CRÍTICA

Hard Rock Cafe Porto

A arquitectura do branding e a cidade turística

Por Rui Gilman
Arquitecto e Doutorando FAUP
Exterior do Hard Rock Cafe Porto (nota: o HRC pediu para não serem divulgadas imagens do interior nos meios de comunicação social até à abertura oficial, a qual deve acontecer antes do Verão 2017)
© Carlos Machado e Moura
Exterior do Hard Rock Cafe Porto (nota: o HRC pediu para não serem divulgadas imagens do interior nos meios de comunicação social até à abertura oficial, a qual deve acontecer antes do Verão 2017)
© Carlos Machado e Moura

 

 

I.

 

Entre capitais globais – como Londres ou Paris –, centros financeiros – como Doha ou Singapura —, pólos do jogo – como Las Vegas ou Macau –, paraísos fiscais – como a capital das Ilhas Caimão ou a Cidade do Panamá –, mecas estivais – como Cancún ou Marbella –, centros culturais – como Florença ou Cracóvia –, existem duas coisas em comum: turismo de massas e um Hard Rock Cafe. 

 

Com 6,8 milhões de visitantes em 2016, eleita em 2017 pela 3ª vez “Melhor Destino Europeu”, a cidade do Porto conta também agora com o seu próprio Hard Rock Cafe. 

Nascido em 1971, em Londres, internacionalizado a partir de 1982, propriedade duma tribo índia da Flórida desde 2007, o Hard Rock Cafe é hoje uma marca global com sede em Orlando. Do seu extenso portfólio constam um total de 191 empreendimentos (cafés, hotéis e casinos) em 54 países distintos.

Em Portugal, após o polémico processo que conduziu à abertura, em 2003, do primeiro franchise da marca no antigo cinema Condes em Lisboa 1, 2016 vê nascer o seu congênere portuense. 

 

A abertura do Hard Rock Cafe Porto confirma o “boom” turístico da cidade e do país, ao mesmo tempo que abre mais questões sobre o choque entre cultura global e cultura local, a conservação do património histórico e a sua adaptação aos ensejos do mercado, a fusão entre consumo e memória, os limites da exploração e capitalização da cultura, o peso do turismo na reabilitação urbana e a submissão da arquitectura ao marketing. 

 

 

II.

 

Atestando a complexidade do processo, estão envolvidos: dois clientes (Hard Rock Cafe International e promotores locais), dois gabinetes de arquitectura (Hrynkiewicz & Sons Architects –HiS– e Floret Arquitectura) e três cidades (Orlando, Gdansk e Porto). 

A primeira etapa passou pela identificação de um possível imóvel para albergar o espaço. Para tal, os promotores locais do franchise, sob supervisão da Hard Rock Cafe International, contactaram os Floret Arquitectura, gabinete com alto grau de experiência em reabilitação na cidade do Porto. Tendo como premissas principais uma localização nevrálgica e uma antiguidade que correspondesse à imagem turística da cidade, a opção acaba por recair num edifício do século XIX, situado na esquina entre Rua do Almada e a Rua Artur de Magalhães, perto da Avenida dos Aliados. 

 

O edifício havia albergado primeiramente uma dependência do Banco de Portugal e posteriormente uma companhia de seguros. Devoluto desde meados dos anos 90, o edifício foi totalmente remodelado pelo arquitecto Pedro Barbosa em 2011 e devolvido, dentro do possível, à traça original sob a lógica de “open space”. Foram recuperados os soalhos, as caixilharias, as molduras, os tectos e as clarabóias, assim como foi instalado um elevador e demolidos acrescentos mais modernos, mantendo-se o piso acrescentado recuado. Este último piso ficou destinado a habitação, enquanto o restante foi colocado no mercado enquanto espaço de escritórios. A crise de 2008-2011 veio ditar o insucesso do investimento.

 

Escolhido o imóvel em 2015, a concepção do projecto passa para as mãos dos polacos HiS (especializados em arquitectura lojista, lazer e design de interiores), colaboradores regulares da Hard Rock Cafe International, contando no seu portfólio com 6 projectos para este mesmo cliente. Cria-se assim uma cadeia circular que articula todas as partes envolvidas, em que o gabinete português desempenha um papel charneira, cabendo-lhe a adaptação e compatibilização do projecto (a obediência aos imperativos legislativos locais, a obtenção de licenciamentos, a indicação de fornecedores de materiais locais e a coordenação com as especialidades). 

 

O edifício manteve em larga medida as premissas originais. A estrutura de madeira original das lajes é mantida, reforçada apenas pontualmente com estrutura metálica devido ao aumento de carga, ditado pela pesada infraestrutura de AVAC que um espaço totalmente climatizado exige. As grandes alterações limitam-se à transformação da escada central em escada serviço, a criação duma nova escada que atravessa todos pisos e à criação de uma abertura na laje do primeiro piso permitindo uma vista panorâmica sobre o palco. 

 

 

III.

 

A lógica comercial do Hard Rock Cafe é a da “economia da experiência”, teorizada primeiramente no final dos anos 90 2, que defende a transformação da relação entre consumidor e marca através da transformação do acto de consumo numa interacção mnemónica, permitindo a cobrança da mais-valia desta. A marca complexifica-se, dilui-se e expande-se exponencial e infinitamente em consequência do diálogo interactivo com o consumidor. “Em resumo, a marca somos nós” e a memória, o produto. 

 

A mercantilização da memória, operada pelas marcas, assenta em dispositivos intelectuais que promovem, segundo John Urry, uma “dissolução de fronteiras, não apenas entre alta cultura e cultura popular, mas também entre diferentes formas de cultura, como turismo, arte, educação fotografia, televisão, música, desporto, consumo e arquitectura" 3

 

Na interacção com o património artístico, nomeadamente o arquitectónico, esta dissolução permite às marcas manipular e distorcer conceitos patrimoniais como o de autenticidade. O aparecimento e desaparecimento constante da dimensão “aurática” é, por exemplo, um contributo decisivo para um estado de ansiedade, confusão e frenesim para qual o consumo é o único paliativo. Como afirma Michael Sorkin, “na era da reprodução mecânica e da morte da aura, plágio e furto tornam-se irrelevantes e o significado do discurso arbitrário. O valor da marca pode apenas ser defendida, assim, por mais e mais cooptação” 4. O simultâneo fascínio pelo exótico e anseio pelo conforto do familiar fazem do turista o principal consumidor alvo 5 destas apropriações e da sua posterior devolução enquanto realidades encenadas. Cadeias como Hard Rock, Starbucks ou Planet Hollywood actuam como miniparques temáticos no seio dum parque temático maior, o da cidade turística 6.  

 

Assim, uma tentativa de crítica arquitectónica do Hard Rock Café Porto é apenas possível tomando este como uma sofisticada máquina da “economia da experiência”. Apenas à luz deste paradigma são entendíveis alguns dos aparentes paradoxos do projecto. Um exemplo é a aparente contradição entre o esforço de manter integralmente os tectos decorados e a despreocupada colocação da teia de focos de iluminação. Outro exemplo é a introdução, algo forçada e exagerada, de revestimento cerâmico (a imitar azulejo) para sublinhar o carácter local de um edifício local, por defeito já autêntico. Outros exemplos são o ruído visual provocado pelas portas serigrafadas, a profusão de ecrãs de TV e a talvez excessiva variedade da decoração exuberante que relega para segundo plano as vistas sobre a cidade. 

 

Paradoxalmente, a cada inconsistência projectual, a cada incoerência decorativa, a cada convívio friccionado entre novo e antigo, a “máquina” parece funcionar melhor, fazendo com que o “product” e o “placement” se reforcem mutuamente. Esta associação entre marca e arquitectura parece representar, tal como notado por Sorkin, “a porta para ressuscitação do estilo enquanto categoria de avaliação” 7. Estilo este cuja arbitrariedade pode apenas ser julgada por outra componente do sistema de marcas, a celebridade 8. E celebridades e relíquias de celebridades não faltam no Hard Rock Café, estão em cada parede. 

 

No Hard Rock Cafe Porto, muitas vezes, do peso da materialidade histórica do edifício parece restar apenas o invólucro. Este desaparecimento da velha materialidade, sólida e real, engolida por uma nova materialidade, evasiva e simulada, relembra-nos, tal como na remodelação que Rem Koolhaas fez no Illinois Institute of Technology 9, o crescimento de “um novo tipo arquitectura para um mundo em que o material e o histórico já não garantem nem autenticidade, nem o significado” 10. Na impossibilidade de contrariar estes fenómenos resta aos arquitectos salvaguardar a maior reversibilidade possível, aspecto no qual o Hard Rock Cafe Porto é exemplar.

 

Mas esta vacuidade de sentido e de ausência de materialidade não afecta apenas a arquitectura, ela contamina também a cidade e explica, em boa medida, a expansão e atracção da cultura das marcas. Estas, de facto, acabam por “introduzir uma certa ordem e coerência na realidade multiforme que nos rodeia” 11 pois “o poder cultural para criar uma imagem, para definir uma visão de uma cidade, tornou-se mais importante, à medida (…) que instituições tradicionais – quer classes sociais, quer partidos políticos – se têm tornado mecanismos menos relevantes para a expressão da identidade” 12. Assim, na ausência da política da polis, a cidade e a arquitectura encontram-se à mercê dos projectos estéticos privados de grandes corporações que impõem, tal como afirma Anna Klingmann, “(…) olhar paras as cidades não como uma silhueta urbana, ‘skyline’, mas como uma paisagem de marcas, ‘brandscape’, e os edifícios não como objectos mas como anúncios e destinos turísticos.” 13 É enfim, esta admirável nova visão da cidade e do património, decalcada dos processos de estetização e simplificação da linguagem preconizadas pelas marcas, que explica a ânsia de reduzir o espaço virtual da cidade a um slogan, a um logo ou a uma marca 14 – “I ♥ NY”, “I AMsterdam”, “PORTO.”– reduzindo também, consequentemente, o espaço da crítica desta. 

 

“O que torna, afinal, a publicidade tão superior à critíca? Não aquilo que o néon vermelho diz – mas sim o abrasador reflexo da poça no asfalto.” 15

 

 

Fotomontagem de Rui Gilman
Fotomontagem de Rui Gilman

 


 

 

Bibliografia

 

BENJAMIN, Walter, “This Space for Rent” in “One-Way Street, Selected Writings, Volume 1: 1913-1926”, Cambridge: Harvard University Press, 1996

 

BETSKY, Aaron, “La arquitectura del control de costes”, A+T “Nueva Materialidad I “, issue 23, A+T ediciones, 2004

 

CEREJO, José António, “Dez anos de confusões e suspeitas” in Público, 21 de Fevereiro de 2006

 

EVANS, Graeme, “Hard-Branding the Cultural City – From Prado to Prada”, International Journal of Urban and Regional Research, Volume 27.2, 2003

 

GIACHETTI, Daniel, “Hard Rock Café e marketing; il binómio di un sucesso mondiale”, Facolta Di Economia, Rimini, 2012

 

LUSA, agência, “Primeiro restaurante Hard Rock Café abre em junho em Lisboa” in Público, 17 de Abril de 2003

 

KLINGMANN, Anna, “Brandscapes”, MIT Press, Massachusetts, 2007

 

KOOLHAAS, Rem, “Delirious No More”, Wired Magazine, 6 de Janeiro de 2003 

 

PINE II, Joseph, GILMORE, James H., “Welcome to the experience economy”, Harvard Business Review July-August, 1998

 

SOLÀ-MORALES, Ignasi de, “Património Arquitectónico ou Parque Temática”, in “Territorios”, 2003

 

SORKIN, Michael, “Brandaid”, No. 17 / Design, Inc. Commodification: Collaboration and Resistance Essay

 

URRY, Urry, “The Tourist Gaze”, Sage, Londres, 2002