ENSAIO/OPINIÃO

Arquitecturas de Segundo Plano

O património da memória e do esquecimento

Por Lucinda Fonseca Correia
Arquitecta Artéria Arquitectura
"Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação."
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

Arquitectura é transformação. Arquitectura é interferência com a vida. Arquitectura é recordação e esquecimento. Arquitectura é permissão e interdição e por isso é fundamentalmente ordem. A Arquitectura torna-se “política” 1 na medida em que o seu exercício resulta da afinidade óbvia entre espaço e poder, de outro modo, não se legitimaria como uma profissão liberal de interesse público.

 

 

Rua Gomes Freire, Lisboa: à esquerda, “Escola Superior de Medicina Veterinária”, 1932; à direita, Direcção Nacional da Polícia Judiciária, 2017.
Fontes: Arquivo Municipal de Lisboa, Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian, Faculdade de Medicina Veterinária e autora
Rua Gomes Freire, Lisboa: à esquerda, “Escola Superior de Medicina Veterinária”, 1932; à direita, Direcção Nacional da Polícia Judiciária, 2017.
Fontes: Arquivo Municipal de Lisboa, Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian, Faculdade de Medicina Veterinária e autora

 

 

Uma arquitectura de risco

 

Num primeiro plano, a Arquitectura é a construção de um cenário onde o jogo cultural se desenrola, pois, em determinado sentido enquadra, fixa e torna significativa a vida e as relações humanas. Acresce que esse sentido depende sempre de um sistema de valores “culturais”. Sem Arquitectura certamente poríamos em causa a nossa identidade como protagonistas de uma ficção a que chamamos Mundo. Aliás, a Cultura faz isso mesmo: inventa o mundo como cenário 2. E ao inventá-lo dita os termos em que estamos aptos para lidar com ele. É compreensível, pois, que ofereçamos sempre resistência a qualquer alteração que ponha em causa a nossa identidade. Por outro lado, o que a Arquitectura faz é artificializar o espaço natural de modo a criar dispositivos que acolham a vida em sociedade. Todavia, a transformação do habitat natural em artificial já não se opera sem riscos 3. Tal facto, paradoxalmente, legitima e torna urgente uma revisão profunda dos termos em que aquele sistema de valores regula as nossas acções transformadoras sobre o mundo. A consciência do risco começou já a atormentar-nos. Subitamente, somos confrontados com a realidade dos factos: quando é que o efeito de estufa se torna irreversível?; quanto tempo falta para que a vida nos oceanos se extinga?; o que resta da água potável no mundo?; como é que se detectam definitivamente os sintomas da ocorrência de um colapso geral, nos sistemas de suporte da vida no planeta? Temos todos noção disto mas “olimpicamente” ignoramo-lo.

 

Ainda que não queiramos admiti-lo, não estará também, por analogia (e cumplicidade) a Arquitectura a “colapsar”? E esse colapso dar-se-á no sentido desta deixar de cumprir o seu objectivo essencial: hospedar a Humanidade. Já sabemos o que custa ao Ambiente construir, transformar e manter o parque habitacional terrestre. De facto, esses cálculos estão feitos: no final de cada ano constatamos que gastámos quase o dobro dos recursos produzidos pelo planeta, durante esse mesmo período 4. Nestes dados estão incluídos os efeitos da actividade construtiva humana, onde se inclui também a Arquitectura. Assim, por uma questão de justiça, os arquitectos devem pois sentar-se no divã do terapeuta e rever os passos da sua carreira dos últimos 200 anos. E para fazê-lo é necessário estabelecer critérios, à luz dos quais poderá ser levada a cabo uma auto-análise útil para os negócios do mundo. Todos aguardamos respostas, receitas, revelações, iluminações, como curto-circuitos de um raciocínio que tarda a emergir por entre os devaneios quotidianos que, fundamentalmente, enfatizam a “criatividade” ilimitada dos arquitectos (e outros projectistas). No entanto, este paradoxo só se desfará se esse exame crítico do passado for honesto, franco e desinteressado. 

 

 

O valor da memória

 

Para além das questões ambientais, no sentido amplo do termo, a necessidade de manutenção desse cenário dita, em segundo plano, a lógica dos “critérios” de quem intervém no construído, pretendendo consertar o velho. Aqui inscreve-se, com toda a propriedade, a ideia de intervenção no património. Em primeiro lugar, porque se trata concretamente de um património que não se pode transformar a todo o custo ou sobretudo à custa da nossa memória. Em segundo lugar, porque o efeito pedagógico da manutenção desse património deve suplantar quaisquer vantagens económicas ou políticas. 

 

E, porque nos interessa defender o património? Como suporte privilegiado da memória colectiva, o património veicula aspectos essenciais da nossa identidade. Daí também valer para a Arquitectura a ideia de monumento 5 enquanto receptáculo daquilo que é digno ser lembrado.

 

Por outro lado, não devemos esquecer que os edifícios antigos, com qualidade, não morrem – apenas parecem resistir aos usos, tantas vezes insensíveis e ignorantes que lhes foram impostos pelos diferentes tempos. Trata-se então de gerir modos de habitar? Sejamos precisos: como é que costumamos prevenir um “mau” uso, ou seja, aquilo que consideramos ser uma utilização indevida de um edifício com carácter? 

 

Partimos do princípio segundo o qual um edifício com “carácter” é aquele que soube preservar, com grande clareza, uma memória institucional 6. Isto acontece tornando os edifícios inacessíveis ao uso – musealizando-os – ou, pelo contrário, tornando-os acessíveis a um novo uso. Só o facto de lhes alterarmos a função e de os reformarmos como se se tratassem de objectos obsoletos que apenas merecem renascer como partes de outros dispositivos mais “actuais” ou, ainda, de lhes acoplarmos novos arranjos construídos onde ganham o estatuto de espectáculo gratuito, aquilo a que amiúde se chama “fachadismo”, demonstra quão equívoca é a nossa relação com o “património”. As intervenções com “manutenção das fachadas” deverão ser encaradas como um embalsamamento dos edifícios, já que ao desmiolar o objecto, retira-se-lhe a lógica da sua concepção e as qualidades que deram sentido à obra. O interior existe sempre numa relação dialética com o exterior que cada cultura explora a partir da oposição entre o privado e público. É um processo muito complexo e só irresponsavelmente, poderá ser considerado de ânimo leve.

 

 

Pedagogias do património

 

A delicadeza das intervenções no património exige que politicamente se promovam discussões públicas ou se lancem concursos garantindo a isenção da escolha de soluções adequadas, de acordo com as boas práticas. O próprio conceito de concurso para intervenção no património pretende garantir a qualidade do gesto interventivo, como se o arquitecto – tantas vezes considerado um “demiurgo” e/ou profissional de renome – pela sua intervenção pudesse “santificar” um eventual crime – o da destruição do património. Isto porque as memórias das quais o património é portador, de um modo geral, perdem-se a cada nova “re-novação”. E os arquitectos sabem-no... Não nos iludamos, os concursos fazem parte do esquema geral do exercício do poder. Trata-se sobretudo de uma questão ideológica, para além das idiossincracias dos projectistas concorrentes. Neste contexto, para sermos rigorosos, quem destrói o património é quem estabelece os critérios do concurso, bem como o júri que os aplica. Porque, na verdade, um concurso é algo de muito abstracto pois não há uma metodologia universalmente aplicável à conservação ou à substituição das memórias. Podemos considerar que é sempre uma escolha entre manutenção e supressão, pois a Arquitectura, mais do que a palavra escrita ou a imagem, é o melhor receptáculo da memória. 

 

A célebre frase de Churchill, nós formamos os edifícios e depois eles formam-nos a nós 7, não fará definitivamente sentido? É que os gostos e as circunstâncias políticas são contingentes. É que a moda do reconhecimento público de um profissional é sempre transitória. É que o “espectáculo” da Arquitectura não é um verdadeiro espectáculo. O gesto interventivo pode apagar, e habitualmente apaga, aquilo que demorou séculos e dezenas de gerações a construir. Quem somos para pôr em causa a pedagogia de uma certa forma de memória colectiva que a cidade nos deverá oferecer? Poder-se-á sempre objectar que os tempos mudam e é necessário actualizar os dispositivos de uso, é verdade. Todavia, se essa “actualização” não surge espontaneamente, de acordo com a vida dos actores da cena urbana, mas, pelo contrário, através da vontade e interesses dos decisores políticos aquilo que se pode obter é um resultado que, só por milagre, não redundará em algo de artificial e desequilibrado. 

 

 

O arquitectura e o seu público

 

A sistematização dos saberes, das formas e dos modos de fazer tem uma utilidade limitada. A Arquitectura não é puramente forma, não é algo de autónomo, de isolado, de conceptual que vale pela impressão estética que nos causa ou pelo desafio técnico que parece representar. A Arquitectura não é um jogo. A Arquitectura é, no mínimo, a hipótese de sobrevivência de uma comunidade num espaço que lhe é próprio. Relembremo-lo: institui ordem; impõe usos e suporta uma Cultura. Isso, obviamente, não quer dizer que não evolua. E que as formas não são apenas o resultado da lógica de operações construtivas. Tudo o que o homem produz tem um qualquer antecedente. Se não houver melhor fundamentação para as formas, só o facto destas remeterem para algo que deve ser relembrado ou comemorado parece já ser suficiente. E esse será o modo de mantermos presentes os princípios de um determinado sistema de valores que nos interessa ver reconhecido ou actualizado 8. A legislação deveria garanti-lo e, ironicamente, a discricionariedade política proíbe ou autoriza vários olhares técnicos sobre o mesmo objecto. Em tudo isto parece legitimar-se uma permissividade ilimitada (ou limitada a certos interesses). Mas, quem é o público da Arquitectura? Os arquitectos, eles próprios, os clientes/promotores ou as pessoas/utilizadores? 9

 

É urgente desmontar este mito de colecção de formas, de conteúdos ou de meras intenções, isto é, respectivamente, de simbologias, de sociologias ou de pseudo-psicologias 10 que modelou a cultura arquitectónica e que se tornou apanágio do século XVIII, quando se “re-organiza” o Mundo a partir de um saber enciclopédico, que durou até aos nossos dias. Ainda que a Arquitectura ingenuamente 11 coleccione modos de responder formalmente às complexas variações dos usos e das práticas espaciais, em cada tempo, mesmo com a aprovação embevecida da “intelligentsia”, não se faz Arquitectura contra as pessoas. Terá a Arquitectura chegado a um beco sem saída? ◊