CRÍTICA
Altares
A representatividade das representações internacionais portuguesas
Arquitecto, Fundador revista NU
Junho 2016
A arquitectura portuguesa não acontece, aconteceu. Não vive em ansiedade, não discute o futuro, não olha para o vizinho, não conhece rupturas. Limita-se a arrumar tranquilamente a casa, uma gaveta de cada vez. Conjuga-se no masculino, já tem uma certa idade e não parece deixar descendência. Momento para uma confissão: não é que seja verdade, não é possível descrever assim a arquitectura portuguesa. Mas é a conclusão possível para quem a conhecer a partir das suas representações internacionais desde o início do século, das bienais de arquitectura de Veneza e de São Paulo, passando por embaixadas especiais, como uma recente exposição em Paris comissariada por Nuno Grande que, nas suas omissões, ilustra de modo exemplar como pode uma imagem ser distinta da realidade que representa. Há excepções, mas não suficientes para quebrar a regra: tem sido difícil entender o presente e as expectativas e as ansiedades da arquitectura portuguesa através da sua representação institucional no estrangeiro. Onde devia haver um espelho, tem apenas havido uma lupa. É diferente.
Qualquer que seja a intenção de uma representação, qualquer que seja o contexto, pressupõe-se um processo de inscrição do real, de construção de uma identidade. Por excesso, por defeito, pela regra, pela excepção, através do conjunto ou do exemplo, mas o que sobra deve estar implícito. A semântica importa. Podemos falar de uma representação como um gesto de identificação ou de substituição, optando por uma amostra ou por um símbolo, mas estaremos sempre a gerar uma imagem. No que toca à arquitectura portuguesa, a opção tem sido quase invariavelmente pela segunda, com a imagem a poder ser justamente adorada mas revelando-se incapaz de nos dar a ver para além da sua influência directa. Dar a ver, intenção primeira. Resta saber o quê.
Falemos de números. Não se espera de uma bienal que seja um centro de estatística. A proporção – etária, geográfica, da formação ou de género – não é um critério e a escolha de um comissariado é a sua escolha, que se supõe livre e se espera subjectiva, e que nunca, qualquer que seja a proposta, será consensual. Também não se supõe que cada representação assinale um qualquer mapeamento da arquitectura portuguesa, que destaque o óbvio ou que deixe de o fazer. O problema é a leitura de conjunto. O tempo faz de qualquer sucessão de eventos um tecido e o que por aqui se foi tecendo não pode – ou não devia – deixar de gerar uma certa estranheza. Se olharmos em detalhe para o historial das representações no estrangeiro com selecção feita no nosso país – o que exclui, por exemplo, a Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo – e nos lembrarmos de que há aqui algo mais em jogo do que a qualidade e a pertinência das propostas, chegaremos a dados desconcertantes. Nas catorze presenças portuguesas nas bienais de Veneza e de São Paulo e na Trienal de Milão desde 2003, houve um total de 158 participações, algumas repetidas, de arquitectos portugueses; destas, apenas 20 correspondem a mulheres – sendo que a presença na Bienal de Veneza 2014 é responsável por mais de metade – apesar de comporem cerca de metade da profissão a nível nacional. O mesmo desequilíbrio que se suporia em desuso revela-se nos comissariados: em 26 responsáveis, só 7 foram mulheres, mesmo que na investigação, na crítica ou na curadoria não seja aparente um menor número de mulheres em actividade do que homens. Não é um pormenor, é um padrão.
É igualmente difícil de compreender que a já referida representação de 2014 em Veneza, "Homeland: News From Portugal", comissariada por Pedro Campos Costa, seja a mais expressiva a incluir a participação de arquitectos nascidos depois de 1970, apesar destes representarem cerca de 80% dos arquitectos portugueses. Essa edição é também, a par da "Metaflux", a representação na Bienal de Veneza 2004 comissariada por Pedro Gadanho e Luís Tavares Pereira, um dos poucos exemplos de um olhar sobre o trabalho das (então) gerações mais novas no âmbito de uma representação internacional. Aliás, a "Metaflux" parecia então indiciar um caminho que não foi seguido, tanto na fuga a um dispositivo expositivo menos convencional, como na clara vontade de discutir novos temas e novos protagonistas que, por sua vez, apesar de algumas filiações mais ou menos evidentes, representavam uma fase de transição da arquitectura portuguesa. Daí, no entanto, partiu-se para um caminho que tem sido de recuo para uma narrativa que afirma uma unidade na arquitectura portuguesa que não sobrevive a um olhar mais alargado. Perdeu-se assim a urgência em detrimento de um falso consenso.
De facto, e sem contar com o caso distinto da Bienal de São Paulo 2005, com a representação entregue a Pedro Bandeira com "Entrada de Emergência", um projecto de cariz especulativo que é também um raro exemplo de experimentação, a história das representações portuguesas foi sendo definida por uma certa reverência ao cânone, privilegiando um formato convencional, mais próximo da mostra de obras do que da investigação e da discussão disciplinar, com grande utilidade mas pouco risco. Como é natural, a segurança é mais útil para descrever do que para debater. Não estão aqui em causa a qualidade e a consistência de cada um dos projectos, e menos ainda dos seus protagonistas, mas revela-se necessária uma pergunta: o que representam no seu conjunto as representações internacionais da arquitectura portuguesa?
"Homeland", lembremos, era representado em Veneza por três edições de um jornal, o resultado mais visível de um trabalho multidisciplinar ao longo de meses com várias equipas e intervenções no terreno, num debate que tomava o pulso a um país em estado de indefinição, mais preocupados com as questões que vão determinando um presente em acelerada transformação do que na catalogação de obras e autores. A ironia que aqui se aplaude é a de um projecto baseado num jornal poder ser visto como uma das poucas representações tridimensionais da arquitectura portuguesa fora de portas, rejeitando um ponto de vista uniformizante.
O que nos leva a uma última nota sobre uma exposição que, mais do que um exemplo, é um sintoma. Tal como indicia o nome, a já referida exposição "Os Universalistas – 50 anos de arquitectura portuguesa", concebida por Nuno Grande para a Fundação Gulbenkian em Paris, propõe-se representar os últimos 50 anos da arquitectura nacional através de 50 projectos. Só de Álvaro Siza são 8, mas não houve lugar para qualquer obra de um arquitecto com menos de 50 anos e, em 51 arquitectos representados, só há uma mulher. Podia ser um caso de cegueira, mas é antes uma recusa ideológica. O que é mais grave. Dizia a esse propósito Nuno Grande: "Tentei encontrar projetos, é sempre difícil selecionar 50 pessoas no meio de tanta gente talentosa [e] como é de pai para filho, de mestre para discípulo, mantêm-se algumas continuidades metodológicas"2. Proclama-se assim uma arquitectura portuguesa que se desenvolve tranquilamente por linhagens, ignorando e desvalorizando pelo menos duas gerações de arquitectos que, por partirem de novos contextos de formação e de acesso à profissão, têm na realidade sido marcadas por referenciais múltiplos, sem sentido de fronteira, sem rejeitarem os mestres mas sem os tomarem como modelo formal. Acima de tudo, parece insistir-se aqui na ficção de uma arquitectura portuguesa, quando cada vez mais o que temos é uma arquitectura feita por portugueses, onde se incluem com mérito algumas estrelas mas onde nem todos se reduzem a seguidores.
É portanto de ficção que se fala. Sabemos que a arquitectura é lenta, mas a visão crítica sobre a arquitectura portuguesa parece demasiadas vezes mover-se em rotação permanente sobre um mesmo território. O efeito é o de um pião. É verdade que não há uma verdade, que qualquer enquadramento é uma escolha que simultaneamente sublinha e exclui, mas alguns enquadramentos são mais fiéis à realidade do que outros e não será reduzindo o debate e colocando na sombra vastas partes do seu território que a arquitectura portuguesa melhor se cumprirá. Seria útil percebermos se o padrão que se tem estabelecido neste contexto de representação não compromete o mesmo território que pretende divulgar, discutir e dinamizar. Parece muito que sim. ◊