CRÍTICA
À grande e à francesa
das coberturas em mansarda às fachadas amansardadas da cidade contemporânea
Arquitecto e investigador de Doutoramento na FAUP
Nos últimos anos, as intervenções de reabilitação nas zonas consolidadas das cidades portuguesas têm transformado a mansarda em zinco camarinha numa verdadeira moda arquitectónica. Uma das chaves para o seu sucesso reside na sua escassa regulamentação. O PDM do Porto baliza as alturas dos edifícios pela ‘moda da cércea’ 1, cuja definição contabiliza a altura até ao beirado incluindo pisos recuados, mas é omisso quanto a mansardas e aproveitamentos do telhado, que são considerados espaços técnicos 2. Já o PDM de Lisboa advoga abertamente a alteração da configuração geral da cobertura para a criação da mansardas, como forma de promover a compactação da cidade 3. De qualquer forma, tanto no Porto como em Lisboa, é imposto que os recuados, como mansardas e sótãos, estejam «contido[s] nos planos a 45 graus passando pelas linhas superiores de todas as fachadas do edifício [e] não ultrapasse[m] 3,5 metros acima da altura máxima da fachada admitida» 4. Esta promoção da mansarda levou a que tenhamos assistido à adopção desta tipologia em inúmeros edifícios e à aplicação desta receita mesmo em prédios do terceiro quartel do séc. XX com cobertura plana, até como forma de legalizar o volume de recuados ilegais. É que, enquanto os recuados só são admitidos «quando tal seja dominante nessa frente urbana ou sirva de colmatação à empena existente», as mansardas podem ser aplicadas em qualquer circunstância, o que lhes garante à partida sucesso. A CMP reconhece que este é um problema já identificado e que terá de ser objecto de análise no âmbito da revisão do PDM.
Mas mais do que esmiuçar os subterfúgios que permitem tornar habitável espaços que não constituem área bruta da construção, importaria chegar a uma primeira constatação importante: muitas das mansardas a que encontramos nas novas obras de reabilitação em Lisboa e no Porto não se inscrevem no plano de 45º nem num máximo de 3,5 metros acima da cércea máxima permitida. Não são, por isso, coberturas em mansarda ao nível técnico-regulamentar do PDM. São, na verdade, novas fachadas amansardadas 5 que surgem não como subterfúgio para o aproveitamento do desvão do telhado, mas antes como a fórmula encontrada no estirador dos arquitectos para tentar ‘harmonizar’ a fachada com o aumento de dois ou três pisos permitido pelas ‘modas das cérceas’ onde se encaixam novos apartamentos ou quartos de hotel.
As mansardas: de Paris para Portugal
A mansarda consiste num tipo de cobertura que permite o aproveitamento do vão do telhado para um ou mais pisos habitáveis, é geralmente composta por duas pendentes em cada água, sendo a perimetral mais inclinada, quase vertical. À sua estrutura mais ligeira corresponde também um revestimento diferente, geralmente em ardósia ou em zinco, o que a destaca formal e cromaticamente da fachada do edifício. Os espaços interiores são iluminados e ventilados graças a fenestrações verticais salientes colocadas na parte mais inclinada – compondo ‘lucarnas’ ou ‘trapeiras’ – e a janelas complanares com a cobertura na pendente normal – as ‘janelas de sótão’ ou ‘clarabóias’. Esta solução foi popularizada por François Mansard (1598-1666) – com obras como o Château de Maisons-Laffitte (1630-1651) – e pelo seu sobrinho-neto Jules Hardoin-Mansard (1646-1708), o arquitecto de Louis XIV, adaptando tipologias de coberturas com pendentes muito inclinadas, em Paris 6 e em vários edifícios medievais europeus, sobretudo do período Gótico.
A popularidade e o interesse da mansarda está ligada à conjugação de dois aspectos fundamentais: o seu appeal formal, associado à arquitectura francesa do Segundo Império e ao reinado de Napoleão III (1852-70) como forma de uniformização das construções; e o modo engenhoso como permite aproveitar o telhado para criar pisos adicionais, protegendo os seus ocupantes tanto dos agentes atmosféricos como dos impostos municipais. Com efeito, no período de Mansard, a cidade de Paris assistia a um grande crescimento e a regulação da altura dos edifícios era definida pela altura do beirado 7, sendo totalmente omissa quanto ao telhado. Isso permitiu a popularização desta forma de prolongamento dos edifícios quase na vertical para além do beirado, com alguns riscos. As mansardas eram então espaços pouco salubres, ocupados pelos mais pobres, pelos marginais e pelos artistas.
Desenho de Bertall gravado por Laville, gravura publicada em Le Diable à Paris, Paris et les Parisiens (revue comique, Jules Hetzel éditeur, 1845) e retomado em L’Illustration de 11.01.1845 (p. 293) com o título Les cinq étages du monde parisien.
As legislações seguintes (1783-84) 8 porém – que vincularam pela primeira vez a altura do edifício à largura da via – impuseram uma inclinação máxima de 45º para as construções acima do beirado, até um limite de cerca de 5 metros, como forma de controlar estas construções por vezes inestéticas e invariavelmente precárias. Esta regulamentação, que vigorou em Paris durante 100 anos, corresponde muito aproximadamente àquela actualmente definida em Lisboa e no Porto.
No século XIX, a cidade de Paris regista um enorme crescimento demográfico e a população duplica em 50 anos, ultrapassando o milhão de habitantes. E os regulamentos do prefeito Haussmann (1859) elevaram a altura até ao beirado para um máximo de 20 metros nos novos boulevards. Para além disso, impuseram critérios uniformizadores ao nível do alinhamento dos elementos de fachada e da escolha dos materiais, o que tornou a mansarda em zinco numa invariante. Desenvolvida na Bélgica desde o início do séc. XIX, a chapa de zinco é um material fácil de trabalhar, duradouro e eficaz na impermeabilização – o que melhorou as condições de habitabilidade dos espaços –, para além de ter um peso muito inferior à telha e à ardósia. Apesar de inicialmente mantida, a imposição dos 45º foi substituída por um tramo de arco em 1884, o que permitiu voltar às mansardas compostas por pisos quase na vertical. As populares Exposições Universais em Paris em 1855 e 1867 terão seguramente contribuído para que a mansarda – vista como um símbolo da ‘modernidade’ – se disseminasse tão rapidamente em outros países europeus e, até, nos Estados Unidos.
No Porto, esta tipologia de cobertura teve uma presença muito circunscrita às intervenções na esquina do século XIX para o XX, de marcada influência francesa. É assim natural que na centenária Avenida dos Aliados, de inspiração Beaux-Arts, encontremos vários edifícios – incluindo o da Câmara Municipal – com o piso de remate acima do nível do beirado, composto por grande inclinação, revestido a ardósia e com trapeiras. Já no resto do tecido abundam pisos recuados – construídos em tabique e revestidos a chapa metálica ondulada – e águas-furtadas, que iluminam os sótãos ‘à portuguesa’, com a sua cobertura de telha e moderada inclinação.
Situação um pouco diferente regista-se em Lisboa onde, nos desenhos para as fachadas da Baixa Pombalina de Eugénio dos Santos (1758), para além das inúmeras trapeiras introduzidas para aproveitamento do sótão, já se previam excepcionalmente soluções de mansarda em algumas ruas e praças importantes 9. E esse facto estará seguramente na génese das inúmeras substituições de sótãos por mansardas, por vezes com vários pisos, entre as alterações que os edifícios da Baixa foram sofrendo sobretudo nos séculos XIX e XX. No revestimento destas mansardas é, contudo, utilizada a telha de canudo, pregadas às ripas e fasquias devido à elevada inclinação. Apenas nos edifícios burgueses de influência francesa se encontram mansardas à la Mansard.
Dos aumentos de volume às fachadas amansardadas
É fácil compreender que, no decurso de uma intervenção de reabilitação, seja tentador aumentar o número de pisos e o volume dos edifícios existentes. Do ponto de vista do investidor, isso permite criar mais espaço útil e maximizar o lucro da operação económica para uma mesma área de terreno e, da perspectiva do regulador, essa escolha promove a ‘densificação’ – um dos postulados da regeneração urbana – e introduzir, em função dos casos, uma regularização das cérceas.
No entanto, essa opção colide com o respeito pela escala do edifício pré-existente e a própria tipologia do mesmo, do qual – de forma controversa – tem havido a tendência a resumir apenas à fachada. Mas é fácil de compreender que, a um “património de fachada,” deveria corresponder, de forma muito aproximada, um “património de volume.” E, com efeito, inúmeras intervenções denunciam a grande dificuldade que constitui a compatibilização da vontade de alcançar a altura da construção vizinha com uma pré-existência muito mais baixa. A sua conjugação é difícil até mesmo em Filosofia, onde apenas o ‘aufhebung’ da dialéctica Hegeliana permitiu juntar numa mesma ideia e numa mesma palavra – graças à construção aditiva de palavras da língua germânica – dois conceitos tão contraditórios como o de ‘preservar’ e o de ‘ultrapassar’ ou ‘transcender’. A sua tradução para outras línguas fixa-se, geralmente, em ‘sublimação’ ou ‘elevação’ e deveria transmitir uma ideia de síntese, que é exactamente o contrário daquilo que encontramos em inúmeras arquitecturas que ‘preservam’ edifícios pré-existentes, ‘ultrapassando’ a sua volumetria de forma radical, sobretudo em Lisboa – da Av. da Liberdade à Av. da República ou à Rua Castilho – mas também no Porto – em edifícios da Av. da Boavista e da Rua de Nossa Sr.ª de Fátima ou no shopping de Santa Catarina. Edificado corrente ou palacetes de importantes arquitectos como Ventura Terra vêem-se assim reduzidos a uma fachada, sendo-lhes o volume aumentado dramaticamente, em total ruptura, a maioria das vezes com curtain-wall.
Não quer isto dizer que não seja possível fazer coexistir duas linguagens distintas num mesmo plano de fachada. Para recorrer a um exemplo clássico, o alçado do celebrado edifício na Michaelerplatz em Viena (1909-11), de Adolf Loos – uma das primeiras construções modernas implantadas no centro da cidade consolidada 10 – procura precisamente a síntese de duas linguagens e dois tempos distintos. Apesar de não ter pré-existência, Loos adopta um projecto ‘clássico’ para os pisos de comércio – em mármore e com colunas em diálogo com neoclássico das galerias adjacentes – e um “moderno” depurado para os pisos superiores de habitação em reboco. No entanto, aquilo que os exemplos acima ilustrados demonstram é algo de bem diferente. É a assunção da falácia da ‘reabilitação’ com uma arquitectura de Las Vegas, uma paródia da pré-existência reduzida não apenas ao papel irrelevante da fachada mas à função de ‘saia’ ou ‘avental,’ para recorrer às metáforas indumentárias tão caras a Adolf Loos. Nestes casos – que são vendidos como a retórica do ‘diálogo entre o contemporâneo e o antigo’ – estou certo de que é preferível eliminar completamente o pré-existente a prestá-lo a tal vexame.
E talvez tenham sido estes exemplos mais agressivos a ajudar a transformação da imagem da mansarda parisiense num neo-standard da resolução linguística deste problema arquitectónico. Como vemos na fig. 1, há soluções que resultam melhor, outras menos bem. Não temos aqui espaço para analisar cada um destes casos e discutir se outras soluções teriam sido preferíveis. No entanto, convidamos o leitor a percorrer as candidaturas ao Prémio Nacional de Reabilitação Urbana para encontrar muitas outras mansardas de inspiração francesa, bem como alternativas, umas mais integradas, outras mais afirmativas, que apontam caminhos para não cair nesta hegemonia.
Porém, registemos como as mansardas e a ‘estética do acrescento’ surgem com grande pujança. Trata-se de uma opção que, no fundo, acaba por não surpreender. Ao arquitecto, ela oferece a possibilidade de distinguir a parte nova da intervenção, com uma linguagem dotada de uma certa contemporaneidade que lhe permite fugir ao vernacular e ao ‘pastiche.’ Ao legislador ela oferece a segurança de uma escolha aparentemente radicada na História o que, à luz dos exemplos anteriores, permite a ilusão de uma intervenção ‘cuidadosa’ ou ‘suave’. E, para o público em geral, correspondem a um imaginário de luxo que lhes granjeia um notável sucesso. Com efeito, se na Paris de Haussmann eram as classes mais baixas que as habitavam, os elevadores tornaram os últimos pisos os mais desejáveis, já que oferecem vistas, luz e sossego.
Três exemplos no Porto
Esta pervasividade da mansarda e da ‘estética do acrescento’ nas intervenções recentes de reabilitação não deixa, no entanto, de ser perversa e sintomática de uma caricatura que acabou por convencer muitos, incluindo arquitectos, legisladores e promotores. Avanço alguns exemplos na cidade do Porto que, apesar de tardios face aos desenvolvimentos da capital, têm ilustrado distintas versões desta caricatura.
O primeiro é um edifício na Rua Sá de Noronha, junto ao Largo do Moinho de Vento. Um solar classificado do século XVII, com apenas dois pisos em deplorável estado de conservação foi transformado e aumentado pela SRU em 2009 no âmbito da intervenção Pátio Luso. O edifício passou a cinco pisos, nos quais os inferiores recriam a fachada do antigo solar e os superiores, desfasados entre si, são revestidos a camarinha de zinco na evocação de uma imagem entre a mansarda francesa e o acrescento recuado portuense de forma tão sui generis quanto as varandas ao nível do segundo andar sem qualquer tipo de acesso.
O segundo é o Palácio da Batalha (séc. XVIII), contíguo ao Cinema homónimo na Praça com o mesmo nome. O edifício serviu de hospital durante o Cerco do Porto, de CTT no princípio do séc. XX e estava destinado a acolher a Loja do Cidadão segundo os desígnios do Porto 2001. Contudo, em 2014, a sua transformação deu-lhe a função de hotel que, para além de ter transformado a mezzanine do primeiro andar num piso intermédio, substituiu o sótão com trapeiras numa ‘mansarda’ de dois pisos, com uma inclinação forçadíssima, quase alpina, para alcançar a altura do gaveto em frente, datado dos anos 1970. Não deixa de ser intrigante o facto da altura de referência ser os 6 pisos do edifício do outro lado da Rua de Entreparedes e não a do Cinema contíguo, classificado como Monumento de Interesse Público.
O terceiro exemplo é o edifício do Café A Brasileira, na Rua de Sá da Bandeira actualmente em curso de transformação em hotel. O edifício era composto por 5 pisos: rés-do-chão, três pisos e um recuado com cobertura plana. Graças à ‘moda da cércea’ e ao alargamento da rua naquele ponto, o edifício conseguiu aumentar dois pisos, passando a ter rés-do-chão, quatro intermédios e um recuado de dois pisos amansardado. Se é de saudar o cuidado em distribuir o aumento pelos diferentes corpos, de forma a dissimular a sua presença, não deixa de surpreender a inovação tipológica de cruzar o típico recuado portuense com a mansarda parisiense.
Nota final
Como é natural, não pretendemos nem podemos dar uma resposta unívoca e generalizável à questão das mansardas, já que cada um dos exemplos referidos levanta especificidades próprias. Se alguns poderão ter qualidade no seu projecto, há os que sofrem de claros problemas de desenho, enquanto outros constituem aumentos de volume que não deveriam ser autorizados, pela forma como penalizam a escala e a tipologia do edifício pré-existente. Contudo, creio que é sintomático constatar que esta moda das mansardas resulta de uma decisão tomada no estirador com um carácter meramente formal que não encontra correspondência com uma tipologia específica de cobertura com enquadramento legal próprio. E, assim sendo, nos casos em que o edifício o permite, apeteceria ver uma maior desenvoltura na relação com a fachada pré-existente e um diálogo com maior continuidade, associado a um desenho mais fino e cuidado – através, por exemplo, dos elementos de fenestração, guardas, etc. – e não ao recurso apriorístico ao corte epistemológico imposto pelo modelo afrancesado.
Para concluir, deixo um exemplo que me parece particularmente eloquente. Contrariamente aos anteriores, que são casos isolados e em que a alternativa constitui um exercício de especulação, este é composto por duas casas ecléticas absolutamente idênticas na Calçada de Santo Amaro, em Lisboa, permitindo uma comparação directa. Os dois edifícios foram recentemente adquiridos e reabilitados para habitação permanente por dois arquitectos diferentes, um do Porto, outro de Lisboa. Perante a necessidade de dar uso ao vão do telhado, ambos o fizeram de forma contemporânea, porém radicalmente diferente. Deixo a análise e as conclusões à apreciação dos leitores. Távora sempre fez questão de ensinar que «em arquitectura, o contrário também é verdade.» Mas, na maioria das vezes, parece uma caricatura. ◊