CRÍTICA

Reporting from the “Neighbourhood”

 

Por Luís Santiago Baptista
Arquitecto, curador e editor
Julho 2016

Em 18 de Janeiro deste ano, o jornal Público anunciava que Álvaro Siza seria o arquitecto apresentado na representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza de 2016. O anúncio da escolha do então Director-Geral das Artes Carlos Moura Carvalho era confirmada pelo então Ministro da Cultura João Soares. Circulando à boca fechada há alguns meses, a notícia era finalmente confirmada, bem como os nomes escolhidos para a curadoria dessa mesma representação. Os arquitectos Nuno Grande e Roberto Cremascoli podiam revelar finalmente as intenções e programa da sua proposta curatorial. 

 

Mas comecemos pelo statement do comissário geral da Bienal de Veneza de 2016, o chileno Alejandro Aravena. Prémio Pritzker deste ano, Aravena tem sido, não sem suficiente polémica, uma das figuras centrais na viragem social da arquitectura desde o início do milénio. Neste sentido, a edição deste ano, sob o mote Reporting from the Front, tinha como objectivo “alargar o campo das questões às quais a arquitectura é suposto responder, adicionando explicitamente às dimensões cultural e artística, que já estão no nosso horizonte,  aquelas que estão no limite do espectro social, político, económico e ambiental”. O comissário avançava assim com a demonstração da “melhoria da qualidade do ambiente construído”, através da apresentação de exemplos “onde a arquitectura fez, está a fazer e vai continuar a fazer diferença”. Voltaremos mais à frente a esta conjugação múltipla dos tempos verbais.

Inauguração do Pavilhão de Portugal na 15ª Bienal de Veneza © Paula Melâneo
Inauguração do Pavilhão de Portugal na 15ª Bienal de Veneza © Paula Melâneo
Álvaro Siza na inauguração de <i>Neighbourhood: Where Alvaro meets Aldo</i> © Paula Melâneo
Álvaro Siza na inauguração de Neighbourhood: Where Alvaro meets Aldo © Paula Melâneo

Conceito e contexto

Deparamo-nos logo à partida com um dilema na análise crítica da representação portuguesa deste ano em Veneza. Por onde começar? A história do ovo e da galinha vem-nos à mente. O que toma a precedência na proposta para o Pavilhão Português? Se foram as circunstâncias e condicionalismos da nossa representação, há que salientar a perspicácia dos curadores, embora correndo o risco de menorizar a intencionalidade da proposta curatorial. Se, pelo contrário, nos concentrarmos essencialmente no conceito da representação, como resposta ao tema lançado por Aravena, arriscamo-nos a enfraquecer a pertinência da estratégia seguida. A nossa dificuldade de análise revela, desde logo, que uma representação nacional em contexto internacional é, antes de tudo, uma negociação entre uma ideia curatorial e um horizonte de possibilidades, ou mais sucintamente, entre um conceito e um contexto. Neste âmbito, é preciso desde já dizer que a representação portuguesa foi a este nível brilhante. 

Avancemos então pelo contexto da representação portuguesa. O primeiro problema era inevitavelmente estrutural. A redução do orçamento da DGArtes para a participação portuguesa em Veneza tem sido uma das consequências da crise que o país tem atravessado nos últimos anos, tendo relevantes repercussões nas propostas curatoriais. Diga-se que a edição tripla do jornal Homeland da representação de 2014 se assumira já como uma resposta intencional a este problema. Por outro lado, a repetida ausência de um pavilhão nacional nos pólos centrais da exposição, seja o Arsenale, seja os Giardini, tem levado as representações nacionais para fora do epicentro da Bienal, com considerável perda de visibilidade dessas participações. Assinale-se a este nível que a instalação venturiana de Souto de Moura no Canal Grande em 2008 não deixou de ser uma resposta subtil a esta questão. Mas a agravar toda esta situação vinha ainda a proposta do comissário geral da última edição, Rem Koolhaas, de alargamento do tempo de vigência da exposição, que se manteve neste ano, multiplicando à partida os custos inerentes à extensão de qualquer arrendamento de espaço na cidade. Finalmente, todo o processo da representação em Veneza, iniciado com o convite aos curadores no Verão de 2015, atravessou as mudanças da situação política nacional, marcada pelas eleições legislativas de Outubro, que levaria à posse e queda imediata do governo e consequente constituição da dita “geringonça”. Com um clima político instável, um orçamento muito limitado e sem um espaço para o pavilhão, o desafio apresentado aos curadores parecia não ter solução possível. 

Perante este cenário, o conceito proposto por Grande e Cremascoli é incisivo e surpreendente. Este passava por apresentar a obra de Siza relacionada com o tema da habitação social. Mas a habitual consensualidade em volta de Siza, não deixava de levantar, em surdina, algumas vozes críticas. Mais uma vez Siza. De facto, o mais conceituado arquitecto português já recebera em 2002 o Leão de Ouro de Melhor Projecto da Bienal de Veneza, com o Museu Iberê Camargo em Porto Alegre, sendo-lhe atribuído dez anos mais tarde, em 2012, o Prémio de Carreira da Bienal. Por outro lado, Siza esteve presente na exposição central da selecção dos comissários gerais de cada edição em 1976, 1985, 1996, 2002, 2004, 2010, 2012 e 2014, bem como participado nas representações nacionais de 2010 e 2012. Siza e a Bienal de Veneza têm já uma longa história, passando por diversas fases e agraciações. Estamos na presença de um valor seguro, mantendo-nos na nossa área de conforto. Mas se esse recurso repetido é naturalmente questionável, porém, neste caso, como veremos, Siza torna-se incontornável. Será, na verdade, a chave para concretizar uma aparente missão impossível.

 

Ver Vídeo Neighbourhood: Where Alvaro meets Aldo, sobre a inauguração do Pavilhão de Portugal na 15ª Bienal de Veneza

 

O pavilhão na ruína

Se Siza está naturalmente dentro do radar da perspectiva proposta por Aravena,  o trabalho do arquitecto no âmbito da habitação social, trabalho esse com fortes repercussões internacionais, é historicamente indesmentível. Mas o golpe de génio dos curadores não está meramente na eleição da figura e do tema. Está acima de tudo na convocação do projecto que os liga a Veneza. De facto, um dos importantes projectos internacionais de habitação social construído por Siza, mesmo que tardia e parcialmente, localiza-se, nem mais nem menos, do que na Giudecca em Veneza. A trama da representação portuguesa estava assim lançada. Siza e Veneza tinham uma profícua história a contar, na qual a representação portuguesa na Bienal seria a charneira para o capítulo seguinte.

Desfiemos então a trama. O Eureka terá chegado com a localização do espaço da representação. A presença do edifício de Siza na Giudecca poderia superar a ausência de pavilhão nacional. A verdade é que o edifício se encontra só parcialmente construído, sendo que outra parte permanece inacabada desde a falência do empreiteiro. Pensar o pavilhão português nesta ruína anacrónica foi naturalmente o passo seguinte. O pavilhão assumiria uma abordagem site-specific, possibilitando o contacto dos visitantes não com as habituais representações de arquitectura, mas com uma obra real do arquitecto português.  O pavilhão proporcionaria assim uma experiência directa do edifício.

 

 

 

 

Mas, mais do que isso,  o pavilhão poderia também desempenhar um papel activo na conclusão da parte inacabada da obra e mesmo na construção da praça pública adjacente, que se encontra por enquanto entaipada. A ideia de utilizar uma representação nacional com objectivos de realização concreta não é propriamente nova entre nós. Lembre-se a presença portuguesa na Bienal de São Paulo de 2009, comissariada por Manuel Graça Dias, onde se pretendia construir cinco escolas noutros tantos países de expressão portuguesa em África, ou mesmo na anterior representação nacional na Bienal de Veneza, comissariada por Pedro Campos Costa, na qual se procurava chegar à implementação em Portugal das propostas apresentadas nas sucessivas edições do jornal em Veneza. Todos estes projectos ficariam todavia no papel, excepto, no caso de 2014, do projecto de Paulo Moreira para Matosinhos que parece estar a avançar. No entanto, na Giudecca, a coincidência do espaço do pavilhão com o espaço da obra, permite acalentar maiores esperanças de concretização do projecto. Refira-se que o anúncio recente, no Corriere della Sera de 29 de Junho, da possibilidade de Siza vir a construir um Pavilhão de Portugal permanente em Veneza, precisamente no bairro da Giudecca, vem claramente nesse sentido.

Porém, existe ainda outro aspecto relevante, relacionado com a forma de abordagem. Ao intitular a representação portuguesa de Neighbourhood, Grande e Cremascoli expandem o foco habitual do projecto para a sua apropriação. A visita ao pavilhão, e por consequência à obra de Siza, não seria meramente uma visita a um projecto de arquitectura, mas, mais precisamente, um convite à vivência do bairro, ao contacto com a “vizinhança”, mesmo que só de passagem. A Tavolata que marcou a inauguração do pavilhão, fazendo congregar à mesa os habitantes e os visitantes, incluindo a equipa do pavilhão português, os convidados e representantes da Bienal e as figuras políticas nacionais, procurou ser a óbvia manifestação dessa intenção. Sabemos do glamour normalmente associado às inaugurações, com todo o seu enquadramento institucional e politicamente correcto. Mas nesse confronto entre o mundo vivencial e o evento mediático, entre o mundano e o disciplinar, o acto performativo ganhava sentido, como promessa futura de melhoria efectiva do bairro.

 

Moradoras locais em <i>La Tavolata</i> © Paula Melâneo
Moradoras locais em La Tavolata © Paula Melâneo
<i>La Tavolata</i> © Nicolò Galeazzi
La Tavolata © Nicolò Galeazzi

 

A narrativa do encontro

Se os curadores já tinham autor, tema e pavilhão, dir-se-ia que faltava o argumento, uma narrativa que captasse a atenção e construísse o enredo. As coincidências manifestavam-se mais uma vez. Grande e Cremascoli decidem recuperar um acontecimento histórico singular da arquitectura contemporânea. O subtítulo da representação nacional, Where Alvaro meets Aldo, aludia então ao encontro dos arquitectos Siza e Rossi, colocando em paralelo as suas perspectivas sobre a intervenção na cidade, mais propriamente, nos centros históricos europeus. Não será por acaso que esse encontro se materialize em Veneza na década de oitenta, exactamente no processo que dá origem ao referido edifício de Siza na Giudecca no qual se instalaria agora o Pavilhão de Portugal. Neste sentido, os curadores basearam a sua proposta no concurso por convites para o plano do Campo di Marte na Giudecca, ganho por Siza em 1985. Curiosamente, um dos outros concorrentes era, nem mais nem menos, que Rossi. O encontro fora portanto real e em território disciplinar. Aproveita-se esse facto histórico para recuperar a história dos cruzamentos de Siza com Rossi, ou mesmo, como referem, entre a “Escola do Porto” e a “Escola de Veneza”, que passam sintomaticamente por Portugal logo após a revolução e pela Bienal de Veneza de 1976, mas também por Santiago de Compostela em 1975, e por Bogotá no início dos anos 80. 

Mas os factos biográficos desses contactos, não levam propriamente a um cruzamento das suas abordagens, a do italiano mais teórica a do português mais prática. O recurso recorrente a oposições pelos autores que escrevem nos fascículos fornecidos na exposição confirma-o: segundo Grande e Cremascoli, “mais subjectiva” e “(arque)típica” de Rossi, “mais poética” e “(hetero)típica” de Siza, ou, segundo Alberto Ferlenga, respectivamente, “mais literária” e “mais distanciada” do primeiro ou “mais artística” e “mais empenhada” do segundo. Pode-se dizer que o encontro, não sendo ausente de influências mútuas, não produz verdadeiramente uma contaminação ou síntese de ideias. As abordagens dos dois arquitectos, partilhando um profundo interesse pela cidade e pela história, são no essencial antinómicas. A verdade é que o interesse desse confronto pode ser lido nas suas diferentes propostas para o concurso da Giudecca, apresentadas documentalmente na exposição. Numa rede complexa de factos e acasos, a narrativa lançada por Grande e Cremascoli adquiria densidade e criava expectativa.

 

Esquisso do concurso
Esquisso do concurso
Esquisso do concurso
Esquisso do concurso

 

O encontro dos arquitectos na Giudecca antes e na Bienal agora reproduzia-se ainda noutro patamar. Where Alvaro meets Aldo, sub-título da representação portuguesa, tem múltiplas interpretações possíveis. De facto, o apoio do Centre Canadien d’Architecture foi aqui determinante, um outro encontro que junta o recente acolhimento de grande parte do arquivo de Siza com a presença nessa instituição do arquivo de Rossi. O CCA assumia assim o encontro de arquivos, cruzados na prática em Neighborhood. A visita de Siza a Montreal para ver o projecto de Rossi para a Giudecca, apresentado em filme na exposição, evidenciava isso mesmo. “Não existe melhor investigador para considerar Rossi e os seus edifícios”, refere o director do CCA Mirko Zardini. A representação portuguesa pressupunha também uma gestão inteligente e intencional da estrutura institucional existente.

 

 

O palco da acção

O plano vencedor do concurso integrava uma parcela extensa no interior da Giudecca que Siza estrutura através de dois eixos perpendiculares, sendo o longitudinal quebrado na sua intercepção. Apoiado na leitura de Venezia Minore de Egle Trincanato, o plano pressupunha uma leitura da lógica cadastral existente, propondo uma regra aberta de blocos paralelos de orientação Norte-Sul.  Ao longo da via quebrada Este-Oeste, um bloco perpendicular a Este, aquele onde agora se instalou o Pavilhão de Portugal, surge como excepção definindo uma praça interior, tal como uma sequência de blocos de desenho curvo, que encabeçariam a série de barras na zona oeste do plano, formaria um “campo” que romperia com a uniformidade da regra utilizada. A escala urbana contida do conjunto, o respeito pelas cérceas existentes, o desenho regrado das fachadas e a contenção material e construtiva revelavam uma abordagem sóbria mas afirmativa de actuação naquele lugar específico.

 

 

Desenho do concurso
Desenho do concurso
Desenho do concurso
Desenho do concurso

 

O projecto de Siza seria realizado parcialmente, concentrado na metade Este do plano. Curiosamente, o concurso pressupunha diversas fases, deixando em aberto a possibilidade de outros concorrentes desenharem alguns dos edifícios do plano. Seria o que viria a acontecer com a construção inicial dos edifícios projectados por Carlo Aymonino e, como não poderia deixar de ser, por Aldo Rossi, sendo que o de Rafael Moneo permanece até hoje em estudo prévio. Só mais tarde, já no novo milénio, se construiria o edifício em L projectado por Siza, concluído parcialmente em 2007, e em cuja parte inacabada, seria agora instalada a representação portuguesa. O desfasamento de quase duas décadas que atravessa o projecto de concurso (1985), o projecto do edifício (1995-97) e a construção da 1ª fase (2004-07) não implicaria no entanto grandes alterações, apenas o acerto pontual do desenho: das entradas, com a redução das áreas dos acessos colectivos e inclusão posterior de elevadores; das tipologias, com o abandono da flexibilidade proposta no concurso entre as áreas públicas e privadas dos apartamentos, então através do recurso a portas de correr; e das fachadas, com o desaparecimento dos vãos maiores previstos para as cozinhas nas fachadas posteriores. É de notar que a varanda de esquina no último piso – bem como as duas varandas no topo sul – que é um dos elementos marcantes do edifício, surgiria só na última fase do projecto, conseguindo dar um espaço exterior ao único apartamento de canto não servido pela galeria exterior corrida no último piso do edifício.

 

A circunscrição europeia

No entanto, a representação portuguesa não se limitou a Veneza. A verdade é que a escolha de Siza e a eleição do tema da habitação social ganha consistência quando colocada em paralelo com outros projectos desenvolvidos pelo arquitecto para outras geografias europeias. A verdade é que a resposta contextualizada de Siza só pode ser verdadeiramente compreendida, quando se confrontam os diferentes projectos para Veneza, Berlim, Haia e Porto, desenvolvidos desde o final da década de setenta e ao longo da década seguinte. Grande e Cremascoli mostram assim que a internacionalização de Siza, grandemente centrada no tema da habitação social, se faz com uma consideração profunda da especificidade dos lugares e das práticas sociais e culturais dos lugares onde o arquitecto intervém. É neste sentido que a convocação simultânea dos quatro projectos pode tornar-se um manifesto sobre a intervenção no território europeu. E num momento de crise da ideia de Europa, este não pode deixar de ser uma afirmação de grande significado.

 

Ver Projecto da Reestruturação do Campo di Marte na Giudecca, Veneza – Itália, de Álvaro Siza

Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi
Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi

 

É a partir destes cruzamentos de personagens, ideias e projectos que se materializa o Pavilhão de Portugal na expressiva obra inacabada da Giudecca. Os factos biográficos convocados e as coincidências históricas exploradas pelos curadores constituem o ponto de entrada na exposição. A primeira sala constrói a ligação entre Siza e Rossi através de documentação variada e de um vídeo com entrevistas. Where Alvaro meets Aldo apresenta, sem dúvida, um encontro fascinante, todavia a precisar futuramente de aprofundamento teórico. A ligação agora estabelecida não oculta a complexidade que lhe é inerente. 

 

 

Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi
Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi

 

As salas seguintes apresentam o projecto da Giudecca, seguidos dos projectos de Berlim, Haia e Porto. O dispositivo para apresentar os diferentes casos mostrou-se eficaz, uma maqueta de contextualização do projecto e dois vídeos projectados lado a lado, um com o ponto de vista do projecto, outro com o da apropriação. Se o primeiro é relativamente conhecido, o segundo, o da recepção da obra, expunha uma perspectiva menos comum. Construído como uma série de quatro programas de televisão, coordenados por Cândida Pinto, e já exibidos em Portugal, estes filmes mostram a visita recente de Siza aos bairros por si projectados há décadas atrás. Os programas são fortes, mostrando o contacto sem rede do arquitecto com os habitantes. Porém, o mais interessante será o confronto de tempos que nos apresentam, entre um tempo de projecto numa Europa em crescimento nos anos 80, onde novos problemas se colocavam, como o caso das comunidades imigrantes, e um tempo de vivência actual, onde essas questões se tornaram prementes. É num certo sentido a própria evolução da Europa nas últimas décadas que podemos perceber como subtexto destes programas. Mas também nos mostra as mudanças no papel da arquitectura na sociedade, acima de tudo a rarefacção da promoção pública de habitação social.

 

Still de "Vizinhos" de Cândida Pinto – Bairro da Bouça, Porto: Maria Amélia e José Castro
Still de "Vizinhos" de Cândida Pinto – Bairro da Bouça, Porto: Maria Amélia e José Castro

 

Por outro lado, os documentários levam-nos para o campo dos afectos e das emoções. O diálogo entre Siza e os habitantes é em muitos momentos comovente. A presença espectral de Siza corre, no entanto, um certo risco de mistificação, que diga-se o próprio arquitecto sempre se esforçou de evitar. Sabemos da visão cautelosa e desapaixonada de Siza sobre o tema da participação. Sabemos também da incredulidade e desconforto de Siza perante a sua classificação nesse período como arquitecto de vertente social. Sabemos ainda da sua defesa da autonomia disciplinar. Neighborhood não é um pretenso manifesto sobre arquitectura participativa. É, acima de tudo, sobre a visita de Siza às suas obras, e da sua perspicaz leitura do mundo actual através da evolução desses bairros por si projectados. No entanto, os tapumes em volta do lote que circunscrevem o pavilhão na Giudecca, com fotografias de grandes dimensões do encontro de Siza com os habitantes, não deixava, mesmo que inadvertidamente, de se prestar a esse equívoco.

Exterior do Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi
Exterior do Pavilhão de Portugal © Nicolò Galeazzi

 

Memória e a ausência

Confesso que pensei sinceramente que o Pavilhão de Portugal seria premiado nesta edição. Não que não existisse concorrência de peso, como os casos dos surpreendentes pavilhões dos Países Bálticos, da Alemanha ou da Grã-Bretanha, todos refira-se igualmente não premiados. Mas aquilo que nos pareceu fundamental na representação portuguesa, poderá ter sido precisamente aquilo que afastou Portugal dos Leões deste ano. Com uma consistência e singularidade invulgares, a nossa representação chamava a atenção para um conjunto de questões prementes na Europa de hoje. A problemática da habitação social, a multiculturalidade da sociedade contemporânea e as migrações e fluxos que atravessam o território europeu são, no seu conjunto, temas hoje inultrapassáveis. Mas a Bienal de Aravena é essencialmente sobre arquitectos e projectos de arquitectura. Reporting from the Front é, pela própria definição do seu título, uma convocação de exemplos actuais. 

Retomemos a meada do início deste texto, onde Aravena afirmava que estes seriam casos de estudo “onde a arquitectura fez, está a fazer e vai continuar a fazer diferença”. No entanto, esta abertura dos tempos verbais não se revelou propriamente neste Reporting from the Front. O foco no presente desta Bienal, na verdade na generalidade destes grandes eventos disciplinares, acaba por ofuscar essa relação estrutural entre passado, presente e futuro.

 

A verdade é que Neighbourhood não se apresenta como uma mera afirmação (do presente) ou celebração (do passado). Lança acima de tudo uma interrogação (sobre o futuro). Por isso, tem que olhar o presente convocando o passado. O resultado é uma participação que não nos apresentando propriamente soluções nos faz reflectir seriamente, a partir de diversos momentos históricos e diferentes contextos urbanos.

 

A participação portuguesa toca na ferida. É, no limite, de história e de uma falta que se fala. Por um lado, a memória que nos leva aos projectos de Siza pensados nos anos 70 e 80, com mudanças na sua apropriação até aos dias de hoje. Por outro, a ausência de um tema no contexto europeu, a habitação social, em tempos de políticas neo-liberais. O Pavilhão de Portugal é por isso um apelo a revisitar sem nostalgias a história recente, num momento de contínuas novidades sem profundidade temporal. É também uma denúncia, dolorosa para os arquitectos certamente, do desinteresse e desinvestimento dos poderes públicos nas reais condições de vida nas metrópoles europeias, quando atravessamos um preocupante momento de crise. Convenhamos que, na sua inequívoca pertinência, a representação portuguesa não se encaixa facilmente no optimismo ingénuo que transparece da Bienal de Aravena. É pena. ◊

 

Obra de Álvaro Siza na Giudecca, Veneza © Paula Melâneo
Obra de Álvaro Siza na Giudecca, Veneza © Paula Melâneo