REPORTAGEM
Starring: a revitalização do quarteirão industrial da Real Vinícola por Guilherme Machado Vaz
Arquitecta, curadora, investigadora pós-doutoramento (IHA-UNL)
O quarteirão construído pela Real Vinícola, companhia de produção e exportação de vinhos e azeites, foi criado de raíz quando a família Menéres deixou a barra do Douro e se instalou em Matosinhos (entre 1897 e 1901), em proximidade do, então, novo porto de Leixões que oferecia melhores condições de navegabilidade durante todo o ano. É um complexo industrial que iniciava na sua linha de comboio para ligação ao porto e se organiza em volta de um duplo pátio central onde se distribuíam espaços de armazém, carpintaria, tanoaria, laboratório, escritórios administrativos e uma casa de guarda, construídos com grande qualidade.
Abandonado desde os anos 30, o complexo manteve-se dignamente de pé, sendo progressivamente amputado das partes e elementos construtivos nobres que o definiam: as grandes vigas e travejamento de madeira das coberturas em riga foram saqueadas ao longo dos tempos, facto que ouvi atestado com emoção por alguns visitantes mais velhos da, já renovada, Real Vinícola. No pós-25 de Abril, houve também ocupações do complexo por “retornados” vindos das ex-colónias, havendo memória dos pátios servirem de espaço de jogo.
A zona industrial de Matosinhos, tabuleiro ortogonal preenchido maioritariamente por conserveiras, fábricas texteis e outros armazéns, foi encerrando e dando lugar a bares, discotecas, bowlings e outros usos tipicamente noturnos. Desde meados dos anos 90, esta zona portuária assume-se como uma urbana “Matosinhos Sul”, com plano urbanístico de Álvaro Siza, lentamente demolida e grandemente substituída por blocos de habitação e condomínios fechados que usufruem de vistas para o grande areal da praia de Matosinhos e suas áreas de lazer, com projectos desenhados por professores da Faculdade do Porto, como o Alcino Soutinho ou Teresa Fonseca. Por entre os grandes investimentos dos anos 90 e 2000, resistiram alguns edifícios, dos quais sobressai a Real Vinícola, adquirida pela Câmara Municipal de Matosinhos nos finais dos anos 90, para o qual foi lançado na época um concurso de ideias para um centro dedicado ao conhecimento do Mar, que não se viu construído.
O valor patrimonial histórico e arquitectónico do quarteirão arruinado foi, seguramente, potenciado pela profunda transformação (e recentralização) da envolvente nestes 30 anos. Hoje, é um dos sobreviventes da memória colectiva da cidade, justificando a opção política tomada em 2013 pelo então Presidente do Município, Guilherme Pinto, de aí instalar os três novos equipamentos culturais que agora inauguram: Orquestra Jazz de Matosinhos, Casa da Arquitectura e os espaços “para aluguer” a projectos culturais/empresariais.
O outro ponto de partida para a reconversão, amplamente debatido nos meios culturais da arquitectura, foi o cancelamento do projecto desenhado de raíz por Álvaro Siza para uma nova sede da Casa da Arquitectura, também em Matosinhos. O projecto foi inviabilizado pela impossibilidade de angariação dos 40.000.000€ necessários ao seu desenho, construção e equipamento que, após tentativas do Município e da Casa junto do Governo de Pedro Passos Coelho, se viu sem acesso a verbas do Estado, que não considerava o projecto prioritário, nem considerava, segundo o seu actual director, Nuno Sampaio, conceder o acesso ao financiamento Europeu que complementasse a contrapartida nacional garantida pelo Município, 7.000.000€.
O cancelamento do projecto de Álvaro Siza criaria um vazio simbólico relativo ao desejo de criação de um novo ícone autoral, levando ao redimensionamento da ambição sobre um novo edifício sede para a Casa da Arquitectura e, por inerência, à presente solução de teor patrimonial. Agora de iniciativa inteiramente municipal, com recursos e custos controlados, a Casa torna-se numa aposta do presidente do Município, Guilherme Pinto, falecido no início de 2017, que decide avançar num projecto equacionado para o investimento disponível, os 7.000.000€.
Nas mãos do arquitecto municipal
O dossier do projecto foi entregue ao arquitecto Guilherme Machado Vaz, técnico superior do Município, com experiência e obra assinada, tanto na Câmara Municipal de Matosinhos como no seu escritório, no Porto, recaindo sobre si apenas, sozinho, o desafio da autoria e a coordenação das especialidades e construção, através da máquina da administração local.
A aposta num autor, à data, com menos de quarenta anos, funcionário do município para solucionar o projecto cancelado de Álvaro Siza, é uma solução pragmática para avançar com o processo, agora inteiramente pela mão do município, depositando confiança no autor, e técnico, inaugurando um extraordinário one-man show. Num pertinente artigo sobre o estatuto do O Arquitecto Municipal em Portugal, Pedro Baía refere aspectos desta opção municipal: “Por um lado, há um maior controlo na gestão da obra, nos orçamentos, nos calendários de execução e nos eventuais acertos durante o processo. Por outro, levanta-se a questão da perda do “estatuto autoral associado ao atelier privado”, e a da não existência de uma equipa de colaboradores, à semelhança de um escritório convencional de arquitectura, com capacidade para assegurar os mais variados níveis e escalas de intervenção projectual”.
Se desenhar um edifício público para um programa cultural é um dos maiores desejos de qualquer atelier de arquitectura (seja um museu, centro cultural, ou biblioteca), receber o convite para desenhar uma nova “casa” para espólios e programação, que represente a arquitectura portuguesa, a par da necessária intervenção no património industrial histórico da cidade onde é arquitecto municipal, é o enunciado de uma oportunidade que eleva o peso da responsabilidade, “when we up in the club, all eyes on us…”
A reconversão do quarteirão da Real Vinícola, suas opções de desenho, programáticas e construtivas, bem como os seus objectivos culturais e políticos, cumprem-se no pragmatismo de um ciclo de mandato autárquico. O projecto foi concebido, financiado, construído e inaugurado no mandato de 2013/17, como promessa eleitoral de 2013 para albergar a sede da Casa da Arquitectura. Acolhe também uma nova sede para a Orquestra Jazz de Matosinhos e espaços para arrendamento a comércio e “indústrias criativas”. Tem a área total de 11.000m2 – Orquestra Jazz de Matosinhos 800m2, espaços comerciais 1.200m2, pavilhão multiusos 300m2, Casa da Arquitectura 5.000m2.
Começando pelos contornos processuais, em quatro anos foi compactada uma timeline escrupulosamente seguida. Segundo Machado Vaz, no Outono de 2013 foi definido o programa funcional, desenhado o projecto à escala 1:100, os projectos de especialidades e definidos mapas de quantidades para a reconstrução de todos os edifícios do quarteirão, para que em 2014 a CMM desse início aos processos de financiamento da obra, através do QREN. Aguardando o financiamento, em 2014 foi detalhado o projecto de execução — tendo por base os mapas de quantidades já aprovados — para que em 2016 e 2017 se realizasse a obra. O programa funcional do complexo foi definido pelo arquitecto, excepto na Casa da Arquitectura que respeitou o programa definido por Álvaro Siza, e aos quais em 2015, já sob direcção de Nuno Sampaio, foram acrescentados novos espaços técnicos para tratamento de documentação.
O projecto final orça os 3,5 milhões de euros do projecto inicial para reconversão da totalidade dos edifícios, o orçamento específico para os interiores da Casa da Arquitectura teve um acréscimo de 2,5 milhões relativos aos espaços de tratamento e armazenamento de espólios, e de 500.000€ para o tratamento arquivístico, sendo o edifício já propriedade do Município.
Ciclos de vida e novo projecto
No projecto de arquitectura do complexo da Real Vinícola, Machado Vaz menciona um texto de George Simmel, sobre a relação entre Natureza e artifício Humano, como sendo o filtro através do qual aborda as ruínas industriais e “negoceia” a sua intervenção. A tensão entre as forças da Natureza e aquela do espírito humano, o desígnio com que o Homem domina e artificializa a natureza — através da arquitectura — e aquele com que a Natureza reivindica os espaços artificializados assim que a acção humana diminui — na ruína infestada de vegetação — orientam a leitura da história do espaço e as decisões projectuais.
O arquitecto inscreve a nova intervenção dentro do largo ciclo de vida do edifício, respeitando o seu abandono em aspectos subtis do projecto de reconstrução, reconquistando a ex-natureza construída, e abandonada. Sublinhando a defesa da memória colectiva da indústria e do património industrial edificado da cidade de Matosinhos, é com gestos contidos que afirma os traços principais da sua autoria, dando palco à arquitectura e carpintaria de traço inglês do século XIX.
O quarteirão apresenta-se inteiramente recuperado, com uma linguagem una, respeitando a volumetria original, as coberturas de telha, a fenestração de madeira, os acabamentos em reboco pintado. Mantém a entrada pelo portão principal que dá acesso ao interior do quarteirão, que se oferece à cidade como novo espaço público, seja de acesso aos dois equipamentos culturais, seja aos catorze espaços comerciais, e ao espaço multiusos que pretende ser uma praça coberta para actividades do município. A adaptação do complexo centenário implica a adaptação funcional aos novos programas, a introdução de novas componentes técnicas e tecnológicas (com especial atenção aos rigorosos espaços dedicados à música ou ao arquivo/acervo), bem como a adaptação geral à legislação actual para edifícios públicos.
A opção mais violenta em termos arquitectónicos é a inserção de novas escadarias e elevador de acesso ao primeiro piso do edifício principal, assumindo uma linguagem contemporânea, brutalista, em duas peças que se justapõe à monumental fachada interior do edifício principal. Em ambas, os acabamentos interior e exterior são rudes, à vista. Uma segunda opção que altera o traço original do edifício prende-se com a fenestração, seja nas janelas antigas semi-encerradas para controlar as entradas de luz na nave expositiva, reduzindo os ocos, seja no rasgar dos novos e generosos vãos, com linguagem contemporânea, que perfuram um dos muros exteriores do quarteirão assumindo com rasgo uma nova fachada comercial — sem contudo permitir a entrada, que se faz pelo portão principal e através dos pátios.
Remetendo para o período de abandono do quarteirão em que a natureza o tomou, o arquitecto aceita a interferência da passagem do tempo, assumindo no projecto duas árvores que cresceram dentro de um edifício destelhado. As árvores definem o espaço de dois pátios, um para cada ulmeiro, ajudando a modular a dimensão e a cadência de dois novos interiores: galeria de exposição temporária e zona de tratamento de arquivo.
De modo menos claro, ou declarado, podemos ver que os três programas instalados dentro do recinto seguem três estratégias de intervenção arquitectónica, todas distintas e apenas reveladas para lá da fachada.
Na ala esquerda e no centro do quarteirão, os antigos edifícios foram reconstruídos do seu estado de ruína a céu aberto com base no projecto original, com novas coberturas em asnas de madeira e telha Marselha, dando origem ao amplos hangares vazios e modulares, infraestruturados para serem subdivididos em novos espaços comerciais e de empresas. Aqui, a reconstrução geral seguindo o desenho e as técnicas originais, é apenas pontuada pelos novos vãos (já mencionados) e pelos armários técnicos que permitirão a autonomia de cada módulo. De assinalar a manutenção do grande reservatório metálico da antiga sala da máquina a vapor.
No corpo do fundo do quarteirão, a Orquestra Jazz de Matosinhos, a estratégia é a mais interventiva e complexa, ainda que integrada pela fachada e pelo mesmo tipo de cobertura, ficando “camuflada”. Nestas antigas cavalariças e armazéns técnicos, degradados e descobertos, foi construído um novo edifício em alvenaria de betão para albergar os novos espaços de ensaio, as reggies de gravação e mistura de som, bem como os serviços administrativos. A opção prende-se com des-solidarizar a estrutura para garantir perfeição na solução acústica, potenciada pelo uso de materiais e requisitos técnicos da engenharia acústica (ex: módulos de revestimento da sala de ensaios, composição dos vidros da reggie, etc.), assumindo uma linguagem arquitectónica contemporânea nos interiores com folheados de madeira, gesso cartonado e acabamentos sem patine, que, contrariamente aos outros dois corpos, não revelam a natureza nem o passado industrial do edifício.
A ala direita é o edifício principal, de maior nobreza e com pé-direito excepcional, agora reabilitado e adaptado ao novo uso, a sede Casa da Arquitectura. É também aquele em que o peso do passado mais se faz sentir. Se inicialmente foi o armazém principal do complexo, hoje o piso inferior é o arquivo/acervo do espólio de maquetes, desenhos e outro material sensível, e o piso superior é a sala de exposições principal da Casa, com 800m2. Ambos revelam o esplendor da arquitectura industrial, seja na estrutura metálica original que modula o piso inferior, seja na grandiosa nave recoberta com asnas de madeira, reconstruídas, que reconstituem a espacialidade original e oferecem um espaço expositivo generoso. Os três torreões que marcam a fachada integram: a biblioteca; a zona central do espaço expositivo e, por fim, os serviços administrativos.
O epicentro da intervenção é a nave central. Na exposição inaugural — “Poder/Arquitectura”, comissariada por Jorge Carvalho, Pedro Bandeira e Ricardo Carvalho —, a opção cenográfica desenhada por aNC arquitectos, com redes metálicas, encobre as paredes da grande nave e, ainda que mantendo livre o seu grande eixo longitudinal, traz uma estética urbana e informal, callejera, para o espaço histórico, que fica parcialmente ofuscado.
A dramaturgia do percurso público da visita na Casa faz-se num diálogo permanente com as zonas mais privadas da instituição: do balcão da recepção um envidraçado expõe o acervo ao visitante, solução repetida na visibilidade sobre as salas de leitura da biblioteca antes da chegada à grande sala de exposições. A composição e delimitação dos espaços faz-se num “código” de materiais que evoca metaforicamente o armazenamento industrial de caixas, pipas e tonéis, modulando o percurso e as funções dentro dos dois hangares: caixas de madeira com funções que convidam ao toque do corpo (escritórios, instalações sanitárias, cozinhas) e caixas de metal com usos técnicos inacessíveis (armazém, arquivo, outros).
A história industrial do edifício é revelada ao longo de todo o complexo, na entrada vemos o painel policromático de publicidade aos vinhos da Companhia Real Vinícola, dentro da CdA vemos exposta através de um poço no pavimento da entrada uma antiga cisterna revestida a azulejos antigos, reunidos avulso, eventualmente adquiridos sem qualquer fim decorativo mas apenas funcional. A história do edifício, e do seu abandono, vê-se também na justaposição das madeiras antigas e novas no exacto local do telhado em que foi possível recuperar a pré-existência, tal como se vê também na textura dos tectos de estrutura metálica (na sua cor original), ou ainda nos depósitos metálicos semi-embutidos nas paredes de pedra. Por fim, no espaço exterior, empedrado, assinala-se a ausência da antiga linha de comboio através do desenho de um pavimento liso que atravessa todo o pátio, tal como antigamente o fez o comboio. ◊