CRÓNICA

20 anos da Expo’98

Política e Representação

Por Pedro Bragança

Arquitecto, Doutorando (FAUP), Investigador (CEAU–FAUP)

 

Still do vídeo promocional da Expo'98
Still do vídeo promocional da Expo'98

 

 

Foi num clima de consenso que recentemente se celebraram os vinte anos passados desde a Exposição Internacional de Lisboa. Mas, apesar de aparentemente desvanecidas pela força de duas décadas, as controvérsias que se levantaram em 1998 e nos anos que antecederam o evento foram diversas: sobre o custo e a dimensão do investimento, sobre o grau de concentração, sobre a posição geográfica, sobre as arquitecturas, sobre os procedimentos, sobre a mitologia do tema escolhido, etc.

A polémica começou, desde cedo, com a questão dos custos. Apesar de a organização se ter apoiado na previsão de receitas decorrentes da alienação dos terrenos urbanizáveis para se comprometer com um “custo zero” final, uma auditoria do Tribunal de Contas 1 definia um saldo negativo a rondar os 600 milhões de euros já em 2000, ano a partir do qual se tornou ainda mais difícil a obtenção de balanços definitivos, face à dispersão de avais e responsabilidades assumidas pelo Estado. Permanentemente submersa num mar de dívidas e sem um horizonte de sustentabilidade à vista, a empresa pública Parque Expo, criada em 1993 para preparar a exposição e gerir o complexo depois de 1998, acabaria por ser dissolvida em 2016. O custo final é ainda hoje indeterminado, mas as sucessivas derrapagens reflectem um percurso atribulado: de um orçamento inicial de 600 milhões de euros (1989) chegámos a um valor que, em algumas estimativas, ascende a 4 mil milhões de euros.

Aos custos elevados não será alheio o facto de a Expo’98 ter assumido um estatuto de excepção e de desígnio nacional, que permitiu ao promotor público congregar todos os meios e recursos e, inclusive, galgar obstáculos formais e burocráticos para acelerar procedimentos na fase de preparação e construção. Em causa estava uma “causa maior”, que impunha um grau máximo de prioridade, e foram muitos os argumentos coleccionados para a defender. 

O primeiro de todos era relativo à utilidade do espaço e dos equipamentos no pós-1998, bem como aos seus evidentes benefícios para o público. Assimilando a aprendizagem da herança da Exposição de Sevilha, que imediatamente após 1992 já apresentava marcas de decadência, e sendo a maior operação urbana jamais realizada em Portugal, a Expo’98 deveria comprometer-se com uma expansão efectiva 2, e não efémera, de Lisboa. O complexo haveria de adoptar uma área altamente degradada e expectante, integrando-a na cidade existente por via da novíssima agenda da ecologia e da sustentabilidade. “Lisboa conquistará uma faixa de 5 km”. Esta frase, proferida no lançamento do projecto, tinha mais do que um sentido literal, uma vez que o município de Lisboa ganhava, efectivamente, uma porção de território a Loures; tinha, sobretudo, um sentido metafórico: era a cidade, como espaço e como ideia política, que iria reconquistar para si uma parcela há muito perdida, um arquipélago isolado e poluído pelo porto, pela indústria de hidrocarbonetos e por um aterro sanitário, que ali falecia, na margem do Tejo, junto ao rio Trancão.

Mas, ainda que este discurso sobre a qualidade pública do projecto ainda hoje sobreviva nas memórias produzidas sobre a Expo’98, a realidade constatada parece ser bastante diferente. Vinte anos depois, a maior parte dos pavilhões, após um período de desocupação e obsolescência, acabou “inevitavelmente” privatizada ou concessionada a privados: o da Utopia/Atlântico, o dos Oceanos, o da Realidade Virtual, o do Futuro, o da União Europeia/Torre Vasco da Gama, a Zona Internacional, etc. E programas que se previam públicos deram lugar, afinal, a um casino, um hotel de luxo, sedes de multinacionais e de grandes empresas ou um centro comercial. Neste momento (e enquanto não se consumar o desfecho do Pavilhão de Portugal, desocupado desde a Exposição e agora nas mãos da Universidade de Lisboa), são apenas duas as excepções dignas de menção: o Teatro Camões, entregue à Companhia Nacional de Bailado, e o Pavilhão do Conhecimento dos Mares, actual Centro Ciência Viva. 

Assim, ao longo deste período, fomos assistindo a uma reconfiguração profunda do projecto e a uma subversão radical dos princípios inicialmente defendidos (pelo menos no discurso) para a herança da Expo’98, que acabou por anular quase até à insignificância a sua dimensão pública e pulverizar a presença e função política do Estado, bem como a sua capacidade de definir a agenda futura do complexo. E mesmo a vocação política do espaço público nunca chegou a evidenciar-se, como revela a ausência quase total, em vinte anos, de momentos de apropriação espontânea por parte da população da cidade, através de manifestações ou outras utilizações desalinhadas do ambiente controlado e próprio de um “condomínio fechado”.

Não sendo claro se esta evolução decorreu de acidentes de percurso – como a constante e imperativa necessidade de privatizar para gerar capital imediato e, assim, suprir défices – ou se estava já implicitamente contida como modelo político na ideia original, o que é certo é que o Parque Expo/Parque das Nações foi menos um projecto urbano, no verdadeiro sentido do conceito, e mais um loteamento privado de promoção e financiamento estatal. E, com o tempo, definiu-se como uma estrutura de suporte para acolher um cluster económico alargado, composto por sedes de multinacionais e grandes empresas, assim como habitação cara, que atinge um dos índices “preço/m2” mais elevado de Lisboa 3 (e, por maioria de razão, do país) e, simultaneamente, com uma das mais elevadas concentrações de casas de luxo 4. É certo que a cidade terá ganho alguma coisa, mas ganhou muito menos do que o que seria expectável e com custos elevadíssimos para todos na edificação de infra-estruturas públicas capturadas por alguns.

Outro dos argumentos a que os promotores da Expo’98 mais recorreram para viabilizar politicamente e legitimar socialmente uma concentração de capital público tão elevada, tão aparentemente irrazoável e desproporcional, inédita até à data em Portugal, foi o suposto efeito multiplicador – no tempo e no espaço – do investimento para lá da Zona de Intervenção (ZI), como explica Nuno Portas 5. Ou seja, e simplificando: que não se preocupassem as pessoas de todos os lugares onde a pobreza era (e é) ainda maioritária, pois aquele esforço seria, a devida altura, recompensado. A dobrar ou triplicar.

Promessas desta natureza têm uma base similar a um princípio económico bastante estimado pela teoria neoliberal: a trickle-down economics, que é, no fundo, a expectativa, ou convicção, ou fé, de que a acumulação (e a concentração geográfica, neste caso) resulte necessariamente boa também para o que lhe é marginal, visto que, ainda que em determinado momento seja solicitado às regiões mais pobres um esforço suplementar, num horizonte futuro, a multiplicação da riqueza decorrente dessa mesma acumulação acabaria por transbordar em benefício de todos. Mas os resultados concretos desta opção e, designadamente, o seu retorno, seja para a cidade (nas áreas limítrofes da intervenção), para a região ou para o país, não nos permitem ser mais do que cépticos em relação a ela 6.

Na verdade, e como o Observatório Expo’98 e Vítor Matias Ferreira anteviram 7, a concentração geográfica do investimento no perímetro da ZI da Expo, associada à tipologia do projecto e ao perfil socioeconómico dos seus habitantes, parece ter contribuído para o aprofundamento da fragmentação social do espaço nas diferentes escalas, e é simultaneamente indutor e manifestação de segregação e desigualdade. E se este é o principal cenário distópico que se afigura ao fim de duas décadas, outros há que não podem ser ignorados no momento da retrospectiva: das suspeitas de corrupção 8 aos negócios ruinosos 9, do falhanço no número de visitantes (62% aquém do previsto, de acordo com o Relatório Final 10) aos problemas na organização do evento, a memória da Expo’98 faz-se também da megalomania, do descontrolo e da irracionalidade de muitas decisões. Algo que, ainda assim, parece não perturbar os balanços ora eufóricos, ora saudosistas: “A obra que fez Portugal acreditar” 11, “os valores incutidos nos portugueses” 12, “um momento de grande autoestima para o país” 13 – expressões equívocas, genéricas, hiper-subjectivas e difusas, que nos inundam através da imprensa e que representam bem a aura mágica e fantasiosa que uma propaganda musculada forjou em torno da obra. A força desse discurso produzido, carregado por uma mitologia própria, acaba por dificultar, manifestamente, o exercício de análise em relação ao legado da Expo, mas é, ao mesmo tempo, o reflexo de um imaginário que actuou em paralelo, como um manto com o qual se encobriram as complexidades e tensões da circunstância política, económica e social de que falámos até aqui.

No plano simbólico e no plano retórico, a Expo’98 foi essencialmente uma obra de representação de um regime, para eternizar, com formas construídas e permanentes, o discurso da “viragem” 14 do Portugal moderno, através de uma receita que procurava aliar a tradição marítima (e o passado ultramarino e colonial) a uma perspectiva de futuro associada à democracia, à integração europeia e à prosperidade que ambas geravam. É não só 15, mas sobretudo, nesta sua vocação de representação, que se tornam incontornáveis as semelhanças com a Exposição do Mundo Português, de 1940, face à produção de um território artificial, auto-limitado e fechado, de celebração e efabulação, onde não só é enaltecida uma determinada perspectiva histórica e um modelo de sociedade, como é produzido um ambiente exótico, tão alheio e isolado quanto possível da realidade, e entalado entre aquilo que somos e aquilo que gostaríamos de ser. ◊