ENSAIO/OPINIÃO
Colina abaixo, colina acima...
assim vai a arquitectura da cultura alternativa lisboeta
PhD (École Polytechnique Fédérale de Lausanne), Arquitecta (IST) e Investigadora associada do laboratório de sociologia urbana (Lasur, EPFL)
Um processo de esteticização associado a espaços culturais “alternativos” localizados na zona central de Lisboa tem-se vindo a observar nesta última década. Propondo novas utilizações a estruturas pré-existentes, estes projectos actuam através de transformações espaciais específicas e de um modo geral pontuais nos edifícios ocupados, tendo por vezes também um considerável impacto na alteração de usos do espaço urbano envolvente.
A mudança de funções de um edifício é, historicamente, uma das acções espaciais mais frequentes. Velhas estruturas abandonadas ou obsoletas, acolhem frequentemente novos usos adaptados aos novos tempos. O factor económico é sem dúvida um dos principais motores deste tipo de mudanças, vendo-se hoje um investimento sem precedentes na área do turismo, e é nesse contexto que o centro de Lisboa sofre um intenso processo de turistificação a que ninguém é alheio. Contudo, a cidade já viveu outro processo comparável em décadas anteriores, ligado à terciarização, em que, por exemplo, muitos edifícios de habitação deram lugar a escritórios e cafés foram transformados em bancos. Foi um momento em que a Área Metropolitana de Lisboa cresceu e grande parte da população lisboeta passou a viver na periferia da cidade.
Esse investimento no turismo, assumido como importante fonte de receita económica de um país em crise, requer transformações espaciais e arquitectónicas para receber o visitante estrangeiro. Ávido de cultura local tradicional – seja o monumento histórico, a imagem de Fernando Pessoa, o pastel de nata ou uma gastronomia em que avulta a sardinha –, a satisfação do turista requer a produção industrial em massa das correspondentes imagens. Estas passam a funcionar como símbolos do paradoxal espírito glocal (global + local), resultando assim na banalização do conteúdo desses “objectos típicos”.
A essa tendência da moda no presente momento terá sucedido a aplicação prática, ao nível de políticas urbanas, da ideia da “cidade criativa” (Florida, 2002; Landry, 1995, 2006), que sugere que a promoção das artes e da cultura é fundamental para a economia e para as dinâmicas sociais e territoriais da cidade.
O valor dado à imagem tem vindo a aumentar exponencialmente e o seu impacto na arquitectura também ganhou importância. Após um longo período de progresso económico em que tantas star-architectures foram criadas e construídas, tantos edifícios arrasados e substituídos por novos, projectos urbanos megalómanos desenhados e em larga escala realizados, chegou a fase de jogar com uma situação económica menos favorável, adaptando assim a produção arquitectónica aos meios disponíveis. A “Re-Arquitectura” – da Reutilização, Reabilitação, Renovação, Reciclagem e Revitalização de edifícios, termo em parte definido pelo arquitecto Sherban Cantacuzino (Re-Architecture: Old Building /New Uses, New York: Abbeville Press, 1989) – ganhou adeptos, passando a estar no centro das atenções de tantos arquitectos e mesmo de clientes. Incentivada originalmente por preocupações de carácter ecológico ou de justiça social, esta é também uma arquitectura de Resistência (quando não desviada por interesses lucrativos).
Estas re-arquitecturas ganham particular relevância em tipos de projectos ligados às artes, à cultura e às profissões criativas 1. Se por um lado tem havido um aparecimento maciço de hotéis no centro da cidade nos últimos anos, por outro lado têm também surgido vários espaços culturais de pequena ou média escala em Lisboa. Muitos destes projectos utilizaram tipos de práticas espaciais de “re-arquitectura”, e ambientes visuais inspirados em símbolos utilizados por lutas anti-capitalistas, pelas contra-culturas ou pelos universos underground (i.e., de carácter cultural marginal).
Se a imagem de Che Guevara comercializada e reproduzida (t-shirts, porta-chaves, etc.) perdeu progressivamente o seu conteúdo de resistência e luta, pela banalização, também o mesmo tem ocorrido com os ambientes espaciais de projectos culturais ditos “alternativos”. Um número crescente de espaços são criados para parecerem “alternativos”, i.e., concebidos ao nível da imagem, forma e programação, para atrair certo tipo de visitantes e clientes, com gostos ligados às artes e/ou às contra-culturas 2. São assim criados espaços coloridos e ambientes espaciais apelativos de forma a conduzir a determinado efeito no visitante, como no exemplo incontornável da Pensão Amor – que inclui um bar, sala de concertos, espaço de coworking, livraria e lojas. A Pensão Amor foi criada pela imobiliária Mainside, que decidiu manter o pré-existente ambiente underground local, povoado por prostitutas e marinheiros, porém recriando e romantizando esse ambiente através de pinturas murais (num estilo street art/banda desenhada). Esta decoração e conceito fazem as delícias de uma boémia relativamente abastada de Lisboa, e sobretudo do turista, naquela que foi em tempos uma “casa de meninas” – o nome “Pensão Amor” faz, fatalmente, alusão a memórias e usos de outros tempos. Por outro lado, a caixa de escadas, em estado degradado, foi propositadamente mantida por renovar, com a tinta das paredes descascada e deixando ver as múltiplas camadas construtivas do interior das paredes. Como se o estado de ruína do edifício fosse realmente algo desejado e contribuísse para o seu charme geral. A estética de reciclagem e nostalgia encontra-se assim presente, nos objectos, nas memórias e na arquitectura do próprio edifício.
© Letícia do Carmo
Num projecto de design ou criação de ambientes, encontra-se presente uma manipulação estética que, aliada aos efeitos da ocupação quotidiana e da decoração do espaço, pode levar ao desenvolvimento de um processo de esteticização. Este, por sua vez, pode resultar num ambiente um pouco artificial. Se a estimulação sensorial do visitante tende a originar um certo “prazer estético” de que fala o filósofo Gernot Böhme (Atmosphere as the Fundamental Concept of a New Aesthetics, SAGE, 1993, p.125), quando levado a um extremo, esse processo de esteticização ou de ornamentação pode ser utilizado para entreter e manipular as “massas”, tal como nos anos trinta, entre Guerras, foi denunciado por Siegfried Kracauer com a sua visão desencantada da civilização moderna (L'Ornement de la masse – Essais sur la Modernité Weimerienne, Paris: La Découverte, 2008 [1920s-1930s]).
À esquerda: imagem do vídeo de Vítor Gabriel (https://vimeo.com/34970118)
À direita:
© Letícia do Carmo
O sucesso da Pensão Amor estendeu o fenómeno ao resto da rua, pintada (e baptizada) de cor-de-rosa e invadida por novos bares luminosos, os quais têm vindo gradualmente a substituir os antigos, de natureza realmente marginal. Hoje em dia existe na Rua Nova do Carvalho uma constante atmosfera aparentemente feliz, dia e noite, patrocinada por uma conhecida marca de vodka. Como alertam os filósofos Lipovetsky and Serroy (L’Esthétisation du Monde – Vivre à l’Âge du Capitalisme Artiste, France: Gallimard, 2013, p.12), a dimensão estético-emocional passou a estar no centro da competição entre marcas, utilizada com fins lucrativos.
Situado no socalco da chique e solarenga colina de Santa Catarina e Chiado, o escuro e underground Cais do Sodré, mais precisamente as duas ruas que passam por baixo da Rua do Alecrim, sofreu então uma grande e acelerada transformação de usos 3 por impacto e influência parcial de um projecto. Esta área deixou de ser associada a consumo de drogas e prostituição, para estar associada a um ambiente festivo e jovem, embora mantendo o estatuto de área de diversão nocturna.
O segundo grande factor impulsionador da mudança relaciona-se com a alteração da Lei das Rendas em 2012, que levou a que tantos dos edifícios degradados desta área central passassem a estar disponíveis no mercado e chamassem a atenção dos investidores. Outro factor importante é o facto de o Cais do Sodré ter passado a albergar uma parte considerável do que foi a vida nocturna do Bairro Alto.
O Bairro Alto foi um dos bairros mais atraentes para os lisboetas durante décadas, pela vida nocturna intensa (bares, restaurantes, espaços culturais 4, gráficas) e pelo tipo de vida diurna, associada nomeadamente à presença de pequenas lojas de comércio tradicional e aos fortes laços estabelecidos entre a vizinhança. Reunia muitas das condições ideais da “cidade criativa” de Florida: um passado de reputação duvidosa, seguido da chegada dos boémios e dos artistas, uma mistura social bastante rica (que, para além destes, incluía uma população local de estrutura social “tradicional” e ainda uma forte comunidade homossexual), uma mistura de estratos profissionais e serviços, uma vida de rua intensa. Esta “street level culture” é precisamente o que Florida (2002, p.182) considera essencial para que um bairro seja “cool and attractive”.
O “ecossistema” do Bairro Alto saturou devido a vários factores: excesso de popularidade, gente, ruído e lixo, e consequentemente, a reacção dos moradores incomodados, assim como um crescente interesse imobiliário e turístico. O resultado foi um controle mais apertado de horários de abertura dos bares, limite do tráfego automóvel no interior do bairro, policiamento mais presente e vídeo-vigilância. Descontentes, os boémios lisboetas foram procurar outras paragens, descendo a colina até ao Cais do Sodré, à Rua de São Paulo, ao Poço dos Negros, ou mesmo até ao Intendente. Um tipo de vida que antes se concentrava essencialmente numa só zona, mas distribuído ao longo de todo um bairro (cujas ruas apertadas e características topográficas relativamente acidentadas criam a ilusão de um plano irregular, conferindo-lhe um carácter labiríntico), foi-se dispersando ao longo de vários eixos viários:
• Rua do Alecrim e Bica até ao Cais do Sodré e Rua de São Paulo;
• Calçada do Combro até à Rua do Poço dos Negros, fazendo a ligação com Santos;
• Chiado (Rua Garret), prolongando-se pela Baixa e chegando até ao Martim Moniz e Intendente.
Criou-se numa parte considerável da cidade uma rede não só de bares mas também de espaços de coworking ligados às áreas criativas, outros ligados a projectos artísticos mais experimentais, plataformas de colectivos ou associações culturais e socio-culturais 5. Tal como sucedeu com o Bairro Alto, estas áreas encontram-se em vias de gentrificação. Mas, ao contrário desse bairro, cujo processo levou algumas décadas a desenvolver-se, nestes novos locais a gentrificação ocorreu a uma velocidade impressionante.
Lisboa – esta “nova Berlim” 6 – passou de uma discreta e decadente (mas de certa forma poética) vida boémia a uma fervilhante e dinâmica cidade (embora bem mais orientada para o consumo e para o espectáculo, no sentido do situacionista Guy Debord). Temos assim uma cidade em mudança, colina acima, colina abaixo, cujo impacto se tem feito sentir a um nível arquitectónico e também urbano, sendo curioso observar a forma como estes dois níveis se encontram interligados a nível de práticas, escolhas e tendências estéticas visuais e espaciais.
Nos últimos anos têm sido efectuados pela Câmara Municipal de Lisboa importantes trabalhos de renovação de várias infraestruturas da cidade, nomeadamente nos grandes eixos viários e praças. Mas a maior parte dos grandes projectos urbanos para Lisboa, que visavam a construção de vários e novos edifícios assinados por arquitectos de renome internacional, como os do Parque Mayer (Frank Gehry; Aires Mateus), Alcântara XXI (Aires Mateus, Frederico Valsassina, Jean Nouvel, Álvaro Siza, Mário Sua Kay) ou Jardins do Braço de Prata (Renzo Piano), foram afectados na altura em que a crise financeira se instalou 7. Surgiram então outro tipo de soluções de intervenção urbana, mais efémeras e pontuais, por vezes superficiais ou simplesmente de natureza estética, em grande parte destinada a atrair o olhar do turista. A street art, por exemplo, reflecte bem esse tipo de atitude. Ao intervir em muros e fachadas de tantos edifícios da capital, coloca-se a cidade nos roteiros internacionais de turismo artístico alternativo. Em contrapartida a street art serve, ao nível da intervenção urbana, de disfarce para distrair a atenção de situações problemáticas como a degradação do edificado.
© Fernando Aranda
Será que a “Re-arquitectura” ainda tem algum valor crítico hoje em dia, em termos de práticas de intervenção espacial e políticas urbanas? Existe em muitos destes espaços culturais alternativos que recorrem a estes tipos de práticas de re-arquitectura, usos eficazes e bem-intencionados, com preocupações que reflectem o desejo de participar, intervir e ajudar a (re)construir a cidade. Mas também há, por vezes, apropriações da estética e símbolos visuais de contra-culturas, de movimentos de resistência e lutas urbanas (que combatem formas de dominação espacial autoritárias, repressivas, intolerantes), que se revelam excessivas. Existe um desvio do conteúdo original desses símbolos, dessas referências visuais e espaciais, que pode ser detectado pelas condições de produção de lógica comercial dessas mesmas imagens e espaços (contra uma lógica de produção orgânica, participativa e transformativa).
Muitas das intervenções na cidade orientam-se pelas leis do lucro, segundo o arquitecto e crítico Manfredo Tafuri: “A ideologia arquitectónica, artística e urbana foi deixada apenas com a utopia da forma como maneira de recuperar a integralidade humana através de uma síntese ideal, como uma forma de abraçar a desordem através da ordem" (Architecture and Utopia – Design and Capitalist Development, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1976, pp. 46, 48). Encontramos essa “desordem” na zona do Cais do Sodré, no estado físico de determinadas pré-existências – no caso da Pensão Amor expressa na caixa de escadas, mas também na multiplicidade de velhos objectos e mobiliário espalhados pelo interior do edifício – ou no ambiente festivo dos espaços nocturnos que transborda portas-fora, e nas consequências provocadas na rua após uma noite louca (vidros de garrafas partidas, cheiros indesejados, desacatos, mobiliário urbano maltratado) 8. A “ordem”, em contrapartida, para além da existência de seguranças às portas dos bares e da presença de polícia na rua, está particularmente presente na própria concepção dos projectos: de forma vertical, projectada pelos colaboradores das empresas promotoras, e não de maneira espontânea e horizontal, desenvolvida ao longo do tempo pelos utilizadores, tal como o resultado final pode sugerir. A “ordem” encontra-se ainda presente no modo de implementação das esplanadas, ao longo da rua, com recurso à utilização de fitas separadoras, contribuindo para a crescente privatização do espaço público.
Going down, going underground? Será que, ao descer a colina, a celebração da cultura alternativa (artística, arquitectónica, musical) se deslocou, ou aconteceu apenas uma propagação do fenómeno de gentrificação e turistificação, acelerado e acentuado?
© Letícia Carmo
Uma das “imagens de marca” do Bairro Alto eram as fachadas “tagadas”, facilmente identificáveis em fotografias ou outro tipo de imagens. Ao passar pelo processo de limpeza (provocado pela gentrificação e turistificação), as paredes tornaram-se mais vulgares, como qualquer outra parede noutra parte da cidade, deixando de caracterizar o tão particular ambiente festivo, livre e espontâneo, do bairro. Em contrapartida, as paredes do Cais do Sodré e das mais recentes áreas de celebração de cultura nocturna “alternativa” não foram atacadas por tags rebeldes quando as do Bairro Alto deixaram de o ser – não tendo os serviços municipais permitido que os taggs durassem. Essas paredes, e o pavimento, passaram a ser coloridas por murais de artistas convidados, patrocinados por instituições e em particular por empresas, enquadradas em projectos de reabilitação e regeneração urbana definidos (ex.: áreas do Intendente e Alcântara).
Podemos concluir que a cultura “alternativa” – inspirada em estéticas revivalistas, artesanais e contra-culturais – se tornou hoje bastante apreciada e generalizada, passando a constituir parte significativa do ambiente urbano visual e construído. O seu sucesso encontra-se ligado às mudanças geográficas e económicas da cidade (e do mundo), o que estimulou a procura de soluções economicamente mais modestas e ecológicas, condicionadas pelas políticas de austeridade. No entanto, a essência do conteúdo rebelde e subversivo próprio a uma cultura alternativa foi mudando, tornando-se menos radical, passando a acompanhar também projectos de cariz mais comercial. ◊
© Letícia Carmo
Outra informação bibliográfica
Carmo, Letícia (2016), Resistance & Compromise – Spatial & Aesthetic approaches of Alternative Cultural Spaces in Lisbon, Ljubjana & Geneva, École Polytechnique Fédérale de Lausanne (disponível online em: https://infoscience.epfl.ch/record/223448).
Florida, Richard (2002). The rise of the creative class : and how it’s transforming work, leisure, community and everyday life. New York: Basic Books.
Landry, Charles (1995). The creative city: A toolkit for Urban Inovators. London: DemosOrganisation.
Landry, Charles (2006). The art of city-making. London: Earthscan.
Rainha, Luis, Mateus, J., Caetano, P., Pereira, R., Fernando, E., Jeremias, L., & Ramos de Almeida, N. (2000). Noites de Lisboa - atribulações, deambulações e outras confusões. Lisboa: Má Criação.
A dissertação “Resistance and Compromise: Spatial Aesthetics of Alternative Cultural Spaces in Lisbon, Ljubljana and Geneva” que desenvolveu, fez parte do projecto de investigação “Creative Cities and Counter-Cultures”, financiado pela Swiss National Science Foundation.