CRÍTICA

Euforia, Nostalgia e Transgenia no Porto Oriental*

Por Inês Moreira

Arquitecta, Curadora, Investigadora Pós-Doutoramento (IHA/UNL)

 

Demolição de edifício para dar lugar a nova ala de quartos do Hotel Pestana no Palácio do Freixo/Moagens Harmonia
© Miguel Oliveira
Demolição de edifício para dar lugar a nova ala de quartos do Hotel Pestana no Palácio do Freixo/Moagens Harmonia
© Miguel Oliveira

 

 

Nuestras grandes ciudades están pobladas por este tipo de territorios. Áreas abandonadas por la industria, por los ferrocarriles, por los puertos; áreas abandonadas como consecuencia de la violencia, el receso de la actividad residencial o comercial, el deterioro de lo edificado; espacios residuales en los márgenes de los ríos, vertederos, canteras; áreas infrautilizadas por inaccesibles entre autopistas, al margen de operaciones inmobiliarias cerradas sobre sí mismas, de acceso restringido por teóricas razones de seguridad y protección.

Ignasi Solà-Morales 1

 

 

 

Oriente das cidades portuguesas

O binómio Ocidente-Oriente das cidades europeias industrializadas, de muitas delas, diz-nos que a Ocidente cresceu a cidade burguesa da abundância, dos palacetes, parques e jardins, enquanto a Oriente se instalou o sistema de produção, as fábricas, infra-estruturas viárias e de energia, a habitação operária e outras estruturas de apoio. De um modo geral, assim o é no Porto e em Lisboa, ainda que a Ocidente existisse indústria (por exemplo, Alcântara ou Boavista) e a Oriente existissem também palacetes, conventos e jardins (por exemplo, Beato e Freixo).

Após o crescimento e o desenvolvimento da produção industrial até ao último quartel do século XX, as zonas orientais industrializadas viram a deslocalização da logística, o recrudescimento e/ou a falência da produção, ou mesmo a obsolescência de alguns importantes negócios, assistindo ao inevitável abandono do edificado industrial que, a par da contaminação dos solos e dos cursos de água, tornaram estes territórios problemáticos. A desindustrialização exponenciou a latência dos problemas sociais, desemprego e pobreza daqueles que aí estavam estabelecidos, ou daqueles que se lhes juntaram nos bairros sociais construídos na segunda metade do século XX 2. Tanto o auge da industrialização como a queda do fenómeno industrial trouxeram o estigma de pertença primeiro, confuso, insalubre e ruidoso, depois, abandonado, perigoso e pobre. O lado oriental das cidades tem sido, em Portugal, o wrong side of town, até recentemente.

Com a pressão imobiliária sobre os centros das principais cidades e a sobrecarga dos fenómenos turísticos nas zonas históricas, as zonas orientais das cidades portuguesas adquiriram novo relevo e são hoje as novas áreas de expansão. Seja na reconversão do edificado e dos tecidos económicos e sociais, seja pelo terreno entendido como livre e reconvertível para novos usos, o seu motor é um conjunto de actividades que não necessariamente o turismo, isto é, as suas dinâmicas atractoras são diferentes daquelas dos centros urbanos, que denominámos “nevrálgicos” 3.

Em Lisboa, o eixo Beato-Xabregas-Marvila e no Porto o eixo Bonfim-Campanhã estão a passar por profundos processos de transformação apenas comparáveis àqueles que lhes deram vida nos inícios da industrialização. Olhando ao futuro próximo vemos, e intuímos, diversos caminhos nas transformações territoriais e arquitectónicas que chegam velozes e por diversas vias. Do discurso político à conversa de café, da mesa do estirador às montras das imobiliárias, da revista de tendências às páginas dos jornais nacionais: as zonas orientais são campos de disputa de interesses, de intenções e de expectativas que estão na ordem do dia. Se nos media urbanos e nos roteiros cool surgem fotografias com novidades e novas dinâmicas para consumo cultural vemos como a Time Out Lisboa desempenha um papel relevante no novo mindmap de Lisboa Oriental enquanto no Porto o jornal de propaganda camarária Porto. nos faz chegar os renders e planos virtuais que anunciam futuros equipamentos e infra-estruturas, como o futuro projecto da ponte a desenhar sobre o Douro, ou a Estação Intermodal de Campanhã, concurso divulgado em Fevereiro de 2017.

O investimento público e o planeamento do Estado (seja da administração local ou central) andam a par do desejo de especulação sobre o edificado, em muitos casos abandonado, e sobre os terrenos vazios, quase todos privados, aqueles que Solà-Morales nos anos 1990 denominou por terrain vague. Sobressaem os investimentos privados nos dois grandes complexos públicos a Manutenção Militar em Lisboa e o Matadouro no Porto apresentados como âncoras para catalisar a regeneração oriental, e sobre outros equipamentos públicos que se deseja vir a deslocalizar, como o Mercado Abastecedor do Porto, ou a Escola Secundária de Marvila abandonada para passar o TGV. Distinguem-se estas intenções de especulação sobre o solo da necessária qualificação das zonas, e ainda daquelas ocupações temporárias, ou mais informais, para uso cultural e terciário por colectivos artísticos e pequenas empresas ligadas à cultura.

Por entre as intervenções, subsistem necessidades da mais básica civilidade e modernidade pois, esquecidas durante décadas pela gestão das suas cidades, no século XXI são ainda reivindicadas, pelas comunidades locais, a habitação qualificada, os transportes públicos, os equipamentos, ou mesmo o saneamento e higienização pensemos nos casos das 957 ilhas na cidade do Porto, ou nos bairros sociais em Lisboa e Porto 4. A par das necessidades por suprir, estas comunidades vêem os focos voltados para as suas freguesias que, antes de conhecerem a prometida qualificação, sofrem pressão imobiliária sobre o edificado mais aprazível, como o demonstra o recente caso de bullying imobiliário das novas empresas proprietárias sobre os moradores do edifício n.º 24 da rua do Açúcar 5.

 

Euforia e regeneração urbana

A transformação das zonas desindustrializadas é um fenómeno internacional que ocorre há diversas décadas segundo as visões de política urbana e as oportunidades de investimento, tal como o foi a industrialização. Além das necessidades urbanísticas e infra-estruturais, das dinâmicas económicas e sociais, e da pontualíssima patrimonialização de algum edificado industrial, os grandes motores da regeneração a Oriente são, cada vez mais, o investimento privado em zonas com intervenção pública, variando esta com os ciclos económicos e com a valorização do imobiliário.

No final do século XX, os anos 80 e 90 trouxeram a euforia dos grandes eventos e investimentos nacionais e internacionais às zonas desindustralizadas, especialmente àquelas situadas junto às frentes ribeirinhas orientais com vista de mar e rio. As waterfronts, com os seus planos de regeneração, transformaram zonas desqualificadas em novos tecidos urbanos altamente infra-estruturados e qualificados, como o fizeram as docklands em Londres, ou a Expo’98 em Lisboa 6. Aos terrenos anteriormente decadentes, estes planos trouxeram programas de lazer e cultura em recintos de eventos internacionais posteriormente tornados cidade, ou a criação de novos serviços terciários e habitação de luxo, gerando cidade através de investimento tanto público como privado. As suas estratégias aproximam-se em diversos aspectos; a criação de novas centralidades urbanas, novas redes e nós intermodais de transportes públicos, pontuando, através da arquitectura, a sua relevância no skyline das cidades com novos edifícios icónicos e visíveis a grande distância, como torres, conjuntos de arranha-céus de empesas e hotéis, ou ainda através de extensas coberturas escultóricas com geometrias complexas que cobrem espaços semi-exteriores, semi-públicos, semi-privados, como os de Calatrava e de Gehry.

Dois paradigmas fundamentais de regeneração nos chegam das cidades espanholas: primeiro, as Olimpíadas de Barcelona 92, particularmente os sectores residenciais; um pouco depois, em 1997, Bilbao foi re-significada pelo famoso “efeito Guggenheim”. Em ambos os casos foi cortada a relação com o passado industrial das zonas, interpretadas como novos tabuleiros urbanos.

Barcelona concluiu a regeneração dos antigos terrenos industriais da frente marítima entre diferentes fases, entre 1992 e 2004 7, transformando inicialmente a área entre o parque da Ciutadella e a zona costeira de Poblenou, com o plano da zona residencial e de alojamento da cidade Olímpica para o Jogos de 1992 8. Seguiu-se o  Fórum Universal de las Culturas 2004 que devolveu um recinto regenerado no extremo mais oriental, no Besós. Ambos planos para 1992 e 2004, rasgaram novas avenidas, parques e praias urbanas, criaram espaço público e quarteirões de habitação, afirmando também novas peças icónicas desenhadas por starchitects arranha-céus desenhados por SOM/Skidmore, Owings & Merrill, a escultura pública criada por Frank Gehry, o grande edifício plataforma de Herzog & de Meuron, ou ainda o parque urbano criado por Alejandro Zaera Polo, entre outros autores que intervieram neste “tabuleiro”. Nos interstícios da zona oriental, perdurou o bairro industrial expectante denominado Poblenou, que passaria por um processo distinto, como veremos.

O famoso efeito Bilbao é talvez o mais reconhecido paradigma da regeneração urbana na viragem do século, pelo que dispensa descrições extensas: a concepção de um ícone arquitectónico multimilionário, com projecto de Frank Gehry e a marca Guggenheim, que inscreve uma nova peça de grande escala na frente ribeirinha da cidade, estrategicamente situada entre o rio, a cidade e a vertiginosa ponte de acesso. A conjugação da marca do museu internacional com a assinatura do arquitecto, e as formas escultóricas e espectaculares que juntos constroem, afirmam definitivamente esta pequena cidade industrial do país basco no panorama internacional da arquitectura, da cultura e da arte contemporânea. A euforia do ícone de titânio criou uma nova imagem da cidade, promovendo a transformação de uma zona portuária e industrial metalomecânica numa zona cultural cosmopolita e, sobretudo, catapultando Bilbao para um circuito cultural globalizado.

A euforia económica sentida na viragem do século plasma-se em planos com arquitecturas icónicas, bem como noutros investimentos privados em sua volta que capitalizam o valor simbólico, e real, da regeneração. A regeneração urbana em tabula rasa gera referências de sucesso que residem na projectação tanto do edificado e viário como dos quotidianos, trazendo nova textura e vida cultural e urbana às cidades, aguçando o apetite imobiliário. As waterfronts orientais são zonas excluídas que se tornaram zonas exclusivas, acentuando as desigualdades com as comunidades limítrofes, ou mesmo com o restante país 9.

No Porto, identificamos alguns destes traços no Plano de Pormenor das Antas, desenvolvido para o Campeonato Europeu de Futebol de 2004 que, contudo, ficou aquém das suas projecções. A intervenção contemplou a criação de um ícone arquitectónico e cultural a Oriente, o Estádio do Dragão, situado numa zona de cota elevada e marcando o skyline do vale de Campanhã e da Via de Cintura Interna (VCI), que assinala a entrada na cidade para o atravessamento Norte-Sul. A nova estação de Metro do Dragão (Antas), intersectando o traçado da VCI, é a estação mais oriental da cidade, no topo das novas avenidas e arruamentos criados com lotes para virem a receber edifícios de habitação de gama alta que, em 2018, são mantidos vazios na quase totalidade. Rematando, um novo centro comercial com hotel e hipermercado. Distinto de uma regeneração de tecido industrial, o pretexto e o sucesso deste plano centra-se na criação do grande ícone, o Estádio, que serve agora de hub: a estação de Metro do Dragão será uma das portas de entrada a Oriente, nomeadamente, na ligação com o Matadouro.

O grande projecto municipal de arranque da regeneração da zona oriental é o Matadouro Industrial do Porto, cujo projecto arquitectónico foi anunciado em 2016 na Trienal de Milão. Recorde-se que à data de 2018, o Porto, cidade da indústria e do trabalho, não teve ainda um equipamento industrial de valor patrimonial reconvertido para uso cultural (público ou privado), como ocorreu nas principais cidades europeias, nos últimos 20 anos a central eléctrica reconvertida por Herzog & de Meuron para a Tate Modern de Londres, as fábricas de aparelho de tijolo dos Caixa Fórum de Madrid e Barcelona reconvertidos também por Herzog & de Meuron e por Arata Isozaki, ou mais recentemente, pela mão de Rem Koolhaas, a Fondazione Prada, de Milão.

O programa multifuncional proposto para o complexo do Matadouro alberga usos culturais, empresariais, espaços multiuso para a comunidade, bem como um novo edifício-ponte, que vence a cota de “afundamento” do complexo face à VCI e ao Metro, criando um novo atravessamento entre a cidade ocidental e a oriental. O projecto de 2016, de Garcia & Albuquerque (G&A), mantinha a linguagem original do complexo de 1910 e integrava as infra-estruturas necessárias, reservando uma nova linguagem para o edifício e a ponte a construir no fundo do recinto, apostando numa abordagem contida que valorizava o património industrial.

Após concurso público para construção e exploração do Matadouro, em Maio de 2018 foi anunciado o vencedor que, com grande surpresa, veio alterar profundamente a estratégia anunciada em Milão: novos arquitectos internacionais, nova linguagem arquitectónica, novo montante de investimento e, sobretudo, um novo ícone arquitectónico para a cidade, a Oriente, ligando Campanhã ao Estádio do Dragão, sobre a VCI.

Adjudicado à Mota-Engil, surge um novo projecto arquitectónico concebido pelo arquitecto japonês Kengo Kuma em co-autoria com o escritório português OODA, apresentado publicamente pela Câmara Municipal do Porto (CMP) na divulgação dos resultados do concurso. Se a primeira escolha tinha sido uma indigitação directa, sem concurso, a uma dupla jovem e sedeada em Campanhã, privilegiando a comunidade, a coesão social e o saber local, a revelação do concurso de construção viria a revelar a direcção oposta, uma equipa de starchitects que propõe mediatizar a zona com um novo ícone de investimento privado 10.

No que se refere à regeneração urbana, o novo projecto “encaixa” fisicamente no puzzle incompleto do plano das Antas, seguindo várias premissas identificadas nas intervenções paradigmáticas dos anos 90. O projecto arquitectónico cria uma nova imagem icónica para a cidade oriental apostando num nome sonante da arquitectura internacional. Um edifício com cobertura escultórica que se “estende” sobre o terreno e sobre as via de transporte, afirmando a escala metropolitana e relegando a questão patrimonial para um sub-plano.

Vemos neste novo projecto um “tatami topográfico” que cria uma quinta fachada ao Matadouro: uma cobertura extensa e complexa, para ser primordialmente vista à distância a partir da VCI (eixo metropolitano) e das Antas (ligação a Ocidente), uma extensa superfície em telha cerâmica e vidro que recobre a quase totalidade do recinto patrimonial. Os seus dois extremos são os pontos de contacto com a cidade, a Norte estende-se sobre a VCI cobrindo o novo viaduto pedonal que ligará ao Metro do Dragão, fazendo a ponte com o outro ícone a seu lado, o Estádio do Dragão. A Sul, levanta-se sobre a antiga entrada na rua de São Roque, abrindo uma praça. Deixando-se pontualmente intersectar pelos edifícios antigos, a nova “cobertura/fachada” transforma a linguagem preexistente, afastando-se definitivamente das referências citadas por G&A ao Matadero de Madrid, ou aos Palais de Tokyo e Centquatre, ambos em Paris, e aproximando-se da assertividade de uma nova peça autoral icónica.

Importa referir que na zona oriental do Porto não existiu uma requalificação estruturante da waterfront, mas a sequência de intervenções viárias e de equipamentos isolados: a criação da marina do Freixo, que exclui o Museu da Imprensa; a recomposição do nó viário para ligação a Gondomar, libertando os jardins barrocos do Palácio do Freixo; seguidos da recente consolidação da avenida Gustavo Eiffel e das escarpas das Fontaínhas, que estavam em risco de derrocada. Aguarda-se o desenho da nova ponte anunciada em 2018 e que ligará, à cota baixa, ambas as margens do rio Douro, com nova atractividade e conectividade para a escarpa entre a ponte de D. Maria, a sede da Mota-Engil e a rotunda do Freixo.

 

Nostalgia e reconversão do edificado

Outros motores de transformação partem da iniciativa cidadã, da ocupação e apropriações de edifícios vazios em estratégias bottom-up que operam à micro-escala, ou de programas e actividades privadas que ocupam armazéns cuja espacialidade se adequa a novos usos. Reconverter é dotar os espaços de condições para novas actividades e gerar novas dinâmicas, nem sempre de génese arquitectónica ou patrimonial, ainda que contribuindo para a sua preservação.

A progressiva transformação cultural, social e económica de edifícios abandonados e em zonas obsoletas em novas referências culturais é um conhecido processo iniciado por comunidades artísticas e boémias, que eleva a atenção sobre essas zonas e, eventualmente, as inscreve nos mapas de investimento e especulação, encerrando um círculo do qual as comunidades locais e os próprios artistas ficam excluídos por questões económicas – o controverso “afidalgamento” ou “gentrificação” das cidades. Partindo de intervenções mais casuísticas, a ocupação e aluguer de espaços industriais devolutos em bairros degradados, solução para suprir necessidades de espaço de trabalho amplo, “barato” e livre de constrangimentos permite criar locais de apresentação de colectivos e de associações culturais, bares, discotecas e outros locais de manifestação de contracultura, com efeitos importantes culturais e urbanísticos.

Um eficaz meme que circula nas redes sociais explica as consequências do fenómeno: o edifício banal de uma fábrica abandonada faz parte do cenário de um bairro degradado (os seus três pisos remetem-nos para os EUA); o edifício é modestamente recuperado e ocupado, ostenta o nome studios e tem a porta aberta, revelando os seus ocupantes pela presença de obras de arte e bicicletas. Numa terceira fase, muda de cor e de nome, já de um local de estúdios de artistas passa a um colorido hub de indústrias criativas onde se abre uma cafetaria e se integra energia eólica e uma esplanada no terraço. Por fim, acompanhando a subjacente transformação do bairro, o lote dá origem ao imobiliário que nele constrói um bloco de apartamentos com arquitectura contemporânea – bohemia apartments. Inadvertidamente, num processo bottom-up, a ocupação do banal edifício devoluto eleva o valor da arquitectura, gerando atractividade e dinâmica na zona urbana, levando à valorização do solo e à “gentrificação”. Também se poderia alegar a eventual descaracterização do edificado industrial e da história desse passado recente. Sobre a comunidade local e os antigos habitantes, nada é revelado. Será esta apenas uma caricatura?

A reconversão de armazéns industriais por artistas está imortalizada nos lofts de Nova Iorque dos anos 1960-70 que, de Donald Judd a Andy Warhol, marcam o imaginário urbano e cultural, decisivos para a espacialidade dos novos museus de arte contemporânea por detrás do estúdio e do loft está o embrião dos grandes museus de arte instalados em fábricas reconvertidas, um pouco por todo o mundo. Em Londres, tanto na zona sudeste das docklands, a ocupação de hangares teve especial visibilidade nos anos 80 com as exposições da young british generation, como, já no fim do século, em Bricklane com a movida urbana e a ocupação das antigas naves cervejeiras. Também em Barcelona, o esquecido bairro de Poblenou albergou artistas e pequenas empresas criativas, entre a efectiva “okupação” e o comodato acordado com a cidade e o governo regional, e a atractividade do plano urbanístico 22@, que veio trazer condições infra-estruturais de excelência para negócios mais dependentes das novas tecnologias. Aqui, desindustrialização e sociedade pós-industrial, no seu sentido mais próximo da informação e das tecnologias, expressam-se na sua maior interligação.

Este modo de intervenção “injecta” vida no edificado, que o vê redespertar, tendendo a celebrar o passado industrial pela qualidade espacial e, também, pela força material e visual da sua arquitectura. O interesse e respeito pelo passado implícitos nesta abordagem pode aproximar-se daquela do património industrial, sendo, contudo, movida por outros aspectos: por um lado, a escassez de meios e recursos implícita nas ocupações bottom-up levam ao convívio com o edifício, os elementos preexistentes e à sua preservação. Eventualmente vieram a definir uma estética e uma ética de intervenção que valoriza o aspecto patrimonial. No sentido oposto, após a valorização imobiliária e a captação de tendência cool, a “fetichização” dos elementos “diferenciadores” dos espaços sugere a continuidade do passado, e sua conservação, que, em casos extremos, levam à encenação de decors e ambientes mais ricos, interessantes e “mais industriais” do que aquelas da própria indústria em laboração ou a tendências de decoração de inspiração mecânica e orientada para lofts, como o industrial chic. Em Lisboa Oriental sente-se na rua a reconversão, as novas fachadas coloridas, a ilustração e letreiros vintage, a comunidade jovem, cosmopolita e hipster, denunciam as novas actividades por detrás das antigas fachadas industriais 11. No Porto Oriental o fenómeno é mais contido e concentrado 12, nas ruas do Bonfim e Campanhã a reconversão é ainda pouco visível, trata-se mais de uma revitalização de usos, oscilando as iniciativas independentes e bottom-up e as tentativas pontuais de intervenção cultural do Estado.

Em 2008 numa rua privada transversal à avenida Bessa Leite (a avenida da estação ferroviária de Campanhã) abriu, num armazém indistinto e ocupado em bruto, o Espaço Campanhã, galeria independente dedicada à arte contemporânea que aí reuniu artistas que até então expunham em espaços alternativos do centro do Porto. Este espaço seguiu a ocupação do Centro Comercial Stop por bandas de música e do estúdio de teatro As Boas Raparigas, todos num raio de 500 metros. Após o Espaço Campanhã, seguiram-se, do outro lado da avenida, em 2012, na rua de Miraflor, o Espaço Mira e o Mira Fórum, desenhados pela arquitecta Adriana Floret, dedicados à fotografia, seguidos de um conjunto de lofts na mesma rua onde se instalam artistas, professores universitários e outros liberais, em edifícios recuperados por Pedro Bandeira e Camilo Rebelo, entre outros. Na sequência do interesse pela zona, na mesma rua privada do armazém do antigo Espaço Campanhã, estão em construção os futuros estúdios Plataforma Campanhã de gravação de som, um complexo privado que albergará, também, a futura Fonoteca Municipal.

Se, no passado distante, Aurélia de Sousa ou António Carneiro por ali tiveram casa e atelier, desde os anos 1990 que a zona oriental tem vindo progressivamente a incorporar programas culturais de forma inconstante e descontínua. Caso exemplar, no início dos anos 1990, as Moagens Harmonia, nos jardins do barroco Palácio do Freixo, acolheram as ambiciosas exposições internacionais de arte, Jornadas de Arte Contemporânea, programadas por João Fernandes, elevando o interesse sobre a arte contemporânea e, também, sobre o histórico edifício industrial abandonado e que se viria a transformar fugazmente na sede do Museu da Ciência e da Indústria. O museu seria desmantelado em 2006 para dar lugar à ala de quartos do Hotel Pestana estando, paradoxalmente, desde então os conteúdos museológicos armazenados na zona industrial ocidental da cidade.

Também no Freixo, nos edifícios da antiga Central Eléctrica do Freixo, sob a ponte homónima, instalou-se o Cace Cultural que se afirmou em 2001 como espaço de exposição de arte e de apresentações performativas, entretanto mais escassas, e hoje aloja uma incubadora do IEFP e os espaços da companhia Circolando, entre outros. Na mesma dinâmica, um pouco mais a Norte, o referido Matadouro Industrial do Porto, enquanto o seu primeiro projecto de arquitectura esteve em preparação, entre 2015-16, acolheu iniciativas de carácter cultural semelhantes àquelas que ocorreram anteriormente no Freixo e nas Moagens Harmonia. Ali está agora prometida a reinstalação do Museu da Indústria e de outros espaços culturais, fixando a sua memória.

 

Transgenia e dobras no território

As tensões entre história, cultura material e imaterial e as novas narrativas produtivistas das transformações projectadas para estes territórios são outra dimensão em disputa. Como vimos, inicialmente zonas rurais exploradas por casas senhoriais e por ordens religiosas, posteriormente áreas industriais atravessadas por infra-estruturas de energia e transportes, alojando também complexos militares/policiais, são hoje territórios híbridos que preservam características contraditórias das diversas épocas: bolsas de pequena actividade agrícola, núcleos de oficinas mecânicas e de armazéns de mesteres artesanais, jardins e palacetes barrocos, túneis, viadutos e grandes chaminés, arvoredos, como também preservam descampados, amplas áreas abandonadas e de futuro incerto.

Distam 10 metros entre a ponte romana sobre o rio Tinto e as retroescavadoras que neste Verão arrastam pedregulhos de granito nas margens, agora descontaminadas, do rio que estrutura o novo/futuro Parque Oriental da Cidade do Porto, bucólico, romântico, reconstruído e profundamente pós-industrial. Como contar e escrever esta história, com que narrativa? O geógrafo urbano Álvaro Domingues propõe-nos compreender que as paisagens hoje são “transgénicas”, como no vasto território do Vale do Ave: “Como é verdade que apenas reconhecemos imagens com memórias de outras imagens, é a simultaneidade da ocorrência de sinais de um e de outro mundo – campos, casas, fábricas, estrados, comércios… – que alimenta esta ilusão de não admitir a metamorfose dupla (ou a dupla perda do campo e da cidade). É precisamente aqui que entra a metáfora transgénica – para quebrar este ciclo vicioso que teima em não ver para lá dos (pré) conceitos com que olhamos a realidade.” 13

A concepção de uma paisagem transgénica é-nos útil para compreender a condição presente do vale de Campanhã e da sua envolvente, na intersecção entre aquela mais urbana das Antas-Corujeira-Bonfim, a mais rural pelos seus interstícios, a mais remanescente pelos nós e túneis viários e ferroviários, e suas gradações industriais. Por entre as três cisões definidas pelas vias de transporte – linhas da ferrovia, VCI-Auto-estrada e Circunvalação – coexistem a alta velocidade dos transportes privados e colectivos, a ruralidade e a recriação do jardim barroco, a indústria e a horta urbana, a sucata automóvel e alguns equestres, a par da incompletude, da falência e dos novos planos e projectos que se interligam num território híbrido. Esta sua condição caracteriza e determina o seu futuro.

Olhemos a Oeste, industrialização e desindustrialização ocorreram com maior velocidade. Na Boavista, no último terço do século XX, as fábricas Aviz, das Sedas, do Graham, ou a Ach. Brito, deram lugar a complexos habitacionais que urbanizaram os antigos terrenos das fábricas, destacando-se os complexos habitacionais do Graham (Foco) ou do(a) Aviz. No Bessa, o vazio da demolição da Fábrica de Fibra Comercial Lusitana deveria ter dado, em 2008, origem ao complexo habitacional suspenso, promovido pela Salvador Caetano, ironicamente denominado Why Not? 14. Os antigos palacetes dos industriais, situados fundamentalmente a Ocidente onde se destacam a Boavista e a Marechal Gomes da Costa, foram reconvertidos em serviços que buscam representação simbólica através da qualidade da arquitectura sedes de empresas financeiras, bancos privados, colégios, ou, mesmo, o Museu de Arte Contemporânea. Mais recentemente, uma terciarização de cariz popular avança com a transformação em novos usos tradicionalmente suburbanos, seja a adaptação a um drive-in de famosos hamburguers, a demolição de habitações para cadeias de supermercado, ou para a churrasqueira Tourigalo. Se na sequência diacrónica de uma avenida nobre da cidade vemos inconsistência, a tal “transgenia”, conceber alguma coerência a Oriente é de todo impossível.

No Porto, o passado industrial não foi verdadeiramente fixado nem a sua memória celebrada. A nostalgia implícita na reconversão é mais próxima do pragmatismo da ocupação de espaços disponíveis do que de uma noção de valor histórico ou arquitectónico – pensemos na Companhia Aurifícia, nas Moagens Harmonia, na Central Eléctrica, etc. O novo entusiasmo pela regeneração e a demolição dos espaços, como aconteceu nos anos 1980-90 pela Europa, traz novas delapidações do edificado, antes de uma selecção estratégica e coerente sobre o património cultural da cidade, no seu conjunto e antes de uma leitura estratégica sobre a paisagem cultural oriental.

Nos anos 90, ante as propostas de regeneração-reconversão em Barcelona e a promessa de total transformação, dizia Ignasi de Solà-Morales: “Pues bien, de la misma manera que la cultura urbana decimonónica desarrolló los espacios de los parques urbanos como respuesta y antídoto a la nueva ciudad industrial, nuestra cultura postindustrial reclama espacios de libertad, de indefinición y de improductividad, pero esta vez no ligados a la noción mítica de la naturaleza sino a la experiencia de la memoria, de la romántica fascinación por el pasado ausente como arma crítica frente al presente banal y productivista.” 15 Pois bem, algumas das dobras do território oriental têm estas qualidades e o potencial evocativo que merece permanecer intocado. Se o conceito proposto por Solà-Morales se tornou famoso e deu muito que ler nestas duas décadas e meia, seria especialmente interessante testá-lo e vê-lo convictamente plasmado também no Oriente do Porto: o improdutivo como espaço de resistência crítica.

Durante o trabalho de campo fomos sendo surpreendidos pela efectiva transformação de terrenos abandonados nos extremos cardeais de Campanhã: a Norte, a demolição em curso da histórica Companhia Portuguesa do Cobre para dar lugar a uma nova superfície comercial; a Sul, a demolição em curso dos armazéns industriais entre as Moagens Harmonia e o rio, para dar lugar a uma nova ala de quartos do Hotel Pestana; a Oeste (do Oriente), comenta-se a transformação da mítica ruína da Garagem Ford num novo hotel e experimentam-se soluções viáveis para as ilhas – enquanto o turismo reforma muitas delas; no epicentro, o projecto para o Matadouro e a estação Intermodal, com extensões à reformulação dos nós de São Roque; e a Este, e descendo em direcção ao rio, a obra em curso do Parque Oriental da Cidade, que oferece um novo espaço verde de qualidade.

O Porto Oriental é um território transgénico, híbrido, multitemporal que se entende como “reserva natural” para o mesmo produtivismo neoliberal e especulador que assola as cidades. Se a velocidade com que se planeia intervir propõe compensar as assimetrias e a desestruturação de décadas, não podemos esquecer que ela é em grande parte espoletada pelo esgotamento do mercado e das oportunidades nos centros.

 

 


 

 

* O trabalho de campo iniciou-se no período de pesquisa para o programa cultural Open House Porto 2018, que co-comissariei com João Paulo Rapagão, pelo que agradeço a discussão e o companheirismo do João Paulo, bem como à produção do Open House Porto/Casa da Arquitectura.