CRÍTICA
O fachadismo da reabilitação
Arquitecta e Editora
Ciente de que falamos de uma faca de dois gumes, mas sem outra alternativa à vista, defendamos a Fachada!!!
Uma palavra demasiado presente nas conversas dos últimos tempos tem sido “fachadismo”, ou seja, uma operação em que se opta unicamente pela manutenção da fachada existente de um edifício, demolindo todo o interior, que é integralmente reconstruído.
O tema cruza hoje inúmeros outros — o actual incremento do turismo, o envelhecimento e decadência dos centros urbanos, a necessidade urgente da sua reabilitação, a falta de políticas municipais face ao arrendamento e a actualização da lei das rendas, a rapidez exigida à resposta construtiva, etc. — e deles parece também depender a sua aplicação generalizada.
Não se pode dizer que esta prática seja uma invenção recente2, mas o seu uso e abuso nas recentes (e crescentes) intervenções ditas de reabilitação nos centros das principais cidades portuguesas — e o seu impacto negativo — tem trazido este fenómeno a foco.
Basta percorrer as principais artérias do centro de Lisboa, como a Avenida da Liberdade, ou, no Porto, a Avenida dos Aliados e a Rua de Sá da Bandeira, para vermos esses frágeis cenários sustentados por grandes estruturas metálicas. Nas vias posteriores, os exemplos multiplicam-se. As suas “reabilitações” serão muito provavelmente destinadas a acolher hotéis luxuosos, habitações para aluguer short-term ou para investimentos imobiliários de privados que assim justificam a obtenção de um golden visa, como anunciado na maioria dos painéis e anúncios de comercialização.
Foi nos últimos cinco/seis anos que se descobriu o potencial das grandes cidades portuguesas, pelo turismo e pelos investidores, começando pela capital. Os proprietários, que mantiveram anos e anos os seus prédios urbanos abandonados ou arrendados em condições precárias, sem pressa de os venderem porque o mercado não se mostrava favorável para este tipo de negócio, viram aqui a grande oportunidade. Muitas destas situações de negligência surgiram por esses proprietários serem herdeiros (não entrando em acordo entre si) para quem a propriedade representava um fardo, onde as rendas recebidas eram diminutas, não compensando investimentos em obras de capitais quase sempre elevados, e isto também porque as políticas camarárias raramente obrigavam a realizar essas reabilitações, a não ser que representassem riscos de colapso, afectando a segurança pública.
Este desinteresse na manutenção dos edifícios na cidade por parte das autoridades municipais e a sua desatenção perante degradações forçadas, por vezes em património classificado, através do destelhamento ou de vãos deixados abertos propositadamente — ou até demolições ilegais3 —, com o fim de acelerar o processo de degradação, tem atingido níveis de irreversibilidade na reabilitação de diversas estruturas interiores4.
Lisboa, no terceiro trimestre de 2016, contabilizava 55.400 edifícios, dos quais 7% totalmente devolutos, ou seja perto de 3.900 imóveis5. O mercado tem sido voraz na procura desse “produto”, principalmente para fim residencial (onde se inclui o alojamento temporário), e até o património municipal (e de outros organismos estatais, como o Centro Hospitalar de Lisboa Central) tem vindo a ser alienado em hastas públicas, em processos acompanhados de críticas sobre a falta de regras na utilização dos edifícios pós-reabilitação.
Os promotores, na sua maioria grupos de investidores de capitais estrangeiros6, têm no processo um interesse muito pragmático, profit, ou seja o rendimento, num binómio, inversamente proporcional, de tempo/resultados. Raramente lhes interessa o valor de desenhar e fazer cidade ou o legado deixado aos seus habitantes locais. Isso, supostamente, ficaria a cargo dos municípios e outras entidades emissoras de apreciações, que agora mais do que nunca “dão despacho” a todos estes processos numa velocidade sem precedentes, uma vez que a reabilitação se tornou prioritária nas suas políticas7.
Os grandes reguladores dos centros urbanos “cá do Portugal” — a nível nacional, a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), e a nível local, os municípios, Direcções Regionais de Cultura (como a DRC do Norte) ou Sociedades de Reabilitação Urbana (as SRU) — apoiam-se em Classificações, Planos Directores Municipais e Planos de Pormenor, noutras entidades, como a Secção de Património Arquitectónico e Arqueológico (SPAA) do Conselho Nacional de Cultura, etc., para concluir a emissão de pareceres e/ou autorizações. Muitas vezes resultam na obrigação destes “promotores-benfeitores” a manter as fachadas, para “garantir” a coerência formal com o circundante, cérceas, alinhamentos, geometrias, proporções, história (e por vezes até uma certa ruralidade...), ou são os próprios investidores que, para não levantar problemas com aprovações ou com a opinião pública, já transmitem essa incumbência ao arquitecto projectista, visando a celeridade do processo, mas reduzindo as possibilidades de novo valor cultural e arquitectónico às cidades.
A regulamentação conta hoje também com o Decreto-Lei nº 53/2014, de 8 de Abril (RERU) que “estabelece um regime excecional e temporário a aplicar à reabilitação de edifícios ou de frações, cuja construção tenha sido concluída há pelo menos 30 anos ou localizados em áreas de reabilitação urbana, sempre que estejam afetos ou se destinem a ser afetos total ou predominantemente ao uso habitacional”. Se, por um lado, este regulamento quer colmatar incompatibilidades em situações difíceis de responder por edifícios habitacionais que merecem ser reabilitados, dispensando-os da aplicação de determinadas normas, por outro lado, dá azo à falta de qualidade e baixa exigência nas intervenções de reabilitação.
No final, grandes estruturas — na maioria das vezes muito degradadas — de pedra e madeira, corrimãos trabalhados de ferro forjado, madeiramentos em talha, frescos, gessos e azulejos de época (quando ainda não foram vilmente pilhados) — o que pode ser vendido é ainda alienado do lugar de origem —, dão lugar ao tão prático, fácil de aplicar e baratinho gesso cartonado, clean e “minimalista”, numa reabilitação “para inglês ver”. A cidade “plastifica-se”.
manteve-se a fachada na Avenida da Liberdade e foi totalmente reconstruído na sua parte posterior, mostrando aqui o seu novo miolo e fachada traseira
A Fachada
As operações de fachadismo não são novidade. Desde que as técnicas construtivas o permitem, após destruições causadas por catástrofes naturais ou por bombardeamentos durante as guerras, muitas fachadas que lhes resistiram foram conservadas, alterando o que lhes é posterior. Encontra-se aqui a fundamentação na vontade de recuperar uma memória ou identidade perdidas, na tentativa de preservação de um certo património afectivo.
Exemplos há, também, de discordância ao nível do estilo entre “interior” e “fachada”, que nos é mais familiar na arquitectura religiosa. Embora esses tendam para a justaposição de uma nova fachada a uma estrutura anterior, mais nobre e digna, ou mais em acordo com a época da operação e a mensagem simbólica e religiosa das ordens, em diferentes momentos históricos.
Do ponto de vista do restauro, entre os aperfeiçoamentos de estilo preconizados por Violet-le-Duc e a crítica a um restauro integral da Carta de Veneza, abrindo a possibilidade ao pastiche, tudo parece ser argumentação para a discussão, contra ou a favor.
Pode ainda concordar-se que a cultura barroca representa a “invenção da fachada”. A fachada ganhou ênfase neste período ao tomar-se a cidade barroca como um grande palco, aberto ao artifício, aos efeitos cénicos e a novas intervenções que reforçavam a ideia da cidade como espectáculo. Poderá encontrar-se no período barroco uma legitimação histórica deste tipo de operação?
“Depois da parede-cortina em vidro e alumínio, regressam com os anos 80 a Lisboa as fachadas, participando no espectáculo da cidade”, escreviam João Vieira Caldas e Paulo Varela Gomes no Expresso, em 1988, num período em que o crescimento do sector terciário teve grande impacto na dinâmica da reabilitação urbana em Lisboa, na adaptação de muitos espaços para escritórios.
Entender a fachada como um elemento autónomo e não simbiótico com o seu interior, parece também ter encontrado no pós-modernismo uma razão de ser. Ou como nos diz Ana Vaz Milheiro8: “Uma inversão do efeito predador moderno deu-se com o fortalecimento da sensibilidade culturalista pós-moderna, muito mais permeável às abordagens eclécticas (também elas de raiz culturalista).”
A fachada assume-se como elemento simbólico que tem o poder de retomar referências históricas, numa aceitação do simulacro da operação do fachadismo. Tão exemplar disto quanto controversa foi já então (1983) a cenográfica intervenção na Casa dos Bicos, em Lisboa, de Manuel Vicente e Daniel Santa-Rita.
As divergências
É tempo de recorrer a uma «última arma», discutível, sem dúvida, mas muito melhor que a demolição pura e simples: a da preservação da fachada, e/ou parte do edifício em causa, integrando-a na nova construção; são só vantagens: não impede a escavação para pisos subterrâneos (...); permite o acerto das cérceas, através dos andares, recuados ou não, de construção nova; permite ganhos térmicos consideráveis (...); e tem ainda por si o factor cultural de não se perder a ligação com um pedaço de história da cidade, que antes fica assim «embutida», a fazer parte de uma nova história... e tudo isto para além de vir ainda a prestigiar o edifício (...) tudo pelo preço de não demolir o plano da fachada, durante a construção!9
O aumento da população urbana é contínuo e é por isso desejável — senão imprescindível — o aumento da densidade construtiva e/ou o crescimento das cidades. Os centros urbanos são estruturas complexas e dinâmicas, onde esse crescimento sempre tem levantado polémicas. Veja-se a criação da Avenida da Liberdade em Lisboa e a consequente destruição do Passeio Público e as demolições necessárias para a expansão a Norte, no alongamento até à zona do Parque Eduardo VII, hoje novamente uma zona em franca modificação, onde se tem optado, porém, pela manutenção das fachadas.
Na perspectiva da reabilitação urbana (e no contexto deste artigo), perante esse declínio dos edifícios das zonas consolidadas, o que está em causa é a sua inteira demolição ou a manutenção de partes passíveis de reabilitar — o que normalmente apenas parece ser possível para as fachadas, em conformidade com o que vem a público e consta dos relatórios técnicos que apoiam os projectos.
A demolição integral significa apagar memórias colectivas10, testemunhos históricos e patrimoniais (material e imaterial; erudito, nobre ou comum) e escrever novos capítulos na história das cidades. Pode revelar-se um procedimento mais arriscado e exigir às entidades avaliadoras uma maior atenção e cuidado na supervisão do novo projecto, tornando o processo de aprovação mais moroso.
A manutenção da fachada apela a essa memória colectiva (que maioritariamente não é consciente do que estava — e agora está — para lá dessa fachada) e de algum modo celebra o legado histórico. Ao esvaziar-se de um interior coerentemente desenvolvido em paralelo da própria fachada, permite que essa estrutura de miolo, já degradada e obsoleta, seja agora totalmente nova, trazendo padrões contemporâneos de segurança e conforto.
A operação não é consensual e as opiniões divergem. A perversidade do fachadismo reside hoje nos resultados construídos (ou naqueles que antevemos nos inúmeros renderings sobre tapumes ou websites promocionais). Se, por um lado, os interiores já em nada reflectem a memória que a fachada pretende ainda garantir — embora a contemporaneidade da intervenção possa ser desejável face ao pastiche ou a uma reconstrução “fraudulenta”—, por outro lado, há fachadas que são manipuladas, entre trims, copies e mirrors, e ganham largura e altura, mais pisos, janelas, varandins, platibandas, “mansardas” etc., tornando-se no que nunca foram. A história que afinal fica contada é falsa, vazia, desinteressante e muitas vezes inestética11.
E surge a questão, estamos a reabilitar e a fazer cidade para quem? Cidadãos locais, que não reconhecem a sua cidade nestas novas estruturas comprometidas e inacessíveis? Cidadãos temporários, que precisam apenas de um visto de residência e que pouco vêm usufruir da cidade? Visitantes, que supostamente procuram a autenticidade do local, perdida entre estas operações?
Os centros das cidade vão-se tornando em alinhamentos de fachadas de reminiscências “históricas”, muitas vezes manipuladas, que acolhem T0 e T1, habitações de luxo (a preços incomportáveis a um mediano rendimento nacional) ou sumptuosos hotéis, incorrendo no risco da “Disneyficação”. Na tentativa de preservar, está a dar-se lugar à criação de uma cidade que se afasta do que é a evolução da cultura portuguesa; não estaremos, assim, a produzir uma nova cultura?
O problema reside no controlo do resultado final. Houve uma incapacidade (ingenuidade? inércia?) das câmaras em prever o exponencial crescimento deste tipo de intervenção, o que se traduziu na ineficácia regulamentar sobre as operações de manutenção de fachada e na definição dos limites da intervenção. Há subjectividade nas apreciações e até grandes discordâncias entre as várias entidades avaliadoras, o que nem sempre é negativo, mas pode promover a diferenciação de critérios face às mesmas problemáticas. Faltam também políticas concretas e rigorosas sobre as novas ocupações dos centros urbanos, no que respeita a quotas (as reabilitações não deveriam ser todas destinadas à ocupação temporária ou habitação de luxo), e regulamentação específica ao alojamento temporário.
Os resultados da reabilitação fachadista destes últimos anos não são animadores: “O Porto Património Mundial incorre em perigo caso se repitam operações como a verificada no Palácio das Cardosas, advertiu o vice-presidente do Conselho Nacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), José Aguiar” (Lusa, 21/11/2017). E acusa a sistematização do fachadismo pelo apagamento da história da cidade, em benefício de investimentos imobiliários.
Tendo por motivo de discussão fachadas em Lisboa, duas situações distintas deram origem a petições públicas que olham a um passado que já não existe. Por um lado, a aceitação, pelos serviços camarários, da proposta de demolição do edifício construído entre 1974–1977 na esquina do Largo Bordallo Pinheiro com a Rua da Trindade12, da autoria de Diogo José de Mello e João Andrade e Sousa. Com uma fachada que integra painéis de azulejos do ceramista António Vasconcelos Lapa, numa geometria discreta e integrada, uma intervenção coerente com a sua época — apenas a exigir algumas actualizações —, este edifício vê a eminência de se transformar numa nova estrutura dotada de uma fachada pombalina, destinada a acolher um hotel de 5 estrelas. Parece querer tornar-se o centro “mais pombalino”, apagando-se memórias posteriores que são assim consideradas inválidas e anulando por completo a hipótese de uma intervenção de linguagem contemporânea.
Por outro lado, o contemporâneo edifício projectado por Souto de Moura para a Praça das Flores13 não prevê ver a luz do dia, mantendo-se um pequeno edifício que, embora integrado no conjunto por ser da mesma época, é uma estrutura de habitação obsoleta para as necessidades que a cidade e a população urbana hoje impõem. Perante o projecto apresentado, temos de concordar que é um estudo elaborado, instruído e do presente, mas temos também de admitir que a sua aprovação abriria um precedente a outras intervenções de características técnicas idênticas, mas possivelmente menos consonantes e interessantes. No entanto há que ter em mente que uma possível intervenção de fachadismo, que parece à partida garantir tantas coisas — as tais cérceas, alinhamentos, estilo, materiais, etc. — pode também transformar-se num grande problema para a própria Praça.
Na cidade consolidada, os casos devem ser analisados individualmente e merecer “a melhor atenção” das entidades competentes pela sua avaliação. Fazer cidade acende as discussões e apela à participação dos cidadãos — e à manifestação pública — quando são reveladas as resoluções camarárias face às intervenções. E isso é sem dúvida desejável, mas a participação pública tem de ser informada dos vários cenários possíveis do problema.
É verdade que Lisboa nunca pareceu tão reabilitada, de fachadas limpas e higienizadas. É verdade que os prédios escuros e sujos do Porto têm agora reluzentes fachadas, suportes ambicionados para intervenções de artistas da moda. Mas a que preço? ◊