REPORTAGEM
Poder Arquitectura
Exposição inaugural da Casa da Arquitectura
Arquitecta e Mediadora Cultural
Poder Arquitectura é a exposição que inaugura a Casa da Arquitectura, em Matosinhos. Com curadoria de Jorge Carvalho, Pedro Bandeira e Ricardo Carvalho, o tema da exposição insere-se na génese do perfil da Casa da Arquitectura, procurando a relação entre arquitectura e a sociedade. A questão do poder, que é central na arquitectura e na organização da sociedade contemporânea, está bem presente no próprio projecto da Casa da Arquitectura, enquanto símbolo de poder autárquico e enquanto reflexo do poder que o Porto, os seus mestres e a sua escola ditam à arquitectura do país. É, portanto, uma exposição que declara também assim um poder institucional.
Como se traduz o poder da arquitectura na sociedade? Os edifícios despertam sonhos, desejos, seduzem a população, mas também são muitas vezes objectos de discórdia e contestação. Entre as questões do poder transpostas para a sociedade e as que se sentem no exercício da própria disciplina há leituras que esta exposição ambiciona trazer, linhas intermédias muitas vezes não visíveis e que podem aqui ser questionadas. Ricardo Carvalho manifestou na inauguração que “a tese é perguntar e não responder”. E importa perguntar que poder fundamental tem a arquitectura na construção das cidades, dos territórios, das sociedades. É um poder político? Os grandes projectos públicos não estão sempre ligados ao poder político? Não existe por parte de muitos arquitectos a necessidade de se associarem aos políticos que em determinado momento representam o poder? Este poder não é declarado pelos curadores da exposição por assumirem que ele está presente em todos os poderes.
Tentando concretizar as questões de poder na arquitectura, a exposição revela um conjunto de projectos balizados temporalmente entre os finais dos anos 1990 e a actualidade, mostrando obras ainda em construção, como o Museu de Lausanne dos arquitectos Aires Mateus. As questões do poder, muitas vezes reveladas também em momentos que antecedem à própria construção arquitectónica, são apresentadas em vários campos da sociedade, tornando-os difusos entre si, mas identificando: Poder Colectivo, Poder Regulador, Poder Tecnológico, Poder Económico, Poder Doméstico, Poder Cultural, Poder Mediático e Poder Ritual. Declaradamente a ideia de contrapoder é deixada de fora da exposição e quem assiste sente essa falta e contrariedade, sente a ausência de resposta, do símbolo da arquitectura ser também objecto de revolta. De qualquer modo, o catálogo da exposição não deixa de enfatizar esta omissão, quando os autores afirmam que “Poder e contrapoder coexistem na arquitectura tal como na sociedade. O projecto de arquitectura é a síntese da relação entre os micropoderes que se fazem representar nas diferentes vertentes da encomenda e nos seus diferentes actores e meios”. Se esta dimensão de contracultura merecia ser analisada nesta exposição, admitimos que sim, mas percebe-se que há caminhos que não se querem explorar ou alvos que não se querem atingir e nesse mesmo texto acrescentam: “O grande poder da arquitectura é sonhar o inaceitável compromisso. Depois há as excepções, mas essa é uma outra história…”
A selecção de projectos é apresentada de forma transversal em termos geracionais e de notoriedade dos arquitectos. Os curadores assumem que escolheram projectos e não autores, procurando diversidade de escalas, desde grandes pólos a intervenções temporárias, e diversidade geográfica, apresentando obras dos cinco continentes. Através de uma multiplicidade de meios e conteúdos, esta escolha procurou dar resposta aos oito poderes identificados, permitindo permeabilidade entre eles: “Um poder não é em si negativo ou positivo. Por vezes os poderes anulam-se, por vezes criam sinergias, por vezes dão origens a contrapoderes”, lê-se no texto de apresentação do catálogo da exposição.
ed. Lars Müller, Casa da Arquitectura
Aos projectos expostos e ao olhar dos curadores é acrescentada a reflexão de vários críticos convidados no catálogo. Este objecto, editado pela Lars Müller, para além de cartografar as escolhas em cada um dos núcleos traz-nos o texto de Guilherme Wisnik que nos fala de Poder Colectivo, através de casos de estudo nas cidades brasileiras de São Paulo e Natal; João Belo Rodeia a direccionar as questões do Poder Regulador, não para as leis e regulamentos mas para a directriz primordial da acção em arquitectura de regular a vida do Homem e as definições territoriais; André Tavares e Ivo Poças Martins a analisar o Poder Tecnológico com o subtítulo A Arquitectura da Redundância, onde paredes não de betão mas digitais e espaços não físicos mas virtuais redefinem a ideia de uma construção mutante e com novos paradigmas; Alexandra Vougia que associa a expressão Contra o Cinismo ao poder económico, focando a interferência que uma máquina formada por um poder político e um conjunto de arquitectos e críticos tem na construção da ideia de cidade capitalista desde o pós-moderno até à contemporaneidade; Andreas Ruby, Ilka Ruby e Yuma Shinohara apresentam Uma Nova Agenda para o poder doméstico, onde as redefinições demográficas do mundo necessitam de novas soluções para o habitar; o poder da cultura na cultura do poder é um olhar ironizado por Nuno Grande sobre os sistemas culturais que acabam por criar contraculturas e trazer a ideia de contrapoder omitido na exposição; Moisés Puente fala do poder mediático como uma Novidade: em relato desapaixonado, de como uma nova cultura visual se torna subversiva no interesse pela arquitecura; e Joaquim Moreno que escreve sobre o Poder Ritual com o titulo Agora reclino-me para comer, metaforizando os rituais espirituais com os cultos à mesa, num questionar das convivências culturais a que assistimos, partilhas, espaços públicos, lugares onde a arquitectura impõe a tolerância do outro.
Há vários layers de análise de cada projecto. Desde maquetes e imagens, fornecidas pelos ateliers, a desenhos criados pela exposição para nos conduzirem a uma leitura específica dentro do projecto associada ao poder que está a ser apresentado, a um atlas de imagens criado enquanto investigação especulativa e crítica para a exposição, aqui, um ponto de vista curatorial, onde os autores dos projectos não foram intervenientes.
O Poder Colectivo apresenta projectos que tratam da arquitectura ao serviço de uma comunidade, revelando a ideia de colectivo para além do Homem, um colectivo também ambiental. Como exemplo os autores enfatizam o projecto de Warwick Junction, em Durban, na África do Sul, onde um viaduto foi gradualmente tomado pelo mercado e a acção de construção foi o estabelecer de uma ponte, uma ligação estratégica entre comunidades periféricas e excluídas a áreas de conforto. Aqui, uma infra-estrutura é apresentada não como um elemento de transição, mas como um momento, a ligação como um espaço onde algo acontece e como, obviamente, palco de acção política.
Poder Regulador é a designação de uma temática que se torna muitas vezes fracturante: lei, ordem, segurança, limites que condicionam. Aqui revelam-se projectos entendidos enquanto portas. A “porta” que limita e condiciona espaço e que usamos para determinar perímetros de segurança aqui é visível numa dimensão de fronteira: são portas aéreas, terrestres ou marítimas, como é exemplo o recentemente inaugurado Terminal de Cruzeiros de Lisboa, de João Luís Carrilho da Graça. Num registo de projecto totalmente diferente, é apresentado o Banco Mundial de Sementes, um projecto provocador da autoria de Peter W. Søderman / Stasbyggonde, onde as questões do perigo nos são transpostas como ameaças a nós mesmos, através das acções que promovem as alterações climáticas.
Um exemplo de Poder Tecnológico permite trazer a questão da polissemia dos projectos: a intervenção de Eduardo Souto de Moura na Barragem do Tua onde o poder tecnológico está implícito na sua génese, viu serem tomadas decisões de projecto, também graças ao mediatismo do mesmo, associadas ao poder institucional e o poder económico do promotor.
O Poder Económico pode ser analisado, nesta exposição, na dicotomia entre dois projectos: De Rotterdam, do atelier OMA, na Holanda, onde é apresentado um gráfico com os passos dos projectos e o índice da Bolsa de Amesterdão, os ciclos económicos com as suas recessões e os modos como o projecto se vai reinventado e crescendo graças a essa realidade, e o projecto do mercado de peixe em Istambul, onde o atelier GAD Architecture intervém para atribuir condições de competitividade entre o mercado e as ofertas de um comércio mais poderoso na cidade.
No Poder Doméstico, os Star Apartments, em Los Angeles, de Michael Maltzan são exemplo de como a casa funciona como uma forma de poder para todos, pensados quase como uma residência colectiva, onde existem espaços privados e espaços comunitários, desenhando-se uma hierarquia modelar de espaços entre lojas, serviços como clínicas, hortas e cantinas e os próprios apartamentos. Este projecto parte de uma ONG que trabalha com os sem-abrigo da cidade, promovendo habitação permanente e serviços de cuidados a quem habitava as ruas da cidade.
Ao Poder Cultural fazem-se associações às questões da valorização do património e na exposição ressalta o trabalho da Landmark Trust que assegura a renovação de edifícios não salvaguardados pelas entidades governamentais, como é o caso de Astley Castle que sofreu um incêndio. Neste exemplo reconstrói-se a parcialidade do programa conciliando ruínas com a criação de espaços exteriores, numa poética de que invoca espaços de memória. Um exemplo bem diferente de intervenção em património é a Vitrina sobre a Casa do Comandante, um projecto de Oving Architekten, onde à casa de um comandante de um campo de concentração na Holanda foi adicionada uma campânula transparente, tornando-a numa memória negativa necessária de conservar, um objecto isolado mas onde podemos entrar.
Poder Mediático é o espaço da exposição onde se lê Press is More e se revelam projectos como o Amager Resource Center, uma central de valorização energética de resíduos onde o projecto de BIG foi um parâmetro decisivo no concurso. De forma ousada e muito mediatizada, numa zona muito visível do centro da cidade de Copenhaga, propõe-se uma cobertura associada ao lazer, uma pista de ski, num edifício construído para tratamento de resíduos. Neste núcleo, no atlas de imagens há espaço para os anúncios de imobiliárias se tornarem protagonistas; para olharmos para produto de arquitectura pensado para ser cenografia para televisão, como é exemplo o projecto do arquitecto João Mendes Ribeiro para o programa A Praça, na RTP; ou para se falar do livro Arquitectura em Público, de Pedro Gadanho, teorizando sobre como a arquitectura pode chegar a um público geral.
O Poder Ritual, que já foi protagonista dos grandes exemplos mundiais da história da arquitectura, hoje é associado à multiplicidade da ideia de fé, a culturas diferentes ou a desenhos feitos em função de códigos de liturgias diferentes, mas que acabam por trabalhar sobre semelhantes cânones, em cidades onde podem coexistir mesquitas, igrejas ou sinagogas, revelando a arquitectura como potenciador de proximidade de vários credos. Aqui temos exemplos como o polémico projecto de Inês Lobo, a Mesquita Baitul Mukarram, pensada para o bairro da Mouraria em Lisboa, local onde actualmente há maior diversidade cultural na cidade; o projecto de Álvaro Siza para a Igreja Anastasis, em França, actualmente em fase de construção; ou a referência ao Centro de Interpretação Judaico, desenhado para Trancoso por Gonçalo Byrne.
Nesta exposição optou-se por agrupar os projectos por temáticas, mas também existe a possibilidade de uma leitura de contaminação entre eles. Numa instalação desenhada para mapear relações entre os oito poderes enumerados, Bruno Figueiredo apresenta uma forma suspensa, com uma complexa geometria, possibilitando correspondências espaciais que seriam impossíveis de apresentar em plano.
E o espectador que poder tem na exposição? O poder de criar narrativas entre os diferentes poderes? O poder de subir a um torreão central e assumir o papel de orador como símbolo de um poder centralizado no indivíduo? O poder de ler em simultâneo a totalidade do espaço da nave expositiva?
O projecto expositivo assinado pelo atelier de Teresa Novais e Jorge Carvalho (aNC arquitectos) possibilita tudo isso, mas não deixa de ser um obstáculo entre espectador e documentos, entre a leitura dos objectos e a leitura das paredes recentemente reabilitadas por Guilherme Machado Vaz. Não deixa de também ser uma cenografia que ambiciona ter poder e protagonismo em relação ao edifício e até mesmo aos conteúdos expositivos, podendo porventura estar aqui a resposta à questão levantada por Nuno Sampaio, Director da Casa da Arquitectura, que durante a inauguração referiu, em tom de provocação, a possibilidade de faltar na exposição a referência ao “Poder do Arquitecto”. ◊