REPORTAGEM
Guimarães e a recente reconversão do edificado industrial
Arquitecta StudioCan
© Raul Andrade Pereira
Venham cá os de fora, esses que têm nos lábios um sorriso de desdém pelas coisas de Guimarães e admirem o bem tecido dos nossos linhos, o bom acabado das nossas camisolas, o lustre da nossa cutelaria, o bom gosto da nossa marcenaria; venham cá os descrentes da nossa riqueza industrial, entrem na exposição permanente que sairão crentes, sairão satisfeitos. 1
Em Guimarães, os testemunhos arquitectónicos da “riqueza industrial” que caracteriza as cidades do Vale do Ave a partir de meados do século XIX são parte integrante da paisagem urbana, tanto nos edifícios já recuperados e reconvertidos para novas funções, como nas estruturas obsoletas e abandonadas, aguardando uma intervenção.
Apesar de ser tardia em relação ao resto da Europa, a industrialização desta região deixa um legado arquitectónico incontornável e, no decorrer das últimas décadas, o município de Guimarães tem desenvolvido estratégias de preservação dessas construções, através do planeamento urbanístico e de parcerias com a Universidade do Minho, focadas inicialmente na Zona de Couros, tornando-se exemplo de um município “(...) que encontra compromissos com o seu legado e que com ele vai construindo a sua condição presente e futura.” 2
Exemplos de investimento e iniciativa pública na revitalização urbana de zonas industriais não faltam por toda a Europa, estrategicamente mantendo e recuperando os edifícios, atribuindo-lhes novos programas, na maioria das vezes, culturais e museológicos. São exemplos disso a Tate Modern em Londres, o Centquatre em Paris, a Rote Fabrik em Zurique, o Matadero em Madrid, a Casa da Arquitectura em Matosinhos, o museu MACRO em Roma, a Casa da Memória em Guimarães, entre muitos outros. Na maioria dos casos, o primeiro passo dado pelos organismos públicos na reconversão desses espaços atraiu o investimento privado para a área circundante, funcionando como motor de arranque para o desenvolvimento económico, social e artístico, trazendo de volta à vida zonas esquecidas das cidades. Esta premissa revela-se fundamental para o investimento na regeneração urbana de áreas marginais.
No centro da cidade de Guimarães, as indústrias fixaram-se por razões práticas e logísticas, ao longo da ribeira de Couros, que atravessa a cidade a Sul e cujo nome está associado à actividade artesanal e industrial da curtimenta de peles e couros. O núcleo industrial de Couros situa-se imediatamente abaixo do Centro Histórico Património da Humanidade (2001) (ver diagrama da página 41).
A Zona de Couros, rica em património industrial singular ligado à curtimenta de couros e recentemente candidata ao estatuto de Património da Humanidade, começou a ser intervencionada pela Câmara Municipal em 2001, com a recuperação de um primeiro conjunto arquitectónico, o antigo Casal dos Pellames, constituído por três fábricas e vários barracões adjacentes, destinados ao tratamento das peles e com o maior conjunto de tanques desta zona. Com projecto do Atelier Nuno Teotónio Pereira, o Complexo Multifuncional de Couros abriu portas em 2002, onde desde então funcionam a Fraterna – Centro Comunitário de Solidariedade e Integração Social, a Pousada da Juventude e o Cybercentro, com valências como um auditório, biblioteca e mediateca. Este primeiro passo na revitalização deste núcleo e localização de usos e funções diversas nos espaços recuperados foi essencial para iniciar uma dinamização social e cultural desta Zona.
A nomeação de Guimarães para Capital Europeia da Cultura em 2012 e a disponibilidade de fundos para o investimento em infra-estruturas a isso associado veio permitir continuar o planeamento e intervenção urbana na Zona de Couros, nascendo o projecto CampUrbis, fruto de uma parceria entre a Câmara Municipal de Guimarães (CMG) e a Universidade do Minho (UM), com o intuito de preservar, revitalizar e valorizar os arrabaldes de Couros – se, por um lado, a CMG manifestava interesse em expandir a sua intervenção urbana requalificativa além do centro histórico, por outro, a UM procurava estender-se além do Campus de Azurém, em direcção ao centro da cidade.
A regeneração urbana prevista pelo plano CampUrbis continha acções em vários sentidos: urbano – a reabilitação do espaço público, arruamentos e largos, na mesma lógica interventiva do centro histórico; arquitectónico – a recuperação para novas funções educacionais e culturais de três núcleos industriais de curtumes, as antigas Fábricas da Ramada, Âncora e Freitas & Fernandes; e ambiental e ecológico – a revitalização do curso e margens da ribeira de Couros e criação de hortas comunitárias a montante do rio. A par estava o desejo de fomentar o desenvolvimento económico, a criatividade e o empreendedorismo. Estava então dado o primeiro passo para a criação do novo Campus da UM, o Campus de Couros, dedicado à inovação, produção tecnológica e artística.
Os três conjuntos arquitectónicos industriais em causa evoluíram construtivamente no tempo, de forma distinta e dependente da expansão industrial adoptada pelas empresas, o que se traduz na linguagem dos projectos de reabilitação dos mesmos.
Fábrica Âncora – Centro Ciência Viva
A antiga fábrica de curtumes Âncora foi encerrada em meados do século XX tendo estado ao abandono até 2009, aquando do início dos trabalhos da sua recuperação. Dos três conjuntos foi a estrutura que menos se modificou ao longo do tempo, mantendo uma coerência espacial e arquitectónica características das construções tradicionais do tratamento dos couros, provavelmente inspiradas na arquitectura rural da região: desenvolvidos em torno de um pátio de entrada, os vários edifícios que compõem o conjunto apresentam o piso térreo em granito e o superior em ripado de madeira, onde secavam as peles.
A recuperação deste conjunto para a localização do Centro Ciência Viva, da autoria do arquitecto Ricardo Rodrigues (CMG) foi feita de modo a “preservar e recuperar a imagem e o carácter que lhe são específicos e únicos no panorama nacional e internacional” (da Memória Descritiva do projecto). A filosofia de intervenção foi a de manter o carácter rústico do conjunto, “numa lógica quase obsessiva de proteger as suas características mais originais” (da Memória Descritiva do projecto).
Fábrica da Ramada – Instituto de Design da Universidade do Minho
A Fábrica da Ramada, fundada nos anos 30 do século XX, foi a última indústria de curtumes a cessar as suas funções na Zona de Couros em 2005 e é onde está hoje instalado o Instituto de Design da Universidade do Minho com a Licenciatura em Design de Produto e o Mestrado de Design de Produto e Serviços.
Esta fábrica foi das que mais evoluiu em termos tecnológicos na Zona e, consequentemente, mais se expandiu para conseguir acolher a nova maquinaria, perdendo assim as características arquitectónicas específicas das indústrias de curtumes tradicionais. Ganhou, no entanto, um espaço singular que a diferencia das outras estruturas, uma grande nave com estrutura em pilares de betão e asnas de madeira, cujo pavimento veio cobrir os antigos tanques e onde estavam albergados os novos tambores, dos quais alguns ainda ali permanecem depois da reabilitação e ampliação do conjunto.
O projecto do arquitecto José Manuel Soares propõe a reabilitação dos edifícios existentes e a construção de um novo em betão aparente que, na sua implantação, recupera uma ligação pedonal antiga, outrora absorvida pela ampliação da fábrica, devolvendo-a à cidade através de um percurso público que atravessa o edifício.
Fábrica Freitas & Fernandes – Centro Avançado de Formação Pós-Graduada
Este conjunto arquitectónico desenvolve-se, tal com a antiga Fábrica Âncora, em torno de um grande pátio, não apresentando porém as mesmas características originais, devido à evolução que sofreu a nível tecnológico e, consequentemente, espacial. Esta fábrica foi uma das que alterou as suas funções de curtimenta de couros para a indústria têxtil. Uma consciência ambiental começou a surgir em meados do século passado e era necessário cumprir novas obrigações legais de salubridade. A indústria têxtil era, de longe, menos poluente, mas também mais rentável, por ter mão-de-obra mais barata e retorno financeiro mais rápido. Neste caso, estas alterações traduziram-se numa profunda alteração do conjunto arquitectónico da fábrica original. Face à grande descaracterização arquitectónica dos edifícios e o desconhecimento da construção original do conjunto, a intervenção arquitectónica do grupo Pitágoras passou pela demolição das estruturas em betão e paredes em tijolo mais recentes, mantendo porém a volumetria existente do conjunto. Nesta proposta assistimos ao uso significativo do revestimento em cobre, além do característico granito e ripado de madeira.
Dentro da parceria CMG-UM, o projecto de expansão em curso do Campus de Couros prevê iniciar, ainda durante 2018, a recuperação da antiga Garagem Avenida e do antigo Teatro Jordão, ambos localizados entre a Avenida Afonso Henriques e a Rua de Couros (ver diagrama da página 41). Estas novas instalações vão albergar o Conservatório de Música de Guimarães e a Escola de Música e Artes Performativas e Visuais da Universidade do Minho. Parte do edifício do Teatro Jordão foi já recuperada, estando em funcionamento, desde Setembro de 2017, oito estúdios destinados a ensaios de projectos musicais (ver diagrama da página 41).
Seguindo a ribeira para montante, na zona da Caldeiroa (ver diagrama da página 41) encontramos concentrados uma série de edifícios industriais (alguns ainda em funcionamento, a maioria deixada ao abandono) e é onde temos vindo a assistir, desde o início desta década, à ocupação e recuperação, por iniciativa privada, de estruturas vagas. Na zona da Caldeiroa, a construção do novo Mercado Municipal, a relocalização do recinto da feira e a abertura de uma nova via de ligação directa ao nó de entrada automóvel na cidade despertaram o interesse de privados para a ocupação de edifícios industriais obsoletos.
Em 2011, o CAAA Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura abriu portas ocupando a antiga Fábrica Confil, uma unidade fabril têxtil que se encontrava em estado de abandono. É mais um exemplo de conversão de um edifício industrial num espaço dedicado à produção artística e cultural que nasceu no âmbito da Capital Europeia da Cultura 2012, pela mão de uma associação cultural. A escolha deste edifício por parte dos directores do espaço e arquitectos (Ricardo Areias e Maria Luís Neiva) prendeu-se com as características estruturais do edifício: espaços amplos e pés-direitos altos que proporcionavam uma perfeita adaptação para espaços expositivos, de criação artística, de projecção de filmes e apresentações diversas.
Depois do CAAA, assistimos à ocupação de outros espaços industriais pelo HIVE – Centro Empresarial da Caldeiroa em 2012, onde funcionam empresas ligadas à arquitectura e engenharia, e mais recentemente do MURO (2017) e The Factory (2018), espaços relacionados com bem-estar e fitness. Neste momento, na Caldeiroa existe somente uma estrutura industrial em reconstrução a ser reabilitada para habitação e continuam-se a somar muitos edifícios fabris ainda abandonados.
Relativamente afastadas do curso da ribeira de Couros, mas na proximidade do centro da cidade, encontramos várias fábricas implantadas, como é o caso da Fábrica de Plásticos Pátria reconvertida em Casa da Memória de Guimarães, também na Capital da Cultura, e com projecto de reabilitação do arquitecto Miguel Guedes. Este caso incontornável é de significativa importância para o contexto museológico da cidade pelo seu conceito e conteúdos programáticos pois “é um centro de interpretação e conhecimento que expõe, interpreta e comunica testemunhos materiais e imateriais que contribuam para um melhor conhecimento da cultura, território e história de Guimarães (...)” [www.casadamemoria.pt].
Percorrendo a cidade percebemos que a condição de abandono das estruturas industriais obsoletas tem grande impacto na imagem urbana, não só pelas suas volumetrias características mas também pelo facto de serem uma memória da história da cidade, criadora de uma identidade.
As intervenções mencionadas contribuíram para a preservação dessa memória e vieram impulsionar o desenvolvimento dessas zonas da cidade com a reabilitação e atribuição de novas funções aos edifícios. A parceria entre a CMG e a UM revela-se extremamente positiva pois garante que os espaços reabilitados para usos educacionais são, de facto, ocupados e vividos, contribuindo para uma regeneração também social e ideológica.
Reflectindo sobre factos práticos, percebemos que as estruturas aqui descritas, tanto as intervencionadas pela Câmara como por privados, são de pequena e média dimensão, enquanto que as fábricas que continuam ao abandono requerem muitos metros quadrados de reconstrução, o que dificulta o investimento pelos valores extremamente altos envolvidos.
Na impossibilidade de prever uma recuperação dos edifícios industriais privados dentro da cidade, resta-nos esperar que, aos poucos, o município desenvolva estratégias de investimento no património industrial, ou então sejam criados incentivos para os privados o fazerem, com o propósito de regenerar os espaços abandonados e os devolver “ressuscitados”. ◊