ENSAIO
Enfrentar o Medo de Existir
A Internacionalização da Teoria de Arquitectura Portuguesa
Arquitecto, curador e editor
"Se não se falou ‘no que há de bom’, em Portugal, foi apenas porque se deu relevo ao que impede a expressão das nossas forças enquanto indivíduos e enquanto colectividade. Seria mais interessante, sem dúvida, mas também muito mais difícil, descobrir as linhas de fuga que em certas zonas da cultura e do pensamento já se desenham para que tal aconteça."
A internacionalização da arquitectura portuguesa é um facto. As distinções internacionais acumuladas, as vitórias em importantes concursos lá fora, a crescente obra nacional construída em solo estrangeiro, a presença alargada em relevantes publicações, exposições e conferências internacionais, a docência em importantes pólos académicos internacionais, os convites para participação nos principais eventos disciplinares periódicos, demonstram hoje o impacto da arquitectura portuguesa no mundo e a presença internacional dos arquitectos portugueses.
Mas o que dizer da teoria de arquitectura feita por portugueses? Sabemos da desconfiança que a cultura arquitectónica portuguesa tem demonstrado em relação à teoria de arquitectura, quer instrumentalizando-a na actividade projectual, quer neutralizando-a na legitimação factual da história, quer ainda circunscrevendo-a aos interesses identitários nacionais. Diríamos que esta concepção da teoria de arquitectura em Portugal está a mudar, multiplicando-se os sinais dessa transformação. Estas evidências derivam grandemente do que aqui denominamos de internacionalização da teoria de arquitectura portuguesa, um fenómeno novo, a par com esse outro da internacionalização da arquitectura portuguesa. Este fenómeno recente é resultado de um processo histórico que foi marcado pela recepção da arquitectura portuguesa no contexto internacional desde a década de 1970 e pelas transformações nas próprias concepções da teoria de arquitectura nas últimas décadas. Comecemos então por estas últimas.
O fim da teoria?
A condição da teoria de arquitectura contemporânea está hoje em questão. Isto pode perceber-se no recente dossier publicado na plataforma online e-flux architecture sobre a situação actual da história e teoria de arquitectura, no âmbito dos 50 anos do Instituto de História e Teoria de Arquitectura da ETH de Zurique, um dos principais pólos de investigação de arquitectura europeus. Na verdade, a e-flux architecture, editada por Nikolaus Hirsch, Anton Vidokle e Nick Axel, será porventura uma das mais estimulantes publicações disciplinares actuais, expandindo para a arquitectura as valências da plataforma e-flux (1998) e do influente e-flux Journal (2008), no âmbito do “discurso crítico em volta da arte, cultura e teoria contemporâneas”. Na introdução do dossier, intitulado History/Theory, afirmam os seus editores: “A tarefa que se nos apresenta hoje poderá mesmo exigir desaprender o que sabemos para poder ser, em primeiro lugar, história e teoria. Precisamos repensar a forma como é formada, para quem é destinada, qual o papel que desempenha e como se relaciona com a prática arquitectónica e com o seu campo cultural mais alargado. O problema não é que a arquitectura esteja actualmente numa fase a-teórica ou a-histórica, mas que continue a ser frustrantemente irrelevante.” O diagnóstico não parece prometedor.
No referido dossier, o director do Instituto, Philip Ursprung, dá-nos, no ensaio The end of theory?, um panorama desapaixonado sobre a condição da teoria de arquitectura nas últimas décadas, interrogando o papel actual do pensamento e conhecimento disciplinar: “Hoje, a teoria de arquitectura é evocada apenas como um fantasma que nos assombra. Como se fosse uma promessa que (ainda) não foi cumprida, a teoria é como um fantasma incapaz de encontrar o seu descanso”. O fim dos “referenciais teóricos”, das “grandes narrativas” e dos “sistemas de valor normativos” levaram, segundo o autor, a uma “perda da sua autonomia, da sua intencionalidade crítica, do seu papel como agent provocateur, da sua performatividade”. Mesmo afirmando “que não há nada a lamentar com a situação presente”, transparece uma negatividade de fundo na análise de Ursprung perante uma “teoria que permanece em constante fluxo” e que “deixou o enquadramento institucional da academia e transitou para a plataforma das bienais e exposições de arquitectura”.
Noutro artigo, a teórica e historiadora Joan Ockman reforça essa mudança de estatuto, metodologia e lugar da teoria de arquitectura, quando afirma liminarmente que “a história/teoria tornou-se investigação/curadoria”. A ideia de “investigação aplicada”, retirada da “objectualidade e factualidade” das ciências duras ou aplicadas, tornaram “a investigação no Graal sagrado da educação da arquitectura e os laboratórios onde é realizada os seus santuários”, em detrimento da actividade académica de teor mais crítico da história e da teoria. Apesar de “não querer diminuir ou demonizar a investigação”, o ensaio da autora não escapa igualmente a uma atmosfera sombria, patente no seu apelo por “um contrapeso ao imaterial regime global de produção, distribuição e consumo”.
Porém, será na conversa entre Peter Eisenman, Kurt W. Forster, Jacques Herzog e Philip Ursprung, incluída nesse mesmo dossier, que Herzog, como destacável representante da prática arquitectónica contemporânea, desferirá o derradeiro ataque à teoria. Afirma que “as mais importantes obras teóricas do passado — de Vitrúvio, Alberti, Palladio, Semper, Schinkel ou Le Corbusier — já não exercem influência significativa na produção e discurso contemporâneos” e que “a arquitectura não fala por palavras, fala fisicamente”, por isso “toda a teoria deve ser inerente de modo a que possamos senti-la, consciente ou inconscientemente”. A provocação do arquitecto suíço, em linha com a viragem pós-crítica das últimas duas décadas, atinge os colegas teóricos. Eisenman, a personificação do arquitecto-teórico, riposta que “as obras construídas podem ser teóricas, mas à vezes os livros são mais importantes que os edifícios”. Herzog desconfia, contrapondo: “tira as tuas teorias do pedestal”. Ursprung salienta a cisão entre a teoria e a prática do arquitecto americano, elogiando a sua obra construída em detrimento da teoria. Será, na verdade, Forster a assumir a defesa da teoria: “a teoria não é o oposto da realidade; a teoria não é um suplemento gratuito. A teoria é um instrumento operativo. Deixa-nos perceber algo sobre a realidade e portanto responder-lhe”. E, apoiado na perturbadora diversidade da obra recente de Herzog & de Meuron, conclui que “é obviamente fundamental saber em que veículo de pensamento agarramos a nossa reflexão e a nossa obra, porque é isso que fazemos da realidade, por mais devastadora e incondicional que esta seja como manifestação de poder.” Se a defesa está feita, não se dissipa o horizonte de irrelevância perante a prática. Note-se que a única imagem que ilustra esta conversa, a obra Theorie + Praxis de Fischli & Weiss, não poderia ser mais explícita do que está aqui em causa.
Não deixa de ser revelador que este dossier, em geral, e esta conversa, em particular, sejam protagonizadas por figuras de uma geração estabelecida e com um papel activo na própria história da teoria em análise. De facto, a oposição entre projecto e discurso, entre obra e livro, no limite, entre prática e teoria, parece permanecer inquestionada, sendo exactamente aquilo que estará hoje em questão nas “práticas” da teoria. Os regimes, protocolos e campos da teoria de arquitectura estão a mudar, tendo em conta as transformações nos modos como ela é hoje produzida e veiculada. Desde logo, a ideia de projecto expandiu o seu campo integrando hoje projectos de natureza conceptual e especulativa, com inerente substrato teórico. Nada de novo, no entanto, se pensarmos na utopia de Chaux de Ledoux, nos projectos metropolitanos europeus de Mies, ou nas propostas visionárias dos Archigram. Por outro lado, pressente-se cada vez mais que a teoria não é o território autónomo do discurso, da palavra e do texto. Não deixamos de nos surpreender que o modelo das antologias teóricas, emergente nos anos 1970, continue a insistir numa lógica quase exclusivamente textual, suprimindo as representações e imagens que as constroem, animam e justificam. A própria história invalida essa autonomia: a investigação tipológica de Durand manifesta-se nas pranchas do Recueil et Parallel; não “aprendemos” com Las Vegas meramente com leitura; não entramos no “delírio” de Nova Iorque sem a colecção de postais. Finalmente, a teoria de arquitectura parece não ter agora como suporte privilegiado os meios impressos do livro e das revistas. Por um lado, a afirmação do mundo digital nas últimas décadas redefiniu os modos de produção e recepção do conhecimento disciplinar. A verdade é que as plataformas de disseminação digitais tendem a acelerar e condensar os conteúdos transmitidos. Porém, paradoxalmente, temos a sensação que nunca se publicaram tantos livros de arquitectura como hoje. Por outro lado, as actuais abordagens de investigação teórica pluralizaram-se, materializando-se não só em publicações, mas igualmente em instalações, performances, exposições e conferências. O passado mais uma vez desdiz a sua pretensa novidade, bastando pensar na radicalidade da exposição de arquitectura com arquitectura, na Weissenhof de Estugarda de 1927, ou, a partir dos anos 1980, no impacto que a Bienal de Arquitectura de Veneza tem tido no campo disciplinar. Todavia, a emergência das práticas ditas curatoriais no campo da arquitectura, assinalada nos últimos anos por diversos autores, será a evidência dessa multiplicação dos meios e da expansão das estratégias, que configuram o espaço da teoria de arquitectura contemporânea.
Presença histórica
Não podemos perceber a condição actual da internacionalização da teoria de arquitectura portuguesa sem uma compreensão da sua genealogia. Na verdade, para realizarmos essa contextualização precisamos de lastro histórico e de uma visão panorâmica. Façamos então um pequeno exercício, certamente redutor e parcelar mas cremos que significativo, de mapear a presença da arquitectura nacional e dos arquitectos portugueses nas grandes histórias da arquitectura moderna desde a Segunda Grande Guerra. Estas histórias acompanharam a afirmação da própria arquitectura moderna, revelando a constituição e desenvolvimento do projecto moderno, bem como a sua posterior desconstrução e desagregação.
A ausência de qualquer referência ao contexto português é uma constatação natural nas histórias da arquitectura moderna focadas essencialmente na primeira metade do século XX, a saber as de Sigfried Giedion (1941), Bruno Zevi (1950), Peter Collins (1956), Henri-Russell Hitchcock (1958), Reyner Banham (1960) e Leonardo Benevolo (1960). A focalização nos contextos centrais e difusores, principalmente o centro da Europa e Estados Unidos da América, e a construção ideológica do seu projecto transformador, revolucionário ou reformista, não encontraram eco no nosso contexto nacional, atrasado industrialmente e fechado politicamente. Por cá, em 1973, a tradução portuguesa da Storia dell’Architettura Moderna de Zevi assinala uma mudança significativa, trazendo a perspectiva da “arquitectura orgânica” para Portugal, complementada com o influente prefácio de Nuno Portas sobre “a evolução da arquitectura moderna em Portugal”. E Portas tem, como é sabido, um papel fundamental nesta história.
Este encontro simbólico reflectir-se-ia, mesmo que tenuamente, nas histórias da arquitectura moderna editadas na década de 1980. Se as de Manfredo Tafuri e Francesco dal Co (1976), Kenneth Frampton (1980), William Curtis (1982), Michel Ragon (1986) e Alan Colquhoun (2002) continuam a não mencionar os arquitectos portugueses, serão, a partir de meados dos anos 1980, as revisões e actualizações das histórias da arquitectura moderna de Frampton e Benevolo que farão essa inscrição da arquitectura portuguesa. O motivo dessa inscrição é relativamente óbvio, não uma redefinição do passado moderno, no qual Portugal tivesse um qualquer papel, mas a sua relevância no presente, patente essencialmente na obra incontornável de Álvaro Siza e na originalidade do processo SAAL. Se Benevolo salienta a relação do arquitecto português com a Revolução de 1974 e o seu trabalho em habitação social, não só em Évora — ilustrado por três imagens — mas também em Berlim e Haia, Frampton coloca Siza, entre alguns outros, no cerne do seu programa do Regionalismo Crítico, embora este entre somente na segunda edição de Modern Architecture: A Critical History. No entanto, a Frampton interessa o enquadramento de Siza na Escola do Porto, assinalando a influência de Távora e nomeando vários arquitectos do seu círculo. Por outro lado, além de Siza, presente com imagens da Casa Beires e do projecto da FAUP, emerge nas edições posteriores também a figura de Souto de Moura, referenciado no texto como um sinal da abertura a referências internacionais, bem patente na planta “miesiana” da Casa de Alcanena apresentada. Apesar das surdas resistências da cultura arquitectónica portuguesa a esta leitura anglo-saxónica, como testemunhámos uma e outra vez, a inscrição da arquitectura portuguesa no meio internacional deve-lhe muito.
Porém, será em Después Del Movimiento Moderno de Josep Maria Montaner (1993), a primeira história da arquitectura moderna exclusivamente dedicada à segunda metade do século XX, que naturalmente a arquitectura portuguesa, através de Siza, encontra um espaço determinante na historiografia deste período. A ligação ibérica possibilita e justifica, no capítulo sobre “a continuidade do contextualismo cultural”, uma interpretação mais alargada num subcapítulo sobre a arquitectura de Siza, apresentando um percurso pela sua obra, profusamente ilustrado, com diversas referências no texto a outros arquitectos da Escola do Porto. De salientar que, nas conclusões, sob alçada temática do “minimalismo e ecologia”, Souto de Moura é apresentado como uma das promessas para o futuro, ilustrado com duas imagens do projecto da Casa das Artes.
Esta inscrição toma novas proporções no segundo volume da Storia dell’Architettura Moderna de Marco Biraghi (2008), centrada igualmente na segunda metade do século XX. A arquitectura portuguesa aparece num capítulo intitulado “o diálogo com a tradição”, com secções paralelas sobre arquitectura portuguesa e espanhola. O historiador italiano faz uma panorâmica da história da arquitectura portuguesa, referindo a formação da Escola do Porto, com referências a Carlos Ramos, Celestino Castro, Távora, Siza e Souto de Moura, mas igualmente o contexto político e social dos arquitectos de Lisboa, com referência a Keil do Amaral, Teotónio Pereira, Nuno Portas e Gonçalo Byrne, e finalmente, depois da revolução, com menções a, além de Siza e Souto de Moura, Soutinho, Barata Fernandes, Adalberto Dias, Fernando Gonçalves, Mendes Ribeiro, Carrilho da Graça e Aires Mateus. É pois a partir do eixo espanhol-italiano que Montaner e Biraghi inscrevem a arquitectura portuguesa na historiografia internacional, embora a recepção destas histórias se mantenha limitada dada a sua não tradução para a língua franca da contemporaneidade.
A este nível será com a recente publicação de The Future of Architecture since 1889 de Jean-Louis Cohen (2011) que essa inscrição se realiza em língua inglesa. Esta é uma história que atravessa todo o século XX, que inclui uma série de arquitectos modernos esquecidos, que se abre à modernidade de outros contextos geográficos e áreas temáticas, e onde se sente já o reflexo do impacto internacional da arquitectura portuguesa. Um subcapítulo dedicado ao “rigor poético de Siza”, incluído no capítulo sobre “do regionalismo ao internacionalismo crítico”, em clara referência alusiva a Frampton, apresenta imagens da habitação social da Bouça e do Museu de Santiago de Compostela. Pouco mais à frente, Cohen nomeia Távora, Souto de Moura, Soutinho, Byrne e Carrilho da Graça, assinalando, eventualmente, a superação da dicotomia entre Porto e Lisboa já testemunhada na obra de Biraghi.
Ausências teóricas
Continuemos o exercício, mas agora do lado da teoria de arquitectura, concentrando-nos na presença portuguesa nas principais antologias de teoria de arquitectura moderna e contemporânea. Desde o final dos anos 1970, as antologias de teoria de arquitectura tornaram-se o meio, lacunar e fragmentário por natureza, de veiculação teórica, pelo qual se manifestou o desaparecimento dos livros de autores singulares, cujas últimas gloriosas referências terão sido Reyner Banham, Colin Rowe, Manfredo Tafuri, Aldo Rossi, Robert Venturi, Charles Jencks, culminando nos então jovens Peter Eisenman e Rem Koolhaas. É necessário contextualizar este facto, acima de tudo através da dispersão e multiplicidade emergentes com a perda de influência das grandes narrativas modernas, naquilo que então se definiu como pós-modernidade. A impossibilidade de uma visão unitária sobre a produção arquitectónica contemporânea, a multiplicação de perspectivas disciplinares, complementares ou concorrentes, e o peso crescente dos programas académicos, principalmente das universidade norte-americanas, encontraram o seu formato natural na antologia teórica, transitando a preponderância do autor para o editor, responsável agora pela tarefa de construir sentido a partir de uma panóplia de autores e áreas temáticas. A academia dar-lhes-ia pois o enquadramento institucional.
A primeira grande e influente antologia é a de Ulrich Conrads (1964) compreendendo o período entre 1903 e 1963, na qual naturalmente, pela perspectiva canónica do Movimento Moderno, não existe referência a Portugal. Mas essa ausência continua a manifestar-se nas antologia gerais centradas no século XX editadas já no novo milénio, a de Ákos Moravánszky e K. M. Gyongy (2003) e a de Francis Malgrave e Christina Constandriopoulos (2008), sendo a excepção a de Vittorio Magnago Lampugnani, Ruth Hanisch e Ulrich M. Schumann (2004), com a inclusão de um texto de, claro está, Siza.
O panorama não é muito diferente nas antologias de períodos mais específicos. Continuam a não existir textos de autores portugueses nas antologias de Joan Ockman (1993), centrada entre 1943-1968, de Charles Jencks (1997), focada na segunda metade do século XX, nas de Kate Nesbitt (1996) e de K. Michael Hays (2000), dedicadas ao último quartel do século XX, e na de A. Krista Sykes (2010), correspondente ao período 1993-2009. Existem no entanto referências a Siza em textos nelas incluídos de Frampton (Nesbitt), Jean-Louis Cohen (Hays) e nas introduções do editor a textos de Ignasi de Solà-Morales (Hays) e de Steven A. Moore (Sykes). O ponto comum é que praticamente em todos eles o enquadramento teórico é reveladoramente o do Regionalismo Crítico de Frampton.
Portugal também teria a sua antologia teórica do século XX, coordenada por José Manuel Rodrigues a encomenda da Secção Regional Sul da Ordem dos Arquitectos. Esta publicação incontornável optou inteligentemente por cruzar textos internacionais com os principais textos nacionais organizados por décadas, seleccionados por diferentes teóricos e historiadores, embora pecando por displicência em algumas traduções e ausência injustificável de alguns textos introdutórios. Dir-se-ia que, no que à internacionalização da teoria portuguesa diz respeito, a opção inversa, não da retroversão para português dos textos internacionais, mas de tradução para inglês dos textos nacionais, poderia ter sido igualmente útil.
As conclusões deste exercício não parecem ser muito animadoras. No final, nas mais importantes histórias da arquitectura e antologias teóricas do período moderno e contemporâneo, a arquitectura e teoria portuguesas existem com Siza, a partir de Siza e através de Siza. Não será preciso dramatizar. Sabemos que estas publicações partem do centro disciplinar e a arquitectura portuguesa gosta de habitar as margens. Sabemos também que os modelos discursivos estão em mudança, com a pluralização de vozes e áreas geográficas, o que inevitavelmente vai minando a polaridade dominante. Mas pressentimos também o movimento contrário, de uma arquitectura nacional e, dizemos nós, de uma teoria portuguesa que se vão aproximando e conquistando espaço no domínio disciplinar. Ao fim e ao cabo, o que pretendemos demonstrar aqui é que a celebrada mas relativamente recente internacionalização da arquitectura portuguesa se começa a reflectir também numa internacionalização da teoria de arquitectura portuguesa. Passemos já de seguida às evidências desta afirmação.
O início da teoria?
A teoria de arquitectura portuguesa está a emancipar-se. Está a tornar-se internacional, não apenas com a tarefa a contextualizar lá fora a arquitectura portuguesa, mas a entrar directamente no diálogo internacional. E está a libertar-se do campo exclusivo da interpretação e legitimação do projecto arquitectónico, explorando novas áreas de investigação histórica e téorica. Naturalmente, a internacionalização da teoria portuguesa realizou-se primeiro por necessidade de divulgação da arquitectura portuguesa no estrangeiro, ligada a publicações internacionais e grandes eventos fora de portas. Desde logo, a partir de meados dos anos 1970, temos os sucessivos números monográficos e temáticos dedicados a Portugal ou a arquitectos portugueses nos principais periódicos internacionais, como a Architecture d’Aujourd’hui, Domus, Casabella, Lotus, A+U, 2G, Arquitectura Viva, El Croquis, etc. A isto associam-se diversos livros e monografias de alcance internacional que se foram multiplicando com o tempo. Depois existem as grandes exposições internacionais da arquitectura portuguesa, como Points de Répère de Varela Gomes para o Festival Europália Bruxelles 91, Portugal: Architektur im 20. Jahrhundert de Annette Becker, Ana Tostões e Wilfried Wang para a Feira do Livro Frankfurt 97, Architektur: Portugal Ausserhalb Portugals por Ricardo Carvalho no âmbito da visita do Presidente da República à Alemanha em 2009 e Les Universalistes de Nuno Grande na celebração dos 50 anos da presença da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, em 2016, entre outras. Finalmente, emergem as representações nacionais nos grandes eventos periódicos internacionais de arquitectura, como a Trienal de Milão, a Bienal de São Paulo, a Bienal de Veneza e mesmo a Trienal de Lisboa. Em suma, a esmagadora maioria da produção histórica e teórica portuguesa esteve e ainda está maioritariamente associada à presença da arquitectura portuguesa em contexto internacional e umbilicalmente vinculada à produção dos arquitectos portugueses. Neste campo, note-se a edição de alguns livros recentes de arquitectos que procuram formas mais exploratórias de apresentar a sua obra, como o caso de Architectonica Percepta de Paulo Providência (Park Books) com fotografias de Alberto Plácido e Porosis de Nuno Brandão Costa com fotografias de André Cepeda (Monade).
© Cité de l’Architecture & du Patrimoine
É principalmente na academia onde se nota uma clara mudança na actividade teórica de autores portugueses. Isto não é meramente uma novidade no contexto nacional, mas está estruturalmente relacionado com a crescente abertura e circulação no meio académico internacional. Se alguns dos mais destacados arquitectos portugueses nas últimas décadas começaram, com frequência, a leccionar projecto em universidades como Harvard, Columbia GSAPP, Bartlett, ETH de Zurique, Mendrísio, entre outras, igualmente os teóricos portugueses ganham posição nas universidade internacionais, como são, por exemplo, os casos de Joaquim Moreno em Columbia GSAPP, Nelson Mota na Delft University of Technology, Godofredo Pereira no Royal College of Art ou André Tavares na ETH de Zurique. Refira-se também a participação de Moreno nos grandes projectos de investigação, coordenados em Princeton por Beatriz Colomina, Clip, Stamp, Fold: The Radical Architecture of Little Magazines 196X to 197X e Radical Pedagogies. Mas esta nova situação manifesta-se de forma mais alargada na quantidade significativa de investigadores portugueses com presença em múltiplas publicações e conferências internacionais, que reflectem as alterações profundas que a dita investigação trouxe na última década, com a febre dos papers, ao funcionamento da academia.
Porém, é no meio editorial internacional, ainda que na maioria das vezes relacionada com a produção académica, acima de tudo através da escrita de teses de doutoramento, que os resultados da internacionalização da teoria de arquitectura portuguesa se tem manifestado com a publicação de investigações centradas no contexto português por importantes editoras internacionais. O caso de Ricardo Agarez, com edição pela Routledge de Algarve Building: Modernism, Regionalism and Architecture in the South of Portugal 1925-1965, Prémio de Excelência do RIBA 2013 para Teses de Doutoramento, é deveras surpreendente, tendo em conta a natureza particular do contexto geográfico do tema desenvolvido. No prefácio, o historiador Adrian Forty explica a sua relevância: “Algarve Building mostra, de forma mais ampla, quais os processos que foram apropriados pelo cânone da história e da teoria da arquitectura — como a presença de tradições populares e a variação regional na arquitectura erudita — podem ganhar quando observados nas práticas quotidianas locais. As grandes narrativas e as petites histoires da arquitectura podem ser enriquecidas, questionadas, revistas e confirmadas por um retorno sem preconceitos aos seus factos e fontes — os edifícios, os documentos, os discursos, os agentes e os arquivos”. Utilizando os termos hoje em voga, a lógica top-down da história é aqui posta em causa por uma investigação bottom-up.
Mas o que se torna verdadeiramente inaudito na internacionalização da teoria de arquitectura portuguesa é a entrada de investigadores portugueses no debate eminentemente internacional de novos temas e arquitectos estrangeiros. Três livros recentes marcam esse facto com um sucesso crítico estrondoso. Em primeiro lugar, Melancholy and Architecture, editado pela Park Books em 2015, introduz Diogo Seixas Lopes no renovado e concorrido debate teórico sobre Aldo Rossi, com reconhecimento unânime pela crítica. O cruzamento do interesse teórico do autor por Rossi com a prática no atelier Barbas Lopes, demonstra que a investigação pode ir além do projecto, neste caso a manifestação da melancolia em arquitectura através da obra teórica e prática do italiano, mas com ele manter um vínculo fundamental. Vale a pena recorrer às palavras finais da crítica de Kenneth Frampton na Domus: “Este é um estudo excepcionalmente cultivado e sensível que transforma a nossa compreensão estabelecida de Rossi de tal forma que transcende o panorama metafísico congelado da sua arquitectura sob o simulacro da sua cenografia arquitectónica e a ironia do seu percurso tardio, como projectista industrial cromado, o perfil de um intelectual excepcionalmente sensível e comprometido que, tendo as cartas sido lançadas diferentemente, poderia ter sido igualmente um poeta ou um cineasta, ou uma combinação de ambos, inversamente a ser um arquitecto vivendo um tempo que vive em um tempo indigente”. Reveladoramente, para o que nos concerne aqui, a edição portuguesa viria só posteriormente no ano seguinte (Orfeu Negro).
Em segundo lugar, em 2016, André Tavares publica The Anatomy of the Architectural Book, edição inglesa pela Lars Müller e edição portuguesa pela Dafne, ambas em parceria com o Canadian Centre for Architecture (CCA) de Montreal, com uma excepcional recepção e já com várias distinções internacionais. O interesse de investigação do autor pelos livros, como objectos simultaneamente conceptuais e materiais, reflecte-se significativamente na sua actividade como editor na Dafne, conferindo uma singularidade e consistência à sua inovadora abordagem formal ao tema do livro de arquitectura. Jean-Louis Cohen, na sua crítica publicada na Domus, salienta: “Este volume sólido de André Tavares vem como um marco duplamente efectivo. Tem o formato e massa da pedra, enquanto constitui um marco significativo na encruzilhada da história da publicação e da história da arquitectura. (...) É precisamente como um mecânico virtuoso que André Tavares desmantela uma a uma as partes que compõem os livros de arquitectura, antes de remontá-las da forma mais bela e útil”. A análise do livro de arquitectura, sempre dominada pelo conteúdo textual, revela aqui a sua alteridade, não sendo possível, depois desta dissecação, voltar a olhar para eles da mesma forma.
Em terceiro lugar, Marta Sequeira entra de rompante no amplamente concorrido debate sobre provavelmente o arquitecto mais estudado da história. A publicação pela Routledge de Towards a Public Space: Le Corbusier and the Greco-Latin Tradition in the Modern City, a partir da sua tese de doutoramento, que venceu o Prémio da Recherche Patiente da Fundação Le Corbusier 2016, é muito significativa. Como refere Jean-Louis Cohen: “A inclinação de Le Corbusier pelo Mediterrâneo não é segredo. É revelador que tenha morrido em 1965 enquanto finalmente revia para publicação o manuscrito da sua Viagem ao Oriente de 1911. Mas toda a dimensão da sua dívida à Antiguidade Grega e Romana nunca foi verdadeiramente exposta. Graças a um estudo rigoroso dos esquiços sobreviventes e uma análise esclarecedora dos seus projectos, Marta Sequeira mapeou consistentemente os precedentes históricos e o seu agenciamento na obra tardia de Le Corbusier”. Ao abordar as difíceis questões urbanas de Le Corbusier, há muito alvo de repressão disciplinar, a autora abre a possibilidade de novas ligações entre as dimensões arquitectónicas e urbanas do mestre moderno, potenciando um renovado olhar panorâmico sobre a sua obra.
Se é inequívoco o valor e qualidade das publicações de investigação de autores portugueses de teor mais académico, como se pode comprovar pela recepção crítica feita por incontornáveis figuras internacionais, também fora da academia o panorama nacional tem ganho visibilidade. Algumas instituições como o Docomomo, cuja presidência portuguesa de Ana Tostões no Instituto Superior Técnico, tem contribuído para essa presença da história da arquitectura portuguesa no contexto internacional, bem como a actividade de novos autores nacionais. Por outro lado, alguns projectos editoriais independentes de alcance internacional, com coordenação de arquitectos portugueses, deixaram a sua marca no meio teórico na última década, como foram o caso da Beyond de Pedro Gadanho, da Conditions com Joana Sá Lima, ou agora da Cartha, co-editada por Francisco Moura Veiga e antes também por Matilde Girão, ou mesmo da edição internacional do livro Koolhaas Tangram pela Circo de Ideias. A presença nacional de artigos nas publicações independentes internacionais também se vai generalizando de forma significativa com diversos autores, como é o caso da participação de Diogo Seixas Lopes e Patrícia Barbas, Pedro Bandeira e André Tavares no colossal projecto Book of Copies da influente revista San Rocco.
A curadoria como teoria?
A grande interrogação contemporânea da teoria de arquitectura está hoje na sua associação à curadoria. A ideia que a teoria não está circunscrita às práticas da escrita tem levantado intensa polémica, com posições antagónicas bastante vincadas. A verdade é que grande parte das práticas curatoriais actuais têm um indesmentível impacto teórico, mesmo que de dimensão mais experimental e especulativa. E é um facto que as principais instituições internacionais, sejam académicas, museológicas ou programáticas, têm-nas promovido e acolhido. A este nível a presença nacional ganha espaço, seja com a Trienal de Arquitectura de Lisboa, cujas edições sucessivas vão conquistando crescente impacto internacional, bem como a programação do MAAT, da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém e da recentemente inaugurada Casa da Arquitectura em Matosinhos.
Tem sido ao nível da curadoria de exposições em importantes instituições fora de portas que as duas últimas décadas têm sido profícuas, debatendo questões teóricas relevantes e lançando autores nacionais no contexto internacional. Aqui é indiscutível o papel de Pedro Gadanho, com a sua defesa da “curadoria como a nova crítica”, com exposições de tema internacional em meio nacional, como Post-Rotterdam para a Porto 2001, ou Space Invaders para a Experimentadesign em 2001, ou de arquitectos nacionais em contexto internacional, como Pancho Guedes: An Alternative Modernist no SAM de Basileia. De resto, saliente-se a série de exposições que Gadanho organizou como curador do MoMA de Nova Iorque, como 9+1 Ways of Being Political ou Uneven Growth, entre outras. Refira-se ainda nesta área a investigação e prática curatorial de Inês Moreira, reflectida por exemplo na exposição Edifícios e Vestígios para a Guimarães 2012.
Ao nível da curadoria, torna-se fundamental assinalar o protagonismo que tem sido assumido pelo CCA de Montreal, um dos principais centros de investigação e arquivo documental do mundo, que desde a doação do espólio de Álvaro Siza em 2015, em parceria com Serralves e Gulbenkian, tem desenvolvido uma série de iniciativas e parcerias determinantes com arquitectos e curadores nacionais. Por um lado, a parceria na última representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza Neighbourhood: Where Alvaro Meets Aldo, comissariada por Nuno Grande e Roberto Cremascoli, onde se apresentou material de Siza e Rossi dos arquivos do CCA. Por outro lado, as colaborações nas exposições comissariadas por Delfim Sardo, primeiro, a itinerância da exposição sobre o Processo SAAL de Serralves no CCA e, mais recentemente no âmbito artístico, a exposição de Gordon Matta-Clark, apresentada em Serralves e na Culturgest, a partir do espólio do artista depositado no CCA. Finalmente, a apresentação no CCA das exposições The Anatomy of the Architectural Book, comissariada por André Tavares, em paralelo com o lançamento do seu livro, e mais recentemente a aclamada exposição The University is Now on Air por Joaquim Moreno, sobre o surpreendente programa da Universidade Livre, difundido através da televisão e rádio entre 1975 e 1982, do qual se aguarda com expectativa o lançamento do respectivo catálogo e a futura itinerância em Lisboa.
Mas outras grandes instituições internacionais revelam também essa presença portuguesa e outras instituições nacionais entram no circuito internacional. No primeiro caso, inaugurará em Maio próximo no reputado Victoria & Albert a prometedora exposição The Future Starts Here, com curadoria de Mariana Pestana e Rory Hide. No segundo caso, a afirmação internacional do MAAT, sob orientação de Gadanho, com uma série de exposições de âmbito mais especulativo no cruzamento entre a arte e a arquitectura que, através de co-curadorias, tem lançado novos nomes nacionais na arena internacional, como Susana Ventura em Utopia/Dystopia e Mariana Pestana com a futura Eco-Visionaries, esta última com um modelo curatorial inovador numa parceria entre quatro instituições internacionais, com outras tantas exposições simultâneas e, neste sentido, complementares.
Uma última nota para as políticas editoriais das principais instituições nacionais, que têm seguido esse ímpeto internacional. O lançamento de catálogos em parceria com importantes editoras internacionais, tem sido o modelo seguido em exposições como Álvaro Siza: Modern Redux (Hatje Cantz), a última edição da Trienal de Lisboa The Form of Form (Lars Müller), a última representação nacional na Bienal de Veneza Neighbourhood (Hatje Cantz), a exposição Les Universalistes na Cite de l’Architecture e Patrimoine em Paris (Parentheses), a exposição Utopia/Dystopia no MAAT (Mousse Publishing) e agora a exposição inaugural da Casa da Arquitectura Power Architecture (Lars Müller), cruzando o trabalho teórico de consagrados autores internacionais com autores nacionais. Uma simples busca na amazon retira-nos qualquer dúvida desse novo alcance internacional.
A internacionalização da teoria de arquitectura parece estar finalmente a acontecer. Este não é um fenómeno exclusivamente nacional e directamente confrontável com anteriores momentos históricos, tendo em conta as grandes transformações no meio disciplinar, académico e profissional, nas últimas décadas. A questão fundamental que aqui se coloca será antes que, perante as novas condições e circunstâncias contemporâneas, os arquitectos portugueses parecem estar a agarrar as oportunidades e a construir a possibilidade de uma inscrição teórica portuguesa no nosso mundo globalizado. ◊