OPINIÃO
Lojas Com História em Lisboa
— o que é, o que são
Designer de comunicação, escreve no blog www.biomorphism.wordpress.com
No barulhento Largo do Calhariz em Lisboa, rodeada pelo movimento frenético de locais e turistas, encontra-se uma discreta loja centenária que no início deste ano foi o tema central de uma discussão cada vez mais presente na vida dos lisboetas: ao fim de 144 anos de actividade, a Tabacaria Martins anunciava o encerramento. Como em tantos casos semelhantes, o imóvel que a acolhe, o Palácio Sandomil, estava prestes a ser alvo de remodelações profundas para se transformar num complexo de apartamentos de luxo, onde não haveria espaço para a loja. A notícia despertou preocupação e indignação entre clientes, amigos e vizinhos. A Tabacaria Martins não é uma loja sumptuosa, nem o destino óbvio num roteiro turístico, mas para muita gente é a “sua” tabacaria, onde se cumprem rotinas antigas, do tabaco ao jogo, ou onde uma geração mais jovem vem comprar os bilhetes para os espectáculos na Galeria Zé dos Bois, sua vizinha do Bairro Alto. Este sentimento de proximidade familiar fez com que um movimento iniciado nas redes sociais marcasse presença à porta da loja, onde um grupo de cidadãos se reuniu para protestar o encerramento.
Entre os argumentos mais ouvidos constava o facto de este estabelecimento ter sido distinguido pela Câmara Municipal em 2016 como uma Loja Com História. Como podia uma loja de valor reconhecido pelos cidadãos e pelo município fechar portas assim de repente, sem qualquer oposição, especialmente quando funcionava perfeitamente? A verdade é que a Tabacaria Martins acabou por não fechar. Um diálogo bem sucedido entre a proprietária da loja e o novo dono do imóvel, que alegadamente não conhecia a importância do estabelecimento, resultou num entendimento que destinou à Tabacaria Martins um futuro mais risonho do que o de lojas como o Restaurante Palmeira, a mercearia Casa Alves ou a loja de tecidos Tavares Panos, apenas três das muitas que em 2016 encerraram, fruto de circunstâncias idênticas. Esta situação tornou evidente que há um número significativo de cidadãos preocupados com o estado do comércio tradicional em Lisboa, que exigem dos seus representantes uma resposta eficaz aos sucessivos encerramentos de lojas emblemáticas da cidade, e que veem agora no programa Lojas Com História uma ferramenta essencial no processo. Isto materializa-se numa reivindicação clara: as Lojas Com História têm de ser apoiadas na prática, e não apenas no discurso.
Criado em 2015 pela Câmara Municipal de Lisboa, o programa Lojas Com História é um esforço conjunto de três vereações – Economia, Cultura e Urbanismo – para salvaguardar e dinamizar o património comercial da cidade, que enfrenta actualmente adversidades como aumento desproporcionado das suas rendas, relações difíceis com os senhorios ou elevados custos de manutenção. A equipa de trabalho inclui, além de técnicos e especialistas do Município, elementos da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, envolvida em vários aspectos do projecto desde o seu início. Por fim, um Conselho Consultivo reúne representantes de sectores associativistas, empresariais, culturais, académicos ou movimentos de cidadania, que são convidados a deliberar sobre o trabalho levado a cabo pela equipa.
A primeira fase do programa incidiu sobre a identificação de um universo de lojas com potencial interesse, a partir do qual se constituiu uma lista de 100 estabelecimentos a visitar em processo de levantamento durante o primeiro semestre de 2016. Nestas visitas procurou-se averiguar o cumprimento de um conjunto de critérios necessários para obter a distinção de Loja Com História. Os critérios do programa 1 dividem-se em três grupos que reflectem os factores valorizados num estabelecimento e que, em última análise, o definem como “com história”: Actividade; Património Material; Património Cultural e Histórico. Além de reunir mais de 50% dos pontos possíveis, uma loja deve ainda pontuar pelo menos uma vez em cada um dos três grupos para ser distinguida. Ao acentuar a importância destes três núcleos, procura-se consolidar a ideia de que uma Loja Com História não é apenas um espaço antigo ou visualmente deslumbrante, valorizando a reunião de diferentes elementos materiais e imateriais, com especial atenção à actividade comercial, aos ofícios representados, ao seu papel social e ao contributo para a cidade.
Até ao momento, das 100 lojas visitadas, 82 obtiveram e aceitaram a distinção por parte do município. Neste grupo encontra-se representada uma grande variedade de ramos de actividade, serviços e ofícios, de tipologias de espaço e de públicos-alvo. Geograficamente, a concentração é particularmente forte na zona da Baixa, mas existem vários outros estabelecimentos que podem ser visitados um pouco por toda a cidade. Estas lojas poderão em breve candidatar-se a um fundo de 250 mil euros, aprovado este ano pela Assembleia Municipal, que visa apoiar iniciativas de recuperação e salvaguarda de património, mas também incentivar projectos culturais ou de formação profissional, entre outras iniciativas que contribuam para uma crescente dinamização ou reactivação da actividade dos estabelecimentos. Também brevemente será aberto o processo de candidatura de novas lojas à distinção, que poderá ser feito por qualquer cidadão, desde que tenha autorização do proprietário. Além disto, o programa prevê a produção de meios de comunicação e divulgação, entre eles um website onde se disponibilizarão informações sobre as lojas distinguidas, cumprindo outro objectivo do programa: dar a conhecer ao público as lojas e as suas principais valências.
Face aos desafios urgentes apresentados por uma conjuntura económica e social em que o pequeno comércio vê crescentes dificuldades em sobreviver, um programa de salvaguarda como este tem de encontrar novas formas de entender o património comercial da cidade. Outras ferramentas existentes focam-se sobretudo no património edificado, o que se revela insuficiente. De facto, a cidade de Lisboa é rica em lojas cujo valor arquitectónico importa não descuidar. Veja-se, por exemplo, os notáveis projectos do arquitecto Norte Júnior em lojas como A Brasileira, o Café Nicola ou a Pastelaria Versailles, que são hoje emblemas de uma cidade-postal. Mas indo mais longe, pode-se observar aquilo que se entende como património projectado, não exclusivo à arquitectura, abrangendo também o design – gráfico e de equipamento –, a decoração e o próprio serviço. Em casos excepcionais, o conjunto destes elementos emerge de um plano original, um projecto global que visa providenciar uma experiência comercial única. É o caso do Galeto, um dos primeiros – se não mesmo o primeiro – snack-bares de Lisboa, idealizado e projectado por Victor Palla e Joaquim Bento d’Almeida, inaugurado em 1966. Ali, o serviço ao balcão orienta os princípios quer da ementa, quer da espacialidade, em harmonia com a decoração e o design gráfico – tal como se pode ver em anúncios antigos, com a comunicação publicitária do espaço.
Continua-se, no entanto, a falar de património eminentemente material, apenas uma dimensão da importância destas lojas. Não será, certamente, novidade referir que nos espaços contemplados por um programa destes se desenrolou muita da história da cidade e, em certos casos, até do país. A mesa de Fernando Pessoa no Café Restaurante Martinho da Arcada; a Winchester que disparou a bala que matou o Rei D. Carlos, comprada na Espingardaria Central A. Montez; as reuniões do famoso “Grupo do Leão” no restaurante Leão d’Ouro; as conspirações (políticas e românticas) nos gabinetes dos restaurantes Faz Frio e Estrela da Sé. As Lojas Com História são repositórios de famosas crónicas como estas, e de incontáveis outras, menos conhecidas – muitas delas mitos perpetuados por várias gerações, cuja verdade é hoje difícil de averiguar – eruditas ou populares, que contribuem para um imaginário colectivo de Lisboa.
Algumas lojas, pioneiras no seu ramo de negócio ou no contexto da cidade e do seu tempo, apresentaram novas tipologias de comércio, novas tendências e modas, avanços tecnológicos ou mesmo sociais. Podemos falar da Caza das Vellas Loreto, a primeira em Portugal a vender velas coloridas; das ginjinhas Espinheira e Sem Rival, que em conjunto popularizaram o serviço ao balcão, em que a rua é a sala; da Paris em Lisboa, importadora da moda feminina francesa desde finais do século XIX; ou até, mais recentemente, do restaurante Casanostra, que além de contribuir para a nova vida cosmopolita do Bairro Alto na década de 1980, foi dos primeiros a servir refeições italianas confeccionadas com produtos importados directamente de Itália. Pequenas mercearias como a Pérola de São Mamede ou leitarias como A Minhota são pontos de coesão social no espaço do bairro, que sustentam antigos rituais comunitários e relações interpessoais.
Tudo isto impele-nos a falar finalmente da actividade, um factor difícil de circunscrever e salvaguardar, e que nos obriga a encontrar os elementos tangíveis que a ela se associam. É possível fazê-lo, em parte, olhando para o património material e para a herança cultural e histórica, mas isso apenas não chega. Considera-se então a produção própria, quando ela existe, com todas as implicações de manutenção de conhecimentos técnicos e artesanais, muitos deles em risco de extinção. Observam-se as redes comerciais construídas entre lojas, relações por vezes com décadas de existência. Em várias escalas, o universo das Lojas Com História revela uma cidade por muitos desconhecida, no centro da qual há produção de luvas, velas, licores, café, passamanarias, jóias... E se nas lojas se observa a diversidade dos clientes – diversidade de género, classe social, tribo urbana, etc. – nas suas fábricas e oficinas vemos a diversidade daqueles que a constroem: a senhora de idade que ensina um jovem brasileiro a trabalhar um tear industrial; o talentoso alfaiate e as costureiras que há décadas, juntos, fazem nascer fatos e camisas; o rádio aos berros numa oficina cheia de operários, onde o peso bruto dos materiais e a sujidade das máquinas contrasta com a delicadeza das peças de joalharia que dali saem para a loja.
As lojas não são monumentos imutáveis, e a sua actividade comercial está na linha da frente de qualquer iniciativa que não as pretenda museificar. Coloca-se muitas vezes esta discussão em termos de identidade ou autenticidade, e eu estou em crer que isso é um erro. A cidade de Lisboa não é mais autêntica por ter mais ou menos Lojas Com História. Se assim fosse, onde no tempo encontraríamos a fonte desta autenticidade? Ninguém se pode arrogar a dizer a um lisboeta que ele é menos lisboeta porque vai ao hipermercado em vez de ir à sua loja de bairro. Mas existe ainda uma Lisboa onde a loja de bairro, seja ela mais popular ou elitista, desempenha um papel relevante na vida dos habitantes, e até mesmo dos visitantes. Este papel tem sido posto em causa de forma abrupta, consequência de uma crise arrasadora, de uma nova vaga turística para a qual a cidade não estava preparada e também pela dificuldade das próprias lojas se renovarem ao ritmo da mudança. Como tal, defender as Lojas Com História não é um acto de monopolização das vivências de uma cidade. Pelo contrário, deve ser entendido como um contributo para a pluralidade urbana.
A preocupação com o património nunca se coloca em oposição ao progresso e modernização da cidade. Nada impede o comércio de proximidade tradicional de conviver com as tipologias comerciais contemporâneas. E também não se trata de proteccionismo reacionário feito a todo o custo. Como se referiu neste texto, a valorização da actividade visa privilegiar a própria pertinência contemporânea e viabilidade comercial destes negócios. As Lojas Com História têm de ser mais do que museus vivos ou espaços de nostalgia. Têm de ser lojas, como sempre foram. Mas quando se identificam os obstáculos que, em anos recentes, foram subitamente colocados a estes estabelecimentos, dois caminhos surgem: ignorar e deixar fechar, ou, investir e procurar reactivar. Investir como se investe em start-ups, em obras de renovação urbanística ou na abertura de infra-estruturas turísticas – “como”, não “em vez de”.
Por fim, um programa deste tipo terá sempre de funcionar ao serviço dos cidadãos, mas também em colaboração com eles. Como demonstra o caso da Tabacaria Martins, a mobilização pública funciona. O programa Lojas Com História é agora mais uma ferramenta que serve essa mobilização. É inevitável que continuem a encerrar estabelecimentos queridos dos lisboetas. Existem negócios inviáveis, lojistas que não querem continuar, e outras situações imprevisíveis. A natureza do comércio é mesmo essa. O papel do Lojas Com História não é alterar essa natureza. Mas já se percebeu que muitos dos encerramentos que acontecem podiam não acontecer. Para esses casos foram desenvolvidas medidas de protecção, divulgação e apoio directo – discute-se inclusive uma alteração à lei das rendas na Assembleia da República – que almejam proteger estes bens de interesse público. É certo que as relações da cidadania com o poder representativo não são sempre “pacíficas” – até certo ponto isso é desejável, no sentido em que promova um debate amplo. Um debate que, no final de contas, não seja apenas sobre as Lojas Com História, mas que possa levar a discussões sobre o espaço público, a mobilidade urbana, os processos de gentrificação ou o custo da habitação. A discussão sobre uma cidade múltipla, pronta a ser habitada e visitada por todos, de todas as maneiras. ◊
*O autor trabalha no programa Lojas Com História desde Dezembro de 2015, integrando a equipa da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. As opiniões expressas neste texto são da sua exclusiva responsabilidade individual e não devem ser de forma alguma imputadas ao programa, à FBAUL ou à Câmara Municipal de Lisboa.