ENSAIO

Pavilhão!?

A determinação espacial no discurso curatorial sobre representações nacionais nas bienais de arte de Veneza e São Paulo

Por Lígia Afonso e Ughetta Molin Fop
Investigadoras do Instituto de História da Arte, Faculdade Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa
Maio 2016

Inaugurada em 1895, a Bienal de Veneza é fundamentalmente caracterizada pela sua organização em pavilhões nacionais. Até 1907, ano em que foi construído o primeiro pavilhão (da Bélgica), as obras que participavam na Biennale eram expostas exclusivamente dentro do Palácio das Exposições, edificado nos Giardini. Nas salas eram exibidas obras de artistas italianos, por regiões de origem, e estrangeiros já então organizados por países. Com o objectivo de aumentar a presença internacional, então minoritária, e para aliviar a organização veneziana dos custos das participações estrangeiras, a Biennale encorajou a construção de pavilhões nacionais de acordo com o modelo e a lógica das grandes exposições universais nas quais os Estados-Nação produziam a matéria simbólica que preceituava o seu próprio culto: o dispositivo de apresentação dos objectos variava entre o modesto stand em pavilhão comum à construção de pavilhões isolados, efectivos “monumentos” de propaganda.

 

A Bienal de São Paulo inicia-se em 1951, instituindo-se como a segunda bienal no mundo. As suas edições foram-se sucedendo, realizadas sob direcção rotativa de curadores-chefes, e tendo por princípio organizativo a divisão entre “salas gerais” e “representações nacionais”, seguindo o modelo veneziano inicial em pavilhão único, primeiro implantado na esplanada do Trianon, na Avenida Paulista, depois no Pavilhão Manuel da Nóbrega, já no complexo do Ibirapuera de Óscar Niemeyer, para ali se fixar finalmente no Pavilhão das Indústrias, hoje Ciccillo Matarazzo.

Importa destacar a topografia geopolítica nos modelos de Veneza e São Paulo, cuja diferenciação é patente na arquitectura dos edifícios utilizados para entender os desenvolvimentos do modelo das representações nacionais e justificar que São Paulo o tenha, a partir de um determinado momento, colocado em crise para finalmente terminar com a sua existência em 2006.

O modelo dos pavilhões nacionais começa a ser posto em causa em Veneza a partir dos anos 1960 e denunciadas a sua obsolescência e academismo, a prepotência económica fixa na planta dos Giardini e a impossibilidade de uma unidade conceptual da exposição. Estas objecções endureceram com as contestações estudantis de 1968, que também acusaram a Biennale de escolhas artísticas politicamente tendenciosas ligadas a negociações diplomáticas na selecção e premiação dos artistas, de privilegiar o mercado ao invés do discurso crítico e de estar ancorada a um modelo de exposição ultrapassado e condicionante. Na sequência, os historiadores de arte Gillo Dorfles e Germano Celant, entre muitos outros, propuseram a demolição dos pavilhões, mas esta radicalidade esbarrou no facto de os pavilhões pertencerem às nações que os construíram e que os mantêm, funcionando como embaixadas onde vigora o princípio deextraterritorialidade, estando a Biennale legalmente impedida de actuar sobre os mesmos.

 

Mapa dos pavilhões na área dos Giardini, Bienal de Veneza 2015
Fonte: La Biennale
Mapa dos pavilhões na área dos Giardini, Bienal de Veneza 2015
Fonte: La Biennale
Vista do parcial do parque Ibirapuera (projecto de Oscar Niemeyer) com o edifício da Bienal ao fundo
©Sergio Valle Duarte - Obra do próprio, CC BY 3.0
Vista do parcial do parque Ibirapuera (projecto de Oscar Niemeyer) com o edifício da Bienal ao fundo
©Sergio Valle Duarte - Obra do próprio, CC BY 3.0

 

Se o modelo de representações nacionais em pavilhão único em São Paulo permitiria à partida harmonizar as relações de poder entre os países participantes, pela anulação da competitividade arquitectónica patente em Veneza, assim como veicular o investimento para a obra ao invés de para o aluguer ou construção do espaço para a conter, a justaposição das obras, a escala de ocupação do espaço comum e a distribuição de cada compartimento nacional no mapa geral da exposição, evidenciam, por outro lado, a hegemonia de recursos na sua produção e o favorecimento de vizinhanças estratégicas, perpetuando a distinção político-económica dos países participantes. É baseada nessas contradições que uma discussão análoga à de Veneza deflagra em São Paulo. Em 1967, um grupo de profissionais das artes subscreve o documento Por uma reestruturação das Bienais de São Paulo, que apontava à instituição alguns dos problemas já diagnosticados em Veneza, entre outros, a determinação axial das “representações nacionais” no desenvolvimento da exposição, sobretudo tendo em conta a fraca fiabilidade dos critérios de inclusão e exclusão inerentes às selecções de índole diplomática. Mais politizados, os documentos Non à la Biennale de São Paulo, produzido em Paris em Junho de 1969, que apelava ao boicote dos países estrangeiros à X edição contra as acções violentas da censura brasileira; e Contrabienal, publicado e divulgado na sequência por um grupo de artistas norte-americanos e latino-americanos com Gordon Matta-Clark à cabeça, deram continuidade à revolta, levando por exemplo à ausência das representações de França e dos Estados Unidos da América. Finda a ditadura brasileira, a manutenção das representações nacionais foi sendo discutida, e as edições dirigidas por Walter Zanini e Sheila Leirner (de 1981 a 1987) inovaram na alteração dos formatos curatoriais, introduzindo critérios de analogia de linguagem artística na organização da exposição de forma a ultrapassar o determinismo financeiro na manutenção da categoria identitária.

 

Capa de Contra Bienal, catálogo da exposição (Nova Iorque, Museo Latinoamericano, 1971) Organizado, distribuído e produzido por Movimiento de Independencia Cultural Latinoamericano (MICLA): Luis Wells, Luis Camnitzer, Carla Stellweg, Liliana Porter e Teodoro Maus
Fonte: http://unmismosol.info/blog/nosotros-estamos-aqui
Capa de Contra Bienal, catálogo da exposição (Nova Iorque, Museo Latinoamericano, 1971) Organizado, distribuído e produzido por Movimiento de Independencia Cultural Latinoamericano (MICLA): Luis Wells, Luis Camnitzer, Carla Stellweg, Liliana Porter e Teodoro Maus
Fonte: http://unmismosol.info/blog/nosotros-estamos-aqui

 

Também em Veneza, pós-89, alguns curadores gerais tentaram atualizar a Biennale e viabilizar o sentido da sua organização em pavilhões, escolhendo temas que estimulassem a reflexão sobre transnacionalismo. Na edição de 1993, Achille Bonito Oliva solicitou explicitamente aos comissários dos pavilhões que na selecção dos artistas participantes não fossem utilizados critérios de proveniência ou local de nascimento. A Alemanha convida então Nam June Paik, de origem coreana e residente na Alemanha, e Hans Haacke, nascido na Alemanha e residente nos Estados Unidos da América, e o pavilhão ganha o Leão de Ouro. Haacke extirpou o pavimento de mármore do pavilhão e esmagou-o em pedaços, tornando o pavilhão no próprio espaço a ser contestado, e o pavilhão alemão, com a história da sua reconstrução em 1938 pelos nazis, o instrumento de questionamento sobre a instabilidade do espaço da nação. Haacke tomou, pela primeira vez em Veneza, o pavilhão nacional como um objeto de investigação, mas a radicalidade do seu gesto permaneceu, à época, um exemplo bastante isolado.

 

Hans Haacke, "Germania"
Vista interior do pavilhão da Alemanha, Biennale de Venezia 1993
©Roman Mensing / artdoc.de
Fonte: http://www.artdoc.de/html/venedig1_2.html
Hans Haacke, "Germania"
Vista interior do pavilhão da Alemanha, Biennale de Venezia 1993
©Roman Mensing / artdoc.de
Fonte: http://www.artdoc.de/html/venedig1_2.html
Pavilhão da Alemanha, Biennale de Veneza
Arquitectos: Daniele Donghi (1909), Ernst Haiger (1938-1939)
©Gabriele Basilico
Fonte: http://www.stylepark.com/en/news/germania-in-venezia/367115
Pavilhão da Alemanha, Biennale de Veneza
Arquitectos: Daniele Donghi (1909), Ernst Haiger (1938-1939)
©Gabriele Basilico
Fonte: http://www.stylepark.com/en/news/germania-in-venezia/367115

 

Na Bienal de São Paulo foi Lisette Lagnado, curadora da sua XXVII edição, quem, em 2006, no quadro de um projecto curatorial que levantava assuntos políticos como a violação de territórios e direitos, o valor da diferença entre “pátria” e “terra”, “nacionalidade” e “exílio”, acabou com as representações nacionais e as suas fronteiras expositivas. Esta rejeição definitiva, até hoje não mais retrocedida, cumpriu com sucesso e colocou um ponto final à discussão latente nas duas décadas anteriores. A crítica pós-nacionalista, mais ou menos subtil, ao modelo dos pavilhões incorporou-se à época como tendência também em Veneza, sobretudo nas escolhas curatoriais e artísticas dos pavilhões nacionais. Só para dar alguns exemplos, em 2009 a Biennale ficou marcada pelo convite da Alemanha ao britânico Liam Gillick; pela criação do bairro transnacional da Dinamarca e Países Nórdicos encenado por Emlgreen & Dragset; pela negatividade de Claude Lévêque que assinalou, com bandeiras negras, o luto institucional do pavilhão francês; ou pelo naturalismo de Roman Ondák, que encorajou a flora autóctone a invadir e habitar o pavilhão da Eslováquia, assim o engolindo e fazendo-o desaparecer; na edição de 2013, França e Alemanha decidiram trocar os respectivos pavilhões e convidar artistas não necessariamente franceses ou alemães, sublinhando a importância da cooperação e comunicação internacional e a permeabilidade cultural das fronteiras nacionais; e Lituânia e Chipre partilharam um único pavilhão, projecto e curador, Raimundas Malašauskas.

Poster of the 27th São Paulo Biennale
Authors: Rodrigo Ceviño Lopez (after the work Speaker's Corner by Jorge Macchi)
Source: http://imgs.fbsp.org.br/files/Cartaz_27.jpg
Poster of the 27th São Paulo Biennale
Authors: Rodrigo Ceviño Lopez (after the work Speaker's Corner by Jorge Macchi)
Source: http://imgs.fbsp.org.br/files/Cartaz_27.jpg

Outros pavilhões fizeram escolhas semelhantes, convidando curadores e/ou artistas provenientes de diferentes áreas geográficas em diálogo, como o caso dos pavilhões cubanos de 2013 e 2015, que expuseram artistas cubanos em confronto com artistas internacionais (Pedro Costa e Rui Chafes, entre outros, em 2013). Mas a grande maioria dos países organizadores continuou a seguir uma tendência mais clássica, a da apresentação de um ou mais artistas com origem directa no país, fórmula genericamente considerada obsoleta pela crítica do meio. De facto, persistem vários problemas ligados ao formato de exibição organizada por pavilhões, sendo o mais imediato a discrepante visibilidade entre os que possuem um edifício dentro da área dos Giardini; os que alugam um espaço dentro do Arsenale; os que se encontram espalhados pela cidade em estruturas fixas ou nómadas; e até dos casos particulares como o da Palestina que, como Estado não reconhecido, não pode ter um pavilhão nacional mas que foi propondo, ao longo das várias edições da Biennale, espacialidades e formatos alternativos que promoveram uma reflexão sobre a sua própria condição política.

Os pavilhões nacionais em Veneza alteraram-se profundamente, mais em conteúdo do que na arquitectura dos seus edifícios, e foi a resiliência e necessidade constante de adaptação que manteve sempre acesa a Biennale como plataforma preferencial para a reflexão endógena sobre o significado de uma participação nacional numa exposição internacional. Uma tautologia viciosa, nunca colmatada ou ultrapassada em definitivo, que não logrou desierarquizar países e participantes, como a ausência da heterogeneidade arquitectónica permitiu que São Paulo naturalmente o fizesse. A eliminação das compartimentações nacionais no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, não obstante a sensibilidade política da manutenção dos patrocínios de Estados às obras dos “seus” artistas e a determinação dessas receitas no desenho orçamental da bienal a cada dois anos, tornou-se argumento da sua modernidade, tendo-lhe permitido afastar-se da sua referência original, Veneza, para se aproximar projectual, discursiva e formalmente das bienais pós-89. ◊

 

Vista interior do pavilhão Ciccilo Matarazzo (projecto de Oscar Niemeyer)
 ©Andrés Otero
Fonte: http://www.bienal.org.br/content/pavimentos_01.jpg
Vista interior do pavilhão Ciccilo Matarazzo (projecto de Oscar Niemeyer)
 ©Andrés Otero
Fonte: http://www.bienal.org.br/content/pavimentos_01.jpg