Arquitecta, Doutorada em Filosofia (FCSH-UNL), Pós-Doutoranda (FAUP).
June 2016
Para celebrar a presença da sua delegação em França há cinquenta anos, a Fundação Calouste Gulbenkian convida Nuno Grande para pensar, criar e desenhar uma exposição de arquitectura 2, a realizar-se na cidade de Paris, acabando por abrir portas ao público a 13 de Abril de 2016, na Cité de l’architecture & du patrimoine, sob o título “Les Universalistes: 50 ans d’architecture portugaise”, sendo, desde logo, evidente a relação desta com a encomenda, reafirmada, ainda, pelo recurso à obra de Eduardo Lourenço, que a estrutura rítmica e ideologicamente.
No início do seu texto, Guy Amsellem, director da Cité, resume a questão que parece anteceder a exposição e à qual esta, desejavelmente, deveria responder: “Existe-t-il une manière portugaise de concevoir et de pratiquer l’architecture?” 3 Gera-se um primeiro equívoco, sobretudo quando o próprio evocara momentos antes Fernando Pessoa. E, no entanto, a partir de uma simples pergunta, compreendemos, de imediato, o que a exposição coloca em debate: a identidade portuguesa a partir de uma ideia de “universalismo”, que o curador funda no pensamento filosófico de Eduardo Lourenço, recorrendo, tanto o curador, como os vários críticos convidados, a ideias pré-concebidas de heteronomia (da qual Fernando Pessoa é a referência automática), devir-Outro (como se as referências ou as relações internacionais, que uma obra de arquitectura portuguesa possa conter, fossem o resultado de um processo de devir) e, acima de tudo, do próprio misticismo que Eduardo Lourenço descreve, refazendo-o, e, muitas vezes, confirmando-o. O espaço vazio objectivo deixado entre o lado da sala, onde se encontram os excertos dos textos de Eduardo Lourenço, e o lado contrário, onde as obras percorrem um aparato tecnológico, que nos aviva a memória das exposições internacionais de Alvar Aalto 4 em Nova Iorque ou dos Eames em Moscovo 5 (as influências internacionais no próprio dispositivo expositivo 6), corresponde, precisamente, à inexistência de uma real e efectiva contaminação do pensamento filosófico na exposição e, consequentemente, na forma como nos é dada a ver a arquitectura portuguesa.
Existem, sem dúvida, várias maneiras de conceber e praticar arquitectura por arquitectos portugueses e o estilo de um mesmo autor é sempre definido por linhas que são multiplicidades, constituindo-se em séries díspares, que podem, ou não, comunicar entre si, ou percorrer duas, três, quatro obras heterogéneas. A multiplicidade não equivale ao múltiplo. Não é uma unidade dividida. Nela, coexistem múltiplas unidades, de natureza diferente, cuja coexistência, num tempo e num espaço, permitem a criação de uma obra original. Semelhantemente, a identidade não se reporta a uma unidade da qual as expressões do ser se desfolham, mas a um conjunto heterogéneo e indivisível de expressões do ser. Como dizia Nijinsky: “I am an Indian. I am a Red Indian. I am a Negro. I am a Chinese. I am a Japanese. I am a foreigner and a stranger” 7.
Da identidade faz parte, necessariamente, o Outro. Não podemos pensar sobre a nossa identidade sem pensarmos de fora de nós mesmos, alertando-nos, constantemente, para o perigo eminente, que José Gil denota nas imagens que nos são dadas pelos jornais televisivos e fabricam um “perto-longe”, da consciência (que temos de nós próprios) surgir como medida para relativizar o Outro até ao limite dele não se ter consciência, acabando por compreendermos o Mundo sempre a partir do centro de nós próprios 8. Quem é esse Outro, que, inevitavelmente, faz parte da nossa identidade?
O Outro não é a diferença, nem a oposição, nem aquele que se encontra “lá longe”, do qual se tem ou constrói uma imagem vaga. O Outro (e o Outro em nós) é o que Gilles Deleuze chamava por vezes de “matilha”. Carregamos em nós, e à semelhança de Nijinsky sendo-o também, pedaços de brasileiros, africanos, indígenas, indianos… que actuam já não como “entidades” molares (porque não se trata, certamente, de “imitar um africano” ou “fazer à africano”), mas como experiências moleculares ou micro-percepções, que desencadeiam novas formas de pensar, ser e fazer. A heteronomia de Fernando Pessoa explica-se, precisamente, pelo processo de devir-Outro 9. No devir, como explica Deleuze:
“Ce n’est pas un terme qui devient l’autre, mais chacun rencontre l’autre, un seul devenir qui n’est pas commun aux deux, puisqu’ils n’ont rien à voir l’un avec l’autre, mais qui est entre les deux, qui a sa propre direction, un bloc de devenir, une évolution a-parallèle. C’est cela, la double capture, la guêpe et l’orchidée: même pas quelque chose qui serait dans l’un, ou quelque chose qui serait dans l’autre, même si ça devait s’échanger, se mélanger, mais quelques chose qui est entre les deux, hors des deux, et qui coule dans une autre direction” 10.
Mas como é que ocorre este processo de devir num arquitecto, por exemplo?
Jean-Philippe Vassal, da dupla de arquitectos franceses Lacaton & Vassal, trabalhou durante cinco anos em Níger. Esta experiência atravessou-o com um enorme poder, desencadeando inúmeros devires – um devir-nómada, um devir-deserto, um devir-orquídea –, porque soube apreender os acontecimentos (o deserto, o vento, a vegetação, a areia, as danças africanas…) pela matéria intensa de que são constituídos. Num texto, escreverá mais tarde com Anne Lacaton: “Des images d'Afrique, des souvenirs reviennent: désert, landes, océan, immenses territoires plats où construire est dérisoire, éphémère par la force des choses, et souvent nécessaire. Rencontres, poèmes, émotions. Objets insolites, draps de plastique tendus sur la terre des campagnes, jardins secrets, amitiés, connivences” 11. E a cada obra destes renasce um fragmento da África de Jean-Philippe, um pedaço do deserto de Niamei, um vento, um gesto dançado ao pôr-do-sol quente, desde logo na pequena cabana, na escolha da sua implantação ou nos três anéis que geram a sua forma 12. E, em momento algum, podemos afirmar que a arquitectura de Lacaton & Vassal é uma arquitectura africana ou de influências africanas ou que utiliza como referência determinados arquitectos africanos. É uma arquitectura nova, singular, que estes souberam inventar, a partir de encontros únicos (devires) com esses acontecimentos.
Pancho Guedes, “de passagem em todo o lado” 13, por entre as coisas, certamente, que soube devir-africano, devir-deserto, devir-cor… Que outros arquitectos portugueses souberam devir-África, souberam apreender e metamorfosear a imensa matéria intensa desse território absoluto, inventando uma nova direcção para a arquitectura portuguesa? Ficamos, certamente, admirados pela magnificência humilde das obras nas ex-colónias portuguesas (que contêm uma vida que escapa à exposição), mas não conseguimos compreender que encontros (devires) existiram, que permitiram a expressão daquelas obras e daquelas obras naquele território. O Outro é este que cria um encontro em nós e nos abre os olhos para o desconhecido, enorme abismo entre o que conhecemos de nós próprios e o que não somos ainda, obrigando-nos, forçando-nos a pensar. O devir-Outro não resulta de um conjunto de referências que importamos de países e arquitecturas estrangeiras. As referências podem, até, entrar no processo, mas são, de imediato, transformadas, metamorfoseadas numa matéria nova, inovadora e original, na qual já não se reconhecem.
África alerta-nos, igualmente, para um dos maiores problemas da identidade portuguesa, habitando juntamente com o passado do império português, a revolução de 25 de Abril, entre outros acontecimentos, o espaço da não-inscrição, tal como nos é descrito por José Gil. Curiosamente, a não-inscrição é uma consequência da mitologia portuguesa ou misticismo nacionalista, de que nos fala Eduardo Lourenço na sua obra, de onde a maior perplexidade que a exposição “Les Universalistes” provoca. A mitologia de Eduardo Lourenço remete para uma imagem fabulada que os portugueses construíram de si mesmos, que pertence a um plano virtual de um passado contínuo, onde foram sempre existindo partículas de determinados acontecimentos (dos descobrimentos, do colonialismo, da revolução de 25 de Abril, entre outros), que nunca o chegaram a ser ou a actualizar-se. “Tornou-se claro (…) a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido” 14 (plano virtual). Foi (e é) a mitologia nacionalista que criou (e cria ainda) o espaço da não-inscrição.
Pelo contrário, a inscrição advém de um “abalar os espíritos”, um rasgo que abre o pensamento, que faz gritar a consciência, que precipita uma acção que desejamos e fazemos atravessar por nós. Eduardo Lourenço, embora não nomeie de não-inscrição, ensaia e alerta, constantemente, para esta ausência de consciência dos acontecimentos reais e consequente imobilismo da alma, pelos quais, à semelhança das imagens do “perto-longe”, seguimos inalterados e passivos. Sobre a guerra colonial, por exemplo, relembra-nos: “Se a solução foi aquela que o determinismo e as soluções de forças nacionais e internacionais impunham – sem falar da equidade ou da fatal ascensão dos povos africanos à independência – a maneira como foi vivida e deglutida pela consciência nacional é simplesmente assombrosa. Ou sê-lo-ia, se a capacidade fantástica que em nós se tornou uma segunda natureza, de integrar sem problemas de consciência o que em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis, não atingisse entre portugueses culminâncias ímpares” 15. E mesmo sobre a passagem do regime ditatorial à revolução dos cravos, ambos os filósofos são unânimes: falta-nos apreender no corpo (individual e colectivo) a real transformação desta passagem: dotar-nos de “um olhar crítico sobre o que somos e fazemos” 16. Exigir esta transformação deveria ser a pedra-de-toque da exposição de Paris e, no entanto, esta surge como a expressão arquitectónica da não-inscrição, com dois problemas que devemos relevar.
Ao caracterizar o espaço da não-inscrição, José Gil contrapõe a este a ideia de espaço público, que é, por natureza, o espaço da dessubjectivação, onde uma obra, por exemplo, se separa do seu autor, entra no “espaço anónimo”, passando aí a funcionar como uma potência transformadora, uma força que coloca em movimento outras obras e novos significados. “Por isso o espaço público torna-se condição imprescindível para que o ‘dentro’ respire. Qualquer coisa deve vir de fora, de um fora ilimitado e intensivo, para que o dentro se possa exprimir” 17.
Uma exposição ocupa, e idealmente constrói, um espaço público, pelo que deveria transportar, em si mesma, esse “ilimitado e intensivo”, que possibilita a abertura a esse fora para que dele advenha, também, uma transformação desde dentro.
Contudo, “Les Universalistes” delimita um círculo preciso (o que erradamente Nuno Grande pensa ser uma genealogia heterogénea), circunscrito a certos autores e a obras datadas, dependentes de circunstâncias históricas, entre as quais algumas, curiosamente, participam na construção da imagem fabulada (porque não existe sequer o contraponto, por exemplo, das obras nas ex-colónias, nem a sua inscrição, hoje, no trabalho que muitos arquitectos portugueses ainda desenvolvem naqueles territórios), que Eduardo Lourenço descreve (sem dúvida, o paradoxo a que a exposição dá expressão).
Não há qualquer experimentação, nem risco, nem confronto: a exposição enquadra-se na normalização (o segundo problema), num sentido único que produz (não assistimos a quaisquer outras narrativas; a diferença é apenas resultado do múltiplo e nunca da multiplicidade, ou mesmo, do devir), ou, diremos, num ciclo fechado, quando os mesmos autores do início da exposição reaparecem, com outras obras, no fim desta. Um sentido que aparece, igualmente, expresso nos textos dos críticos franceses convidados, como se fôssemos todos filhos de Siza. “Confirmar, confirmar: eis para que se acumulam toneladas de argumentos e de pseudo-ideias mais ou menos subtis. (…) Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da estrutura das relações de força que elas representam. Os lugares, tempos, dispositivos medianos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção” 18. Importante seria, também, o sinal de esperança que a inscrição de algumas das obras expostas (aquelas que souberam romper com as normas dos seus tempos, que souberam, no meio de um regime ditatorial, procurar os valores da vida humana) aparecesse visível noutras obras contemporâneas (muitas que não estão presentes na mostra)…
Lamentavelmente, “Les Universalistes” não encontra o plano filosófico de Eduardo Lourenço (ou de José Gil), pelo contrário, descreve uma “pequena regressão” em detrimento de um devir-filosofia da obra de arquitectura, que significaria pensar a arquitectura portuguesa por entre o pensamento filosófico de Eduardo Lourenço, como por exemplo, pensar que contra-imagens a arquitectura portuguesa forjou naqueles momentos (que a própria exposição data)? Significa que, para combater as próprias palavras, criar “linhas de fuga” e rasgar o pensamento, era necessário tentar perceber como é que algumas daquelas obras surgiram nos espaços vazios daqueles acontecimentos, combatendo elas próprias a norma, o regime, a impassividade, o imobilismo da alma, tornando-se obras intensivas, inspiradoras, motores de transformação num espaço público, num fora. Não foi esse o carácter das obras do SAAL, por exemplo? E, no entanto, aparecem na exposição de Paris tal como apareceram na exposição de Serralves, alienadas, inseridas numa linha contínua de uma sub-expressão do movimento moderno sem que se percebam, no espaço real, a sua acção de transformação e a sua inscrição, hoje. Como é que os projectos do SAAL aparecem inscritos, hoje? Sob que formas de projectar? Não sabemos, a exposição não o mostra, não o pensa. Não há inscrição da própria exposição.
No fim, só conseguimos atestar a linha ideológica da exposição, a de se constituir como uma possível retrospectiva histórica dos últimos cinquenta anos (reforçada pelas entrevistas e textos dos críticos portugueses convidados), que não devolve o olhar crítico a que a própria obra de Eduardo Lourenço apela, que alinha obras revolucionárias com outras de confirmação e normalização e, assombrosamente, sem tensão alguma, sem produzir esse tal espaço público, de que fala José Gil.
Se o que está em discussão na exposição é, sem qualquer outro fim, a qualidade espacial das obras apresentadas, os problemas arquitectónicos que resolvem (a organização do território e do espaço, a diferença entre exterior e interior, a composição dos volumes, entre outros), as relações internacionais (a partir do ponto de vista da História), por que razão recorrer a uma obra filosófica que denuncia todos os momentos que contribuíram para criar uma imagem irrealista do ser português, quando, no fim, é esta mesma imagem que nos é devolvida pela exposição? Inevitavelmente, teremos, também, de nos questionar: que imagens de Portugal e ser português nos devolvem aquelas obras? E esta seria outra via por dentro da obra de Eduardo Lourenço, que construiu o seu pensamento sobre a identidade portuguesa, maioritariamente, a partir de imagens de origem literária. Semelhantemente, as obras de arquitectura (as expostas e as não expostas) devolvem-nos certas imagens da arquitectura portuguesa e da nossa identidade, as que deveríamos saber interpelar para construir um discurso crítico sobre o que nos dizem sobre nós mesmos. Para quando uma exposição que inscreva aquelas obras no nosso espaço público? Para quando, como Eduardo Lourenço pergunta, a “nova viagem para esse outro desconhecido que somos nós mesmos?” 19. ◊
Os nossos agradecimentos à Fundação Calouste Gulbenkian (em especial a Elisabete Caramelo e à Delegação de Paris) e à Cité d’architecture & du patrimoine, pelo apoio concedido.