ENTREVISTA

Conversa com 
Manuel Graça Dias 

Por Carlos Machado e Moura
Arquitecto, Doutorando (FAUP)
Maio 2016

Fomos ao encontro do antigo director do J—A, para o interpelar sobre a pertinência da questão da identidade nacional em arquitectura nos dias de hoje, vista desde Lisboa.

Tema controverso, o da existência de uma “identidade nacional” em arquitetura, (re)emerge com alguma constância, entre o recurso aos valores essenciais de uma cultura e as diferentes especificidades dos contextos de produção e recepção.

O J—A foi uma das publicações que deu regularmente atenção ao tema através de vários artigos e, em especial, dos números dedicados à “Arquitectura Portuguesa Chã” (#200/2001) e ao facto de “Ser Português” (#237/2009), nas duas séries dirigidas por Manuel Graça Dias.

 


 

Podemos encontrar uma especificidade na arquitectura portuguesa que permita falar em identidade?

 

Não acredito que, pelo facto de vivermos no mesmo sítio e falarmos a mesma língua, tenhamos que ter, necessariamente, um pensamento comum. Em todo o caso, o que pode ajudar a criar uma ideia de uma certa especificidade da arquitectura em Portugal será a condição de nunca termos sido uma verdadeira sociedade industrial e, como tal, de haver sempre um lastro de artesanalidade no nosso trabalho. A maior parte dos arquitectos que conhecemos, apesar de trabalhar com computadores, recorre a maquetas e a esquissos para ter uma aproximação ao espaço que está a projectar. Encontramos menos estes processos noutras sociedades mais industrializadas e que têm o trabalho mais dividido; muitas vezes, as maquetas de trabalho de alguns arquitectos internacionais conhecidos – Herzog & de Meuron, Koolhaas, etc. – não são maquetas para questionar o espaço, são apenas peças escultóricas. 

O registo em Portugal, mesmo dos arquitectos considerados estrelas, é totalmente diferente.  Siza Vieira, por exemplo, pode fazer dez maquetas, mas andam à volta de uma ideia forte em permanente teste-crítico. E os esquissos também: são o perseguir de um tema, de uma ideia, de uma resposta; a própria produção tem esse lado bastante artesanal e creio que não queremos mudar muito para outro sistema, porque este – o manual – acaba por ser mais rápido.

Também na construção há um lado permanente de negociação e acerto. Cada vez menos, porque as regras europeias impõem um controlo tecnocrático que visa, teoricamente, gerir melhor o dinheiro impedindo alterações em estaleiro. Mas sempre houve uma grande razoabilidade que permitia ao arquiteto interferir no decurso da obra, porque há coisas que não se conseguem prever em desenho. 

Além disso, há um lado muito ligado à manufactura que ainda subsiste em Portugal; a diferença entre o Norte e o Sul, num pequeno país como o nosso, tem muito a ver com isso. É mais fácil no Norte encontrar determinado tipo de artesãos, o que possibilita fazer coisas um pouco diferentes. Trabalhar assim, em Lisboa, sai mais caro e acaba por se enveredar por outro tipo de soluções mais industrializadas. Mas mesmo assim, o contraste é enorme face a sociedades mais tecnológicas. Até em Espanha, que é refém da industrialização que possui, e que tem que consumir o que produz.

Acrescentaria ainda que, entre nós, sempre houve uma certa probidade, uma maneira de trabalhar relativamente económica. Trabalhamos com pouco e essa escassez gera respostas mais inventivas que se revelam forçosamente no aspecto final das obras.

Se há alguma especificidade, ela radica-se nesta maneira de fazer que vai permitindo tornar o processo mais próximo das pessoas, do objectivo e das coisas.

Mas apesar desta coerência há, em Portugal, autores com atitudes totalmente diferentes e haverá, em Itália ou na Bulgária, quem o faça mais artesanalmente. Não é uma condição de se ser português.

 

Mas o exercício da profissão está a mudar radicalmente...

As coisas mudaram imenso também porque há muitíssimo mais arquitectos. Quando me inscrevi na Ordem havia mil arquitectos activos em Portugal. Hoje, com vinte e tal mil, as coisas são muito diferentes. 

Estes números avassaladores também fazem com que seja difícil falar em homogeneidade. Agora estamos em crise e, teoricamente, só este aumento já reduziria a quantidade de trabalho entre a classe. 

Algumas pessoas, optimistas, dirão o contrário: quantos mais arquitectos, mais trabalho feito por arquitectos. Mas o trabalho não cresceu assim tanto, muita construção continua a ser feita por não-arquitectos e há pouca coisa pertencente ao core da arquitectura. 

Tudo isto também traz perturbação. Os arquitectos nem sequer podem exigir honorários compatíveis e a "livre concorrência" que a Europa introduziu veio acabar com uma coordenada que fazia funcionar os processos com maior rigor.

Poderia exigir-se muito mais aos arquitectos havendo um consenso relativamente aos honorários. Com a competição actual abrimos a porta aos aldrabões, que também os há na nossa profissão. E tudo isso concorre para que seja mais difícil haver uma coerência ou homogeneidade na produção portuguesa. 

 

Como se enquadra o Pavilhão de Portugal da Exposição de Sevilha de 1992? Esse momento máximo da representação, um edifício-símbolo de um país que, como diz a Ana Vaz Milheiro, até tem o nome de Portugal para identificar uma arquitectura que não reconhecemos como a do Inquérito ou do Regionalismo Crítico?

Esse pavilhão, apesar do seu ar e dos painéis sandwich com chapa metálica por fora, era completamente artesanal. Até porque tinha de ser desmontável para depois vir para Portugal, de acordo com os pressupostos do concurso, apesar de se ter abandonado essa ideia porque o custo da desmontagem e transporte superava o da construção de raiz. 

Não sendo parecido com nada daquilo que se fazia em Portugal, tentámos ligar-nos ao sítio. Quando fomos ao terreno nem os arruamentos estavam feitos, mas sabíamos o que estava previsto e a partir daí inventámos uma história. Criámos a diagonal que permitia atravessar o terreno, compondo uma praça que dava ao público contacto com a exposição e com o que se pretendia mostrar no interior. 

Pretendíamos que o edifício fosse ele próprio um statement e teve algum sucesso, foi muito visitado. Mas o pós-Expo foi muito mau e o nosso pavilhão foi assassinado, vendido por uma peseta a uma empresa qualquer que lhe regularizou as janelas, tirou as escadas rolantes e pintou tudo de branco.

 

 

Manuel Graça Dias + Egas José Vieira, Pavilhão de Portugal da Expo’92 Sevilha (1989/92), esquisso
Manuel Graça Dias + Egas José Vieira, Pavilhão de Portugal da Expo’92 Sevilha (1989/92), esquisso
© Luís Torgal
© Luís Torgal

 

 

Parece que essa empresa quis aproximar o edifício ao estereótipo da arquitectura portuguesa... não reconhece que há uma tendência de associar a produção nacional à imagem de uma certa poética e ao minimalismo?

 

 

É um ponto de vista puritano sobre a arquitectura dita portuguesa. A crítica só vê o que quer e apareceu, há uns tempos, com essa leitura do despojamento e da essencialidade. Mas acho que há grandes diferenças entre os arquitectos, em Portugal. 

Siza Vieira pode ser extraordinariamente barroco nas soluções que apresenta. No Brasil, por exemplo, é extravagante, expansivo, comunicativo. Precisamente o contrário da leitura que lhe querem colar: do silêncio, da poesia triste, da melancolia. São clichés de uma certa crítica, nos quais algumas pessoas se revêem.

 

Mas a mediatização e representação nacional da arquitectura portuguesa anda sempre à volta de certos autores e imagens.

Claro que essas representações estrangeiras são sempre encabeçadas por Siza Vieira, por Eduardo Souto de Moura e por mais três ou quatro autores que têm algum sucesso nas El Croquis deste mundo. 

Mas não nos enganemos, é Siza Vieira que faz com que haja interesse pela arquitectura portuguesa. Há um magnetismo da sua produção, que é fantástica, que leva os outros atrás. Aliás, a exposição de Paris tem 50 obras e oito delas são de Siza Vieira.

 

Isso limita muito a visão panorâmica da produção nacional...

Limita a visibilidade de outros, mas também a aumenta. Se não houvesse esse motor, quem é que queria fazer exposições de arquitectura portuguesa em Paris? 

Se não estiver presente Siza Veira, escusam de mandar lá o Graça Dias com o Teatro Azul, que ninguém lhe liga nenhuma. 

E outro fenómeno que podemos referir quando se procura de uma certa coerência nacional é o facto de haver uma série de nomes que escapam ao cliché. Os Aires Mateus, os ARX, o João Luís Carrilho da Graça, têm coisas interessantíssimas, mas não fazem uma arquitectura nem à moda de Siza Vieira nem de Souto de Moura.

E outros há que tendo começado na peugada se foram libertando. Como é que podemos encontrar o traço de união entre eles? Reconheceríamos essas produções como portuguesas se não soubéssemos à partida que o são? 

Existe uma certa dificuldade em encontrar algo comum, a não ser esses tais rudimentos artesanais que referi a princípio, que talvez possamos reconhecer que existam.

Quando, a certa altura, a crítica inventou a Escola do Porto, pretendia-se que houvesse um Siza e depois pequenos Sizas com grande coerência formal. Mas quando a produção se começa a pulverizar, é mais difícil vender essa ideia, de um pacote muito coerente. ◊