está longe das nossas prioridades, assim como das de muitos arquitectos que não reconhecem nesta nem o papel regulador da profissão, nem garantidor da qualidade do espaço construído. Por isso, o desinteresse pela instituição, deixando-a isolada no século XV, mudando de quando em vez de máscara, ora mais verde, ora mais social, ora mais tecnológica, ora mais empreendedeira consoante a banda que toca no momento. ◊