ENSAIO/OPINIÃO
Lisboa Histórica, Cidade Global*
As intervenções públicas de requalificação urbana, os discursos que as sustentam e as suas implicações
Arquitecta e Doutoranda ISCTE-IUL; Investigador em estudos urbanos
Um conjunto de projectos e obras de arquitectura recentes tem vindo a moldar o espaço urbano do centro de Lisboa. Desde o Cais do Sodré ao Terreiro do Paço, toda a área em frente ao Tejo se vê reconfigurada, abrindo-se ao rio e ao restante tecido urbano. O Campo das Cebolas, agora em obra, segui-los-à brevemente. Na Baixa, a Rua da Vitória foi coberta por um lajedo em Lioz amaciado, sinalizando a sua relevância actual na malha pombalina como atravessamento entre a estação de metropolitano e o novo elevador do Castelo. A Norte alargam-se passeios, plantam-se novas árvores, transformando a paisagem nas zonas da Avenida Fontes Pereira de Melo, da Praça Duque de Saldanha e da Avenida da República.
Passando pelos discursos que sustentam estas intervenções públicas de requalificação urbana, o texto vai abordar o modo como tomam parte de estratégias de tematização patrimonial e promoção internacional da cidade, contribuem para a valorização económica do solo, acabando por apoiar as actuais dinâmicas de segregação socio-espacial que pendem sobre Lisboa. Paralelamente vai atentar ao modo como estas estratégias, enfatizando a dimensão histórica da paisagem urbana agora requalificada, parecem assumir alguma continuidade com o modo como o Estado Novo usava o território. Com objectivos bem diferentes, é verdade; não é isso que aqui está em causa, antes o modo de operar sobre o tecido da cidade.
Regeneração urbana na cidade-marca. Uma vez mais a história como mote
Integradas num gesto maior que Fernando Medina, autarca de Lisboa, denomina de “esforço da Câmara Municipal de Lisboa na revitalização da cidade 1”, estas obras materializam espaços urbanos apresentados como expressão da responsabilidade social da CML, da sua contribuição para a valorização e dinamização do espaço público da cidade. São assim politicamente legitimadas como acções do município em prol de todos os habitantes quando, cremos, se constituem na verdade como fonte de legitimação simbólica das instituições políticas perante os cidadãos. Contribuem para a materialização de uma visão de cidade cosmopolita que oferece a sua singularidade, entretanto recodificada para assegurar o seu reconhecimento imediato a uma classe média internacional, como arena para vivências urbanas mais ou menos intensas, sejam elas culturais, de entretenimento, ou lazer. Participam desse aparato conceptual que explora a imagem de excepcionalidade da cidade, ao dotarem o tecido urbano de um capital simbólico, recorrendo não poucas vezes à evocação do passado como forma de o marcar com uma identidade reinventada.
Estas intervenções inserem-se então no contexto de regeneração urbana que, de um modo particular de organizar a cidade sob a égide do capitalismo tardio, tem vindo a transformar a paisagem material e humana das cidades, agora concebidas como marcas que competem entre si pela sedução de turistas e pela atenção do investimento financeiro internacional.
Mais ainda, convocam a dimensão patrimonial do ambiente urbano, enfatizando momentos heróicos da sua história, exibindo a singularidade da cultura popular que a caracteriza, como mais-valia nesta competição intercidades. Procuram com essa narrativa atribuir uma significação particular ao tecido da cidade: a de lugar excepcional que evoca a relação de quem o experiencia com uma história colectiva. Mesmo correndo o risco de focar um tema inabordável, levanta-se uma questão: não relembra este gesto aquele que os regimes autoritários na Europa do século XX operavam no território? Difere radicalmente o fim último. Se antes se servia uma ideologia nacionalista, serve-se agora a mercantilização da cidade. Concebe-se a sua tematização histórica como forma de encantar uma burguesia global e assim fomentar o movimento de capital financeiro.
Urge então atentar à articulação de discursos e práticas em que estão envolvidas estas obras, às suas significações e implicações, às geometrias de poder de que são inseparáveis.
Frente Ribeirinha: cenografia urbana para consumo global
Lê-se no Plano Geral de Intervenção para a Frente Ribeirinha de Lisboa que o seu principal objectivo é “a valorização da cidade de Lisboa no sentido de aumentar a sua competitividade enquanto cidade acolhedora de pessoas, actividades e investimento 2.” A estratégia apontada, fundada na ideia de devolver o Tejo a Lisboa e pressupondo para isso a transferência das infra-estruturas portuárias para longe do centro da cidade, consiste na reconstrução da margem que relaciona a cidade com o rio. Associa-se também a criação de uma marca que a torne reconhecível, “Lisboa, Tejo e Tudo”, e que simultaneamente a coloca num particular sistema de consumo, o do turismo. Concebida na sua totalidade como espaço que se diz público, garantirá uma relação visual ao restante tecido urbano; será palco de eventos culturais, desportivos e lúdicos, recinto comercial e de restauração, acolherá infra-estruturas de suporte ao turismo de cruzeiros 3. Este Plano expressa pois a ideia de construção de uma cenografia urbana pronta a ser consumida por uma classe média internacional que colecciona vivências urbanas, pelo turismo cultural que consome as urbes; e que espera ser desejada pelo investimento global. Sinal da desmaterialização das novas fontes de crescimento económico da cidade, deslocadas das actividades produtivas que sustentaram o crescimento em décadas anteriores, actualmente voltadas para a valorização do solo urbano e para as actividades que a podem promover. Atendendo à frágil situação económica da maior parte da população depois de anos de austeridade, torna-se assim imperioso à cidade neoliberal direccionar-se para uma burguesia global.
Ribeira das Naus: patrimonialização da paisagem urbana
O arranque do Plano fez-se na zona do centro de Lisboa, entre o Cais do Sodré e o Campo das Cebolas. Se a requalificação do Terreiro do Paço e do Cais do Sodré resultou de convites a Bruno Soares, as intervenções na Ribeira das Naus e no Campo das Cebolas resultaram de concursos públicos 4.
Veja-se a ‘nova’ Ribeira das Naus, inaugurada em Julho de 2014, tendo por perto a entrevista que João Gomes da Silva, um dos autores do projecto, deu a Alexandra Prado Coelho, para o jornal Público 5.
Escavando vestígios arqueológicos, tornando-os visíveis e colocando-os em tensão com a linguagem introduzida no desenho do espaço público, os arquitectos paisagistas João Nunes e João Gomes da Silva redefiniram a área entre o Terreiro do Paço e a Praça Europa, reinventando contemporaneamente o espaço da Ribeira das Naus a partir da revelação dos diferentes tempos que compõem aquele lugar. As margens foram realinhadas ganhando espaço ao rio, assim possibilitando a revelação da doca seca e do cais da Caldeira, este último retomado como um espelho de água ao sabor das marés do Tejo; o encontro com o rio faz-se com degraus largos em pedra, que se inclinam para ele, evocando a ideia de praia fluvial; num espaço que também é de circulação, criam-se condições para novas formas de vivenciar a margem. Sob este espaço, invisível, a maior central de bombagem da frente ribeirinha de Lisboa e o túnel do metropolitano.
Na entrevista a Alexandra Prado Coelho, João Gomes da Silva fala da relação de Lisboa com o rio, questionando a ideia disseminada de que Lisboa lhe tenha virado as costas, “Os lisboetas também trabalham nos portos (…) deslocavam-se aqui para trabalhar ou para comprar.” De facto, esta ideia tão difundida nas últimas décadas, ignora por completo a actividade portuária. Lisboa manteve sempre uma relação funcional com o Tejo e precisamente por causa dela se anulou essa outra, óptica, associada ao lazer.
O arquitecto relembra a Exposição do Mundo Português (1940) como momento inaugural desta encenação de situações e lugares para a contemplação do Tejo. “A exposição não é mais do que uma grande celebração do rio. Destruiu-se tecido urbano e industrial para construir um espaço de celebração, como aconteceu depois com a Expo-98.”
A reconfiguração da Ribeira das Naus inscreve-se nessa genealogia. As estruturas reveladas, sem valor funcional, assumem um processo de exposição que serve a construção de uma significação simbólica daquele pedaço de margem, evoca-se o passado, a história. Corresponde, no entanto, a uma diferente articulação das temporalidades inscritas no território. Recupera a memória do arsenal e das docas que ali estiveram presentes vários séculos, cuja obliteração aconteceu quando se rasgou a avenida tangente ao rio como concretização de uma ideia moderna da cidade, simultânea à deslocação do Arsenal para o Alfeite, por volta de 1940, e com ela a possibilidade de revoltas operárias no centro da cidade.
Ao longo da entrevista o arquitecto explora esta questão. Assumindo a memória e a história como instrumentos muito poderosos de reinvenção da paisagem urbana e da perspectivação do futuro, evocando o filósofo Giorgio Agamben e a noção de que a arqueologia será o único acesso possível ao presente, fala do modo como ao longo das épocas se tem maquinado a construção cultural do tecido urbano e sua valorização patrimonial para além de qualquer utilidade, enquanto lugar “capaz de activar a nossa relação com a comunidade, a história, a colectividade.” Refere-se uma vez mais às políticas do Estado Novo e ao modo ficcional como foi intervencionado o tecido urbano, ao serviço de uma ideologia; relembra que o Castelo de S. Jorge e Alfama, tal como os vemos hoje, são construções culturais dessa época.
A requalificação do tecido urbano pela evocação da sua história
Arriscamo-nos aqui a continuar essa analogia entre o modo como a cidade é usada pelo actual ímpeto de cosmopolitismo ligado à atracção de turismo e capital, consubstanciado na regeneração urbana, e a forma como foi usada pelas políticas culturais do Estado Novo, então com uma finalidade muito diferente, a da reinvenção artificiosa de uma identidade nacional à luz da sua ideologia.
Ambos são exemplos da requalificação do tecido urbano pela evocação da sua história.
Se no início da década de 40 do século XX se promovia assim o nacionalismo e, no contexto de uma guerra na Europa com a iminente invasão do país “à falta de exército e canhões, todo o passado de Portugal barrava a entrada 6”, na contemporaneidade a tematização histórica da cidade, que abarca não só o património mas também o ambiente, a comida, práticas culturais populares, inevitavelmente acaba por transformá-la em produto de consumo mercantil.
A recente candidatura da cidade a Património Mundial “Lisboa Histórica, Cidade Global” é epítome deste gesto. Enfatiza-se a singularidade da sua a paisagem urbana, apresentando-a como palimpsesto que entrelaça diferentes camadas materiais e imateriais “das influências dos diferentes povos e culturas que nela se cruzaram (…) testemunho excepcional da globalização iniciada pelos navegadores portugueses no século XV 7.” Recorre-se aos momentos “gloriosos” da história, à ideia de cruzamento de culturas, ambicionando a validação museológica da cidade que assim fomentará a sua imersão no consumo turístico. Com efeito, património e turismo operam de forma complementar; o segundo ditando as dinâmicas da classificação do primeiro; ambos emanando duma lógica neoliberal que hoje governa as cidades.
A relação entre a regeneração urbana e a desigualdade territorial
Por outro lado, ambos se querem constituir como espaços de representação institucional, lugares em que o aparato ideológico do Estado se quer ver reificado, desmentindo momentaneamente “a natureza assimétrica das relações sociais que governa e ao serviço das quais age 8.”
Facilmente se percebe isso no caso das políticas urbanas do Estado Novo, que através da reconstrução ficcionada de monumentos e construção de espaços urbanos simbólicos, coreografando um culto da memória orientado pela “história única” desenvolvida por António Ferro, prometiam o fortalecimento do Portugal moderno 9. É aparentemente mais difícil entender este actual “esforço de revitalização da cidade 10” por parte do município com enfoque nos espaços e equipamentos públicos, acessíveis a todos os habitantes, lugares “de que todos podem apropriar-se mas que não podem reclamar como propriedade 11,” como extensão material de uma ideologia. Mas atentando ao actual contexto económico e social pautado por uma intensa movimentação de capital global em direcção ao mercado imobiliário de Lisboa, em particular da habitação, e às implicações que traz à vida dos habitantes da cidade, começa-se a vislumbrar uma possível associação. Este movimento resulta da conjuntura internacional, mas também da intervenção do Estado, quer pela criação de programas de apoio ao investimento estrangeiro, concretizados no Regime Fiscal para Residentes Não Habituais e no Golden Visa Portugal (Visto de Residência para Investidores), quer pelo desenho e uso de instrumentos legais destinados à dinamização do mercado habitacional que facilitam o investimento privado em processos de regeneração urbana, como a Revisão ao Regime de Arrendamento Urbano 12 que introduz a liberalização deste mercado. Estas intervenções públicas no centro da cidade implicam uma valorização do espaço, não apenas no sentido da qualidade formal que se deseja atribuir-lhe através do desenho urbano, mas também no sentido mais prosaico da rentabilidade do solo. Sob a ilusão da construção de espaços capazes de “activar a nossa relação com a comunidade, a história, a colectividade 13,” este “esforço da Câmara Municipal de Lisboa na revitalização da cidade 14” esconde a desigualdade territorial que fomenta. Quantas pessoas se viram forçadas a sair das áreas centrais da cidade por não terem condições económicas para fazer face ao valor do arrendamento? Quem consegue comprar as habitações reabilitadas?
O que esta analogia expõe é o modo como o espaço urbano tem sido mobilizado como aparato ideológico através do qual o poder institucional produz e faz circular um conjunto de discursos, com significações e implicações específicas, para que sejam concretizados os interesses de uma classe dominante, mascarados de valores consensuais; tanto na cidade da ditadura como na cidade do capitalismo globalizante. ◊
* Nome da candidatura de Lisboa a Património Mundial