OPINIÃO
Território e edificado
De abandonado a queimado
(um balanço de 2017)
Arquitecto
No tradicional discurso de Ano Novo e em jeito de balanço do último ano, o Presidente da República referia que “se o ano de 2017 tivesse terminado a 16 de Junho, poderíamos falar de uma experiência singular só de vitórias”. Pela precisão da data, é fácil perceber que Marcelo Rebelo de Sousa se referia aos incêndios que assolaram durante várias semanas o nosso país. Se, por um lado, nos podemos vangloriar com tantas “vitórias” nas mais variadas frentes — quer ao nível da economia e das finanças, quer ao nível do desporto e da cultura, entre outras —, por outro lado assistimos, incapazes, à luta e desespero de tantas e tantas pessoas contra este flagelo que foram os incêndios.
Habituámo-nos a lidar com a realidade dos incêndios todos os anos. A comunicação social e as redes sociais tornaram-se meio de divulgação de imagens que, parecendo de arquivo, são actuais e que, infelizmente, se repetem ano após ano, principalmente na “fase Charlie” — aquela que é a fase mais crítica dos incêndios e que normalmente se estende do dia 1 de Julho até ao dia 30 de Setembro.
Este ano poderia ter sido “apenas” mais um. Provavelmente teriam ardido alguns milhares de hectares. Provavelmente teria havido algumas centenas de ocorrências. Provavelmente teriam perdido a sua habitação algumas dezenas de pessoas. E provavelmente, no pior dos cenários, teria havido alguma vítima mortal, que iria integrar o relatório final de mais um ano “normal” de incêndios.
Mas o ano de 2017 desafiou todos os valores que poderiam estar “dentro da média” dos últimos anos. A área ardida atingiu aproximadamente os 500.000 hectares (o que equivale a 500 vezes a área do Parque Florestal de Monsanto, em Lisboa) e houve 112 vítimas mortais, tornando-se no pior ano de sempre, desde que há registos. Para a história, e na memória de todos, ficarão sempre os dias 17 de Junho e 15 de Outubro.
A 17 de Junho deflagrou o incêndio de Pedrógão Grande, que depois se propagou aos concelhos vizinhos e provocou, pelo menos, 64 vítimas mortais e mais de 250 feridos. As imagens dos automóveis calcinados espalhados pela Estrada Nacional 236, onde perderam a vida 47 pessoas quando tentavam fugir ao fogo, nunca serão esquecidas. Estima-se que o montante total dos prejuízos ascenda a cerca de 500 milhões de euros. A devastação atingiu aproximadamente 500 casas, sendo que mais de 150 eram de primeira habitação, e afectou cerca de 50 empresas e centenas de postos de trabalho afectos às mesmas.
A 15 de Outubro, já depois da chamada época crítica de incêndios (fase Charlie), registou-se o pior dia do ano em número de fogos. Foram mais de 500 ocorrências, tendo as chamas atingido particularmente 27 concelhos da região Centro, sobretudo nos distritos de Viseu, Guarda, Castelo Branco, Aveiro e Leiria. Na madrugada de 16 de Outubro, perderam a vida 45 pessoas e cerca de 70 ficaram feridas devido às centenas de incêndios que destruíram total ou parcialmente cerca de 800 habitações permanentes e quase 500 empresas. Está ainda por apurar o valor global dos prejuízos, sabendo que nunca será possível contabilizar a perda de 80% do Pinhal Real (Leiria), bem como a quase totalidade da Mata Nacional da Margaraça (Arganil), entre tantas outras áreas classificadas e protegidas.
Sendo estes os fogos mais graves e devastadores do país, durante o Verão ocorreram muitos outros de grande dimensão, sobretudo na região Centro.
É certo que um factor que pode explicar a proporção dantesca dos incêndios do último ano é a adversidade das condições climatéricas (seca extrema, altas temperaturas, vento forte), mas talvez não seja menos certo que outros factores têm contribuído para que nos últimos anos os fogos tenham atingido cada vez maior dimensão. A desertificação de certos territórios, em particular do interior do país — cujas causas principais se podem apontar ao despovoamento, envelhecimento da população, êxodo rural, falta de actividades económicas e emigração (interna e externa) — têm contribuído fortemente para que a paisagem do país se tenha modificado nas últimas décadas, dando lugar a um vasto território não tratado onde, cada vez mais, a floresta está desordenada, os campos agrícolas estão ao abandono e se assiste ao monocultivo intensivo de espécies para uso industrial, em especial de eucalipto, em detrimento de espécies autóctones (carvalho roble, negral, sobreiro, vidoeiro, castanheiro, figueira, aveleira, alfarrobeira, azereiro, loureiro, azevinho, medronheiro, pereira-brava, oliveira, amoreira, entre outras).
Um exemplo desta realidade é a área ardida no incêndio que deflagrou a 13 de Agosto na Serra da Gardunha e que consumiu mais de 7.300 hectares dos concelhos de Castelo Branco e Fundão, sendo que do total de 5.058 hectares ardidos no concelho do Fundão, cerca de 60% eram classificados como área protegida.
Uma das freguesias mais fustigadas por este incêndio foi Louriçal do Campo (e a sua anexa São Fiel). Analisando os dados estatísticos relativos à população, e tendo como base os censos realizados pelo INE (Instituto Nacional de Estatística), constata-se uma mais que evidente desertificação deste território. Se em 1950 a população era de 2.286 habitantes, em 2011 apenas 636 pessoas viviam nesta freguesia. E se em 2001 havia 103 indivíduos com idade até 14 anos, já em 2011 esse número caía para 55, o que deixa antever um mais que certo envelhecimento da população. As causas para este decréscimo de habitantes devem-se, em parte, à emigração, tanto interna como externa, mas, principalmente, à baixa natalidade que se regista actualmente. O diagnóstico referido anteriormente em relação à situação actual do território é bastante evidente nesta localidade. Certamente, alguns destes factores contribuíram definitivamente para os avultados danos causados pelo enorme incêndio que deflagrou este Verão. No rescaldo deste fogo ouvimos falar em várias centenas de hectares ardidos na encosta da Serra da Gardunha (de floresta e mato).
Porém, há outra realidade que não foi devidamente contabilizada e caracterizada, o que, infelizmente, é recorrente nas avaliações por parte das entidades responsáveis, bem como da comunicação social. Refiro-me às diversas edificações que com frequência são denominadas de “casas ardidas” e que apenas têm uma maior cobertura mediática, um tanto sensacionalista, quando são construções de primeira habitação. No caso particular de Louriçal do Campo, em concreto na sua anexa São Fiel, houve uma “casa” que ardeu que era bem mais do que isso. Trata-se de um conjunto de imóveis que, para além da sua importância do ponto de vista arquitectónico, também tem um elevado interesse histórico e imaterial: o complexo do antigo Colégio de São Fiel.
Situado no sopé da Serra da Gardunha, o Colégio de São Fiel foi criado pelo padre franciscano Frei Agostinho da Anunciação, em 1852, com o objectivo de acolher crianças órfãs e pobres da região. A partir de 1863, passou a estar sob a alçada dos Jesuítas, funcionando como instituição de ensino até 1910, data em que foi encerrado e expropriado, na onda anticlerical da primeira República, que culminou com a expulsão dos Jesuítas de Portugal. As suas edificações, articuladas em diversas alas de planta rectangular, são constituídas por dois ou três pisos, sendo que uma das suas esquinas é rematada por um torreão. A igreja situava-se no topo norte e o claustro, embora adulterado, é de inspiração franciscana. No interior deste imóvel, testemunho da sua função como estabelecimento de ensino básico e secundário, havia diversos equipamentos como um laboratório de Química, um gabinete de Física, um observatório meteorológico e um museu zoológico. Para além destas valências, o antigo Colégio era possuidor de um valioso herbário que, em 1910, era constituído por 5.121 espécies. Os corredores do antigo Colégio de São Fiel foram percorridos por alguns alunos ilustres, dos quais se destaca António Egas Moniz, que aí concluiu os seus estudos secundários e que em 1949 recebeu o prémio Nobel de Medicina. Também neste colégio foi fundada e editada a Brotéria – Revista de Sciencias Naturaes, no longínquo ano de 1902.
Após o seu encerramento, as instalações voltaram a entrar em funcionamento de forma intermitente enquanto reformatório, até que em 2003 foram abandonadas definitivamente, ficando sem qualquer tipo de utilização. Em 2016, e na derradeira tentativa de reabilitar o antigo colégio jesuíta, foi integrado no programa Revive, lançado pelos ministérios das Finanças, Cultura e Economia, que previa a concessão a privados de imóveis históricos degradados para que fossem recuperados, tornando-os aptos para afectação a uma actividade económica com finalidade turística. Desconhece-se até à data a existência de qualquer interessado no complexo.
O antigo Colégio de São Fiel é o exemplo mais destacado da região, mas não se trata de um caso isolado. A poucas centenas de metros deste imóvel existe outro edifício que, infelizmente, teve o mesmo destino e ficou, também, praticamente destruído. Trata-se da antiga Colónia de Férias de Média Altitude da Serra da Gardunha, um edifício construído na década de 1950 que, completamente cercada por vegetação, se tornou presa fácil para a voracidade das chamas que desciam encosta abaixo.
E assim, em meados de Agosto de 2017, o antigo Colégio e a Colónia foram consumidos pelas chamas. Seguramente devido ao abandono a que estavam votados pelo Estado há anos. Com toda a certeza, a inexistência de faixas de protecção contra incêndios, com 50m, e que deveriam rodear as edificações foi determinante. Não deixa de ser tristemente irónico que quem tanto tem legislado e fiscalizado sobre este assunto sofra tão elevado prejuízo por falta de cumprimento de legislação que aprovou. Perderam-se dois imóveis de inegável valor arquitectónico e histórico, que ficaram praticamente reduzidos a cinzas. Dois imóveis que podíamos descrever como abandonados e que actualmente apenas podemos referir como queimados, destruídos e dificilmente recuperáveis.
É imperativo questionar-nos sobre quantos imóveis, quer exemplares de arquitectura popular ou vernacular, quer exemplares mais monumentais, arderam nas últimas décadas no nosso país. Provavelmente existem vários interlocutores que poderiam esclarecer-nos em relação a esta situação, quer da administração central, quer da administração local. A Direcção-Geral do Tesouro e Finanças (que tem como missão “a gestão do património imobiliário do Estado”), a Direcção Geral do Património Cultural (que está mandatada para “assegurar a gestão, salvaguarda, valorização, conservação e restauro dos bens que integrem o património cultural imóvel, móvel e imaterial do País”), as diversas direcções regionais de Cultura, bem como as autarquias locais ou até mesmo as CIM (Comunidades Intermunicipais). Todas estas entidades têm a cargo o cadastro e inventariação dos bens patrimoniais do nosso país, mas, provavelmente, assumem pouca ou praticamente nenhuma acção no que diz respeito à implementação de certas medidas preventivas que evitariam perdas incalculáveis, como as que se registaram com a destruição destes imóveis.
Será necessário colocar a pergunta e ouvir a resposta que, antevemos, será ainda mais difícil de aceitar: que património arquitectónico tem ardido pelo meio dos incêndios florestais? ◊