REPORTAGEM

Covilhã: a cidade-fábrica, a cidade-universitária e o restante edificado

Por Pedro Seixo Rodrigues

Arquitecto

 

Antigo complexo fabril de Sebastião da Costa Rato, actuais instalações do Departamento de Informática (à esquerda) e Faculdade de Ciências (à direita) (Polo I - UBI)
© Pedro Seixo Rodrigues
Antigo complexo fabril de Sebastião da Costa Rato, actuais instalações do Departamento de Informática (à esquerda) e Faculdade de Ciências (à direita) (Polo I - UBI)
© Pedro Seixo Rodrigues

 

 

A partir de inícios do século XIX, com o objectivo de aproveitar o potencial da energia hidráulica das ribeiras que delimitam a cidade (Carpinteira a Norte e Goldra a Sul), começaram a instalar-se nas suas margens algumas unidades fabris, cujas rodas hidráulicas de propulsão vertical e montadas em série optimizavam a água que descia pelas acentuadas encostas da serra da Estrela. Outro aspecto bastante singular é o aproveitamento e construção de socalcos na encosta, que moldaram a topografia do terreno e foram aproveitados para a localização das râmolas de sol, que serviam para a secagem dos panos produzidos nas várias unidades fabris da Covilhã. 

A dinâmica e empreendedorismo locais acabaram por transformar a Covilhã, até aos anos 1970, numa autêntica “cidade-fábrica”. Em finais do século XIX, a Covilhã foi caracterizada, no “Inquérito Industrial” (1881), como uma das três cidades verdadeiramente industriais, junto a Guimarães e Porto. Algumas décadas mais tarde, já em meados do século XX, chegou a ser apelidada de “Manchester Portuguesa”, visto que as suas fábricas eram responsáveis (em 1940) por 60% da produção nacional e chegou a ter quase 44% do número de trabalhadores efectivos desta indústria. Graças aos séculos de ligação com este tipo de manufactura, ainda hoje se ouve o antigo provérbio: “Se os filhos de Adão pecaram, os da Covilhã sempre cardaram”.

Nos inícios da década de 70 do século XX, o modelo económico adoptado até então, caracterizado por uma aposta intensiva na mono-indústria, acabou por entrar em declínio. Tal situação deveu-se a vários factores que, conjugados, acabaram por provocar uma crise estrutural de grande impacto económico na Covilhã e localidades limítrofes. A perda de competitividade da cidade face ao surgimento de novos pólos industriais, a crise energética nos inícios da década de 1970 e a mudança de regime político (que trouxe a subida dos salários e a perda dos mercados coloniais), anteciparam o destino que se estava a antever. A rotina diária ditada pelo toque das sirenes das fábricas que anunciavam o início e fim de cada turno, o som dos teares que ecoava pelas ruas e quelhas da cidade, converteu-se num silêncio deprimente e perturbador, transformando a, até então, “cidade-fábrica” num amontoado de edifícios ao abandono, que com o passar do tempo acabaram por se transformar em ruínas.

Com vista a ultrapassar esta realidade, não restaria outra solução senão aceitar o sucedido e avançar para uma mudança drástica e bastante profunda do modelo económico e social vivido até então. Em 1973, com a instalação do ensino superior na cidade, o Instituto Politécnico da Covilhã [o IPC que viria a converter-se em Instituto Universitário da Beira Interior, em 1979, e em Universidade da Beira Interior (UBI) em 1986], dá-se início a um novo cenário que acabou por transformar profundamente a Covilhã. É de destacar que, desde a sua origem, esta instituição de ensino optou por localizar as suas instalações dentro do perímetro urbano, ao contrário da opção mais comum de instalação em modelo de campus universitário. Inicialmente, foram reabilitadas e reconvertidas as antigas ruínas da Real Fábrica de Panos (criada no âmbito da política pombalina de fomento industrial, mais tarde utilizada como quartel militar). 

Os resultados da operação e a vontade de reutilizar outros antigos edifícios fabris, cujo valor comercial favorecia a opção de aquisição, motivaram a continuidade desta solução para a restante expansão física da Universidade. Optar pela reabilitação e reconversão destes espaços, viria a afirmar-se como um enorme benefício para a cidade, principalmente do ponto de vista urbanístico e ambiental, mas também na presença de população jovem e universitária dentro do perímetro urbano. No actual ano lectivo (2017-18), um total de 7 262 alunos escolheram a UBI para fazer um dos cursos de Licenciatura e/ou Mestrado Integrado, Mestrado e Doutoramento, dos quais 1 176 são estrangeiros. Importa também referir que a reabilitação arquitectónica destes espaços industriais abandonados assumiu, de certa forma, o papel de homenagem às pessoas que estiveram ligadas à indústria dos lanifícios (empresários, operários… e suas famílias), bem como à memória histórica e colectiva da cidade.

O modelo de reabilitação arquitectónica aplicado é da responsabilidade do atelier GPA (Grupo Planeamento e Arquitectura), liderado pelo arquitecto Bartolomeu Costa Cabral. Para além da reconhecível marca de qualidade, caracteriza-se pela interpretação, valorização e compatibilização das preexistências em articulação com as novas construções. Assenta na utilização de materiais construtivos tradicionais, tais como ferro, granito, betão, vidro e madeira. No vale da ribeira da Goldra, das várias intervenções realizadas na reabilitação de edifícios industriais para instalações universitárias, destacam-se:

 

1. O complexo edificado da antiga Real Fábrica de Panos, originário da segunda metade do século XVIII, é constituído por dois imóveis. Um é formado por quatro alas que delimitam no interior um pátio central quadrangular, que serviu de “parada” aos regimentos militares que ocuparam o edifício (entre 1888 e 1954). Numa das alas, aquando do início dos trabalhos de recuperação, foram descobertas estruturas arqueológicas (fornalhas e poços cilíndricos da antiga tinturaria), que foram objecto de classificação e motivaram a criação do Museu de Lanifícios.

 

2. A Empresa Transformadora de Lãs, fundada em 1920 e executada a partir de um projecto do arquitecto de origem suíça Ernst Korrodi, foi adquirida pela UBI em 1994 e sofreu obras de alteração a cargo do atelier GALP – Gabinete de Urbanismo, Arquitectura e Planeamento. Do complexo original foram consideradas a volumetria e fachada principal, bem como salvaguardados os painéis decorativos de azulejo, com motivos alusivos à região e à indústria, que se encontram no átrio da entrada principal. 

 

3. A Real Fábrica Veiga, fundada em 1784, destinava-se à instalação de uma tinturaria. Alvo de sucessivas ampliações, quer no número de edifícios, quer na volumetria, em 1834 já se considerava uma fábrica completa, onde eram efectuadas todas as operações do ciclo de transformação da lã em tecido, e, até à última década do século XX, quando um devastador incêndio destruiu integralmente um dos corpos deste complexo, foi sendo utilizada por várias empresas. Após aquisição pela Universidade, passou por uma profunda intervenção de recuperação e reconversão, da autoria de Bartolomeu Costa Cabral, para dar continuidade ao programa de desenvolvimento do Museu de Lanifícios. Aquando do início dos trabalhos (em 2001) foram descobertas as estruturas de assentamento de caldeiras a vapor de finais do século XIX que, após o seu restauro, constituem uma área arqueológica que integra o percurso expositivo permanente do Núcleo da Real Fábrica Veiga do Museu de Lanifícios. 

Na ribeira da Carpinteira, destacam-se as reabilitações de dois edifícios:

 

1. O complexo fabril da empresa Ernesto Cruz, é constituído por dois imóveis construídos em duas fases distintas, em 1946 e 1963. Edificado com sistema de construção moderno (pilar/viga), a intervenção de reabilitação deste conjunto tem-se desenvolvido, também, de forma faseada. Iniciada pelo edifício mais recente, o imóvel mais antigo encontra-se, à data, parcialmente reabilitado, sendo a volumetria original do complexo mantida, à excepção da zona que esteve ocupada pelo Cybercentro. 

 

2. O conjunto fabril da empresa João Roque Cabral, constituído por dois imponentes edifícios, manteve a sua laboração até 1995, data em que foi decretada a falência da empresa. Após ter sido adquirido pela Universidade, foi remodelado como Residência Universitária Pedro Álvares Cabral, projecto da autoria da arquitecta Conceição Trigueiros.  Com uma área de 7 300m2, a residência possui 330 camas, seis cozinhas, lavandaria e cinco salas de estudo. A residência funciona num sistema de mini-apartamentos de quatro alunos, onde partilham a instalação sanitária e os electrodomésticos (microondas e frigorífico). As cozinhas estão centralizadas em cada piso, tendo os residentes todas as condições para confeccionarem a própria refeição e conviverem com os colegas num mini-refeitório.

 

É ainda importante destacar uma intervenção empreendida pela UBI que segue os princípios de salvaguarda do património industrial, o conjunto de râmolas de sol e estendedouro de lãs, existente na zona do Sineiro, no complexo fundado por Ignácio da Silva Fiadeiro. Adquirido pela UBI para instalação de um parque de estacionamento, tendo em conta a salvaguarda das estruturas preexistentes, optou-se pela recuperação e preservação in situ tornando-se no Núcleo das Râmolas de Sol do Museu de Lanifícios. 

Creio que é indiscutível e incontornável o papel que a UBI teve na reutilização do património industrial existente na Covilhã, através das várias obras de restauro, reconversão e ampliação de um considerável número de edifícios fabris. Constitui-se como um caso bem sucedido e pode mesmo considerar-se, tanto a nível nacional como internacional, como um excelente exemplo de política patrimonial, da qual saíram beneficiadas tanto a UBI como a própria cidade. 

Perante este sucesso, e a história recente da cidade, devo assinalar que houve diversas “oportunidades perdidas” para que a cidade visse ainda a reutilização de outros antigos edifícios fabris de grande dimensão, que permanecem ao abandono. A decisão de se construir um imóvel de raiz para o Parkurbis – Parque da Ciência e Tecnologia da Covilhã, talvez seja uma das mais evidentes. Igualmente, a própria política de expansão urbanística da cidade, focada em criar uma nova centralidade na “zona baixa” da cidade, em particular em redor do Serra Shopping, também pode ser considerada uma oportunidade desperdiçada relativamente à reabilitação de certos edifícios de valor arquitectónico e histórico que pontuam aqui e ali a Covilhã. 

Caso a política municipal tivesse incentivado, através de isenções e benefícios fiscais, a recuperação de vários destes imóveis, poderiam ter já surgido, ou vir a surgir, projectos para transformar antigas fábricas em edifícios com diversos programas, lofts ou lojas e serviços, como sucedeu noutras cidades. Em detrimento dessa possibilidade, a “zona baixa” está transformada num amontoado de blocos habitacionais, alguns de duvidosa qualidade de concepção e construção, tornando improvável a futura reabilitação de ainda tantos imóveis que se encontram distribuídos pelo perímetro urbano.

Se as linhas programáticas definidas no Plano Estratégico do Programa Polis da Covilhã alguma vez forem levadas a cabo na íntegra, principalmente as que dizem respeito ao vale da ribeira da Carpinteira, onde se localiza a maior quantidade de edifícios fabris abandonados, talvez se verifique uma nova dinâmica na revitalização dessa faixa da cidade. Enquanto isso não se verifica, convém referir que existem trabalhos de reconversão em curso, essencialmente pela mão de privados, como é o caso do New Hand Lab, localizado na antiga Fábrica António Estrela/Júlio Afonso e que se apresenta como um espaço que promove a criatividade e iniciativas de criadores locais, bem como a reabilitação das antigas fábricas localizadas no Sineiro, que estão a ser transformadas em habitação (Sineiro Apartamentos), destinada especialmente aos estudantes do Pólo IV da UBI.

Esperemos que o lema do Museu de Lanifícios, “os fios do passado a tecer o futuro”, se estenda definitivamente por toda a Covilhã e que outros imóveis disseminados pela cidade, como a antiga Garagem de São João, a antiga fábrica Francisco Mendes Alçada ou a antiga Nova Penteação e Fábrica Campos Mello & Irmão (em via de classificação), sejam também um dia objecto de recuperação, atribuindo-lhes novos usos como, por exemplo, conceitos inovadores de habitação e alojamento turístico, centros culturais e museológicos, espaços (para) criativos, empreendedores e artistas e, ainda, locais de lazer indoor. ◊