ENSAIO

S.O.S. Arquitectura

Em defesa de um habitat sob ameaça

Por Lucinda Fonseca Correia

Arquitecta, Co-fundadora Artéria Arquitectura

 

Terramoto de Lisboa, detalhe da gravura Die Verwüstung von Lissabon der haupstadt in Portugal geschehen den 1. Nov. 1755 (autor desconhecido)
© Colecção do Museu de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa - EGEAC
Terramoto de Lisboa, detalhe da gravura Die Verwüstung von Lissabon der haupstadt in Portugal geschehen den 1. Nov. 1755 (autor desconhecido)
© Colecção do Museu de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa - EGEAC

 

 

 


Independentemente das justificações políticas, económicas ou até mesmo filosóficas, verifica-se a total ausência de consciência antropológica do fenómeno arquitectónico no seio deste cosmos: nenhuma ciência conseguiu provar que o Homem se encontra no termo da evolução de todas as espécies; nenhum dado científico consegue confirmar que o planeta existe para satisfazer os nossos desejos e as nossas fantasias e deve (ou pode) funcionar como um espaço “domesticável”.

J. Gorjão Jorge 1

 

 

 

Arquitectura do apocalipse

Vivemos num mundo doente 2 e temos todos consciência disso. Esta constatação perturba-nos e vem acentuar uma sensação de culpa que o nosso juízo sobre a realidade contemporânea ainda não deixou de provocar-nos. A Religião e a Arte têm-se, mais ou menos, aproveitado disso, fazendo valer os seus pontos de vista em função daquilo que querem denunciar ou evidenciar e, entretanto, o cidadão comum tenta lidar com uma realidade ambiental descrita pela Ciência com maior ou menor alarme 3, mas que jamais deixa de ser preocupante. Habitualmente, refugiamo-nos numa ideia de compromisso segundo a qual quem toma decisões (as chamadas “figuras do poder”) tem uma atitude responsável e jamais permitirá que o mundo mergulhe numa situação apocalíptica. Contudo, neste domínio, as nossas convicções começam a enfraquecer. Os cientistas estão divididos e entre eles há, parece, uma opinião maioritária de que caminhamos a passos largos para uma catástrofe universal de proporções jamais vistas na História da Humanidade 4. As alterações que temos vindo a introduzir no Ambiente, especialmente desde a Revolução Industrial, fizeram com que este, agora, se volte contra nós: o habitat humano está seriamente ameaçado na era do Antropoceno 5. Nenhum de nós, qualquer que seja o seu estatuto social ou a sua condição, conseguirá furtar-se às consequências desta realidade e os nossos descendentes terão de lidar com um clima cada vez mais imprevisível e agressivo no que diz respeito ao desenvolvimento das actividades humanas. Ainda que não passemos os dias a pensar neste assunto, há algures, no nosso quotidiano, um momento em que a angústia provocada pela consciência da gravidade do que está a acontecer à nossa volta acaba por dominar-nos. Os mais lúcidos formularão a seguinte pergunta: Quem são os responsáveis? Infelizmente, na primeira fila, está, sem sombra de dúvida 6, a Arquitectura e, por extensão, os arquitectos. Como se poderá combater isto?

 

Para uma Arquitectura científica?

A Arquitectura é um fenómeno eminentemente humano e, nesse sentido, pode ser descrito a partir daquilo que dele apercebemos. Quais são os seus limites? Para que serve a sua prática? Existe um conhecimento em Arquitectura? Não esqueçamos que até muito recentemente era a arte europeia que acolhia os estudos sobre Arquitectura. Estavam fora do seu espectro as sociedades tradicionais e as culturas exóticas, por exemplo. Isso permitiu que a disciplina se autonomizasse em relação a aspectos essenciais para a compreensão daquilo que deveremos considerar como sendo “arquitectónico”. Relembremos que as práticas culturais e rituais, através das quais se desenvolve o processo identitário das comunidades, na arte do Ocidente, foram quase sempre estudadas, neste contexto, enquanto manifestações estéticas (incompletamente compreendidas, portanto). Em contrapartida, temos assistido, nas últimas décadas, a uma espécie de tentativa de compensação disso: os conhecimentos da Engenharia, da Biologia, das Ciências Sociais, da Comunicação e até da Literatura vêm, agora, influenciar a descrição do que a Arquitectura é ou pretende ser 7. Perante isto, perguntar-se-á com toda a pertinência: quais são os critérios a partir dos quais nos é permitido apreciar uma obra de Arquitectura? Quais são os juízos que legitimam a sua valoração? Poderá a Arquitectura ser objecto de conhecimento científico?

Por outro lado, a contracção ou expansão do conceito de Arquitectura acaba por nos levar a utilizar uma terminologia vaga, tolerante ou falsamente técnica, quando não tratamos apenas de inventar a lógica de um compromisso entre a ideia de dignidade profissional e as condições de exercício da profissão. De facto, é necessário admitirmos que o velho paradigma da Arquitectura, como profissão, deixou de funcionar plenamente. Veja-se o carácter que a Arquitectura assume, nas diferentes épocas, relativamente à sua capacidade para representar algo fora dela, algo que ela faz lembrar ou que quer assinalar. E, depois, convém ter presente que ela sempre foi o veículo (senão o próprio propósito) de cosmovisões (a metáfora da “casa” como microcosmos exprime-se, também, arquitectonicamente, note-se).  Aliás, não estarão todos os “estilos”, mais ou menos, contaminados ideologicamente 8? O carácter mecanista do século XVII (aliado a um certo tipo de racionalidade) não terá vindo dominar a primeira etapa da longa aventura moderna 9? É necessário não esquecermos também que aquelas “funções” antropológicas da Arquitectura que surgiram sempre, no decurso da sua evolução, adaptadas a sistemas de valor dominantes foram interpretadas, nas diferentes épocas, de maneira sempre diferente, desviando-se frequentemente dos seus objectivos originais – tantas vezes o útil se tornou simbólico, pondo em causa a sua mera funcionalidade... No fundo, a Arquitectura fornece-nos dispositivos técnicos (cuja produção e funcionamento acabam por ser, de algum modo, condicionados pelos interesses do poder instituído), podendo justificar qualquer forma de habitação humana. A obra arquitectónica é, pois, quase sempre pensada como suporte desses dispositivos. Mas quem determina como é que esses dispositivos devem funcionar? A Política? A Economia? A Indústria? A Moda (a do Turismo, por exemplo)? Não será, certamente, a Ciência. Até porque uma Arquitectura “científica”, isto é, que respeitasse os princípios racionais da mera eficiência, rejeitaria, à partida, relativamente aos seus modos de produção e uso, as mais inocentes condições actuais do Mercado. Poderá, então, a disciplina (arquitectónica) reivindicar para si mesma “cientificidade”?

Não teremos chegado a um ponto de viragem, onde o sentido da Arquitectura, subitamente, está a ser instituído de fora da própria Arquitectura? E o arquitecto como artista, onde está, como fica e para onde vai? A verdade é que, o arquitecto, hoje, na visão ocidental funciona mais como um gestor do que como um artista. Até porque se exige da Arquitectura desempenhos que nunca lhe tinham sido antes atribuídos. Decerto, Arquitectura não é Economia. Não é Biologia. Não é Filosofia. E, contudo, a sua prática não pode eximir-se às contribuições destes e doutros campos do saber, como já vimos. Então, onde é que o científico se compatibiliza com o artístico, ou o contrário? 

Há ainda um outro aspecto, o da ordem. O território é uma construção humana, na qual a Agricultura, a Arquitectura e a Engenharia são práticas espaciais que exigem a invenção de artefactos tecnológicos, sendo responsáveis pelas sucessivas transformações e artificializações do Ambiente que fizeram da “paisagem” uma construção cultural 10. Assim, a Arquitectura torna-se, sobretudo, uma conquista de um espaço artificial no qual nos reconhecemos como humanos, subordinando o nosso comportamento a uma determinada ordem sociocultural. Mais do que tudo o resto, a Arquitectura domestica, ordena e qualifica. As suas manifestações resultam, assim, da lógica da auto-representação da sociedade onde é produzida e, nessa medida, em relação a quem a habita, deve cumprir o seu papel identitário — caso contrário, falha a sua missão. Mas não só aqui: há questões sem resposta relacionadas com a “sustentabilidade”, cuja pedra de toque é a contradição que a ideia de um mundo com recursos limitados (que os arquitectos parecem rejeitar) faz emergir no processo de concepção técnica de dispositivos de habitação. A Ciência não resolve este problema: denuncia-o. E, assim, poder-se-á dizer que as respostas “sustentáveis” dadas pela Arquitectura deverão ter mais a ver com visões do mundo do que com dispositivos tecnológicos “milagrosos”. Neste âmbito, a Engenharia, como produtora de soluções, sobrepujará a própria Arquitectura? Sim e não. Ultrapassadas as imagéticas dominantes 11, mas sem, contudo, negar a sua natureza, uma Arquitectura sustentável deverá ser “mais uma forma de ‘contar histórias’ do que uma ciência” — deverá ser “uma maneira de literalmente construir um futuro aceitável” 12 

 

Arquitectura contra o Ambiente

A Arquitectura torna o espaço humanamente significativo, através de uma transformação que suspende a acção da Natureza, introduzindo descontinuidades no espaço dito “natural”, quando o interrompe. Este “contra-ambiente”, chamemos-lhe assim, parece propor um quadro ideal de existência que o homem inventou para contrapor ao seu modo de sobrevivência enquanto mero organismo vivo. Tudo leva a crer, então, que é a própria ideia de civilidade que a Arquitectura pretende exaltar: o civilizado eleva-se em relação ao não-civilizado. Há, assim, uma ordem, diferente da ordem dita “natural”, que a Arquitectura, em várias medidas, consagra. Essa ordem resulta das hierarquizações assumidas em todas as esferas da vida pelos tais sistemas de valor, culturalmente instituídos. É aqui que a consideração da Lei ganha pertinência. A Lei, de um modo geral, assenta numa concepção antropocentrista do mundo, como se os planos da existência do Homem (e do resto dos seres vivos) fossem isoláveis no contexto da economia ecológica desse mundo: o do Direito, por exemplo, ignora e, eventualmente, contraria a lógica do mundo “natural”. E isto a partir de ficções sociológicas (baseadas nos princípios de uma sociedade justa e igualitária) que orientam as ordens social, económica e política “legitimamente” instituídas. Entretanto, o modo de vida que resulta da manutenção daquelas ordens e que, desde há quatro séculos, envolve a exploração desenfreada de recursos naturais é propositadamente ignorado nos seus impactos reais, directos ou colaterais no Ambiente pelas instituições que garantem o exercício do poder 13

E, assim, a Arquitectura, porque participa neste processo, facilitando e mediando modos de exploração e de consumo “insustentáveis” através dos meios tecnológicos de que se serve (e, também, na escala em que os aplica), vive no paradoxo dos seus efeitos no Ambiente: ela contribuiu, definitivamente, para a destruição ou desequilíbrio de ecossistemas e para o processo de aquecimento global, quando poderia (e, certamente, deveria), pelo contrário, contribuir para uma prática que garantisse uma interferência o mais suave possível da vida humana no Ambiente. Aliás, a autonomização da Arquitectura, através da prática do projecto, principalmente em relação à disponibilidade ou não de meios e recursos (justamente a partir do Renascimento, quando o conceito do mundo “como máquina” triunfa definitivamente), passa a ser auxiliada, por exemplo, pela descoberta, na Europa, de jazidas de carvão. Esta energia barata e aparentemente inesgotável vai permitir que os tectos dos edifícios subam e que o período de trabalho se prolongue até à noite. O milagre operou-se, portanto. Aliás, o que se operou foi a ilusão do milagre. Aqui, o desejo (sempre insatisfeito) passou a nortear a proeza “arquitectónica”. A lógica de uma Arquitectura que explora soluções contra o Ambiente (através da mineração, do consumo de energias não-renováveis, da ocupação de territórios sensíveis do ponto de vista dos ecossistemas, etc.), gera uma ideia de utopia, de facto só possível à custa da exploração imoderada dos recursos do próprio planeta 14

Perante esta situação, a tensão entre Arquitectura e Engenharia mostrou sempre tendência para se intensificar, já que a frieza técnica da metodologia projectual da Engenharia parece responder com muito maior eficácia às exigências da concepção de um habitat “possível”. A teimosia por parte da Arquitectura em alhear-se dos problemas reais que os desafios de um futuro praticável (para a sobrevivência da espécie humana) vieram levantar, vai certamente conduzi-la, a breve trecho, como profissão, a um beco sem saída.

 

Um habitat para a Humanidade

Na era do Antropoceno, onde paradoxalmente são questionadas as condições de possibilidade da sobrevivência da nossa espécie na grande casa comum (o planeta Terra), é urgente repensar-se  concertadamente o “conceito de domínio da arquitectura” 15. A Arquitectura 16 imagina, constrói e gere o habitat artificial humano, mas não está exactamente a desempenhar as suas funções como actividade humana antropologicamente avaliada e culturalmente justificada. “O Ambiente torna-se importante de uma maneira que talvez ainda não tenhamos completamente compreendido” — é afirmado num estudo sobre a actual crise da Arquitectura, que relaciona a “inovação formal” com a “sustentabilidade tecnológica”. O Ambiente “é importante, não apenas como ecologia material, que deve ser mantida viva para garantir a sobrevivência da nossa espécie, mas também porque é nada menos do que uma parte constituinte da nossa consciência” 17. E, nesta linha de raciocínio, o edificado torna-se também uma parte do Ambiente. Esta dependência permite-nos questionar a relação dialética forma-função, que mais não será do que o topo visível de um iceberg muito profundo. A má-consciência da Arquitectura (e da sua classe profissional), relativamente às questões ambientais, deve-se à sua rejeição, até das mais leves consequências, de um pensamento ecologista crítico, que, na segunda metade do século XX, denunciou a relação complexa da Arquitectura com a própria Modernidade 18. A história da Arquitectura poderá, assim, também ser considerada um ramo da História do Ambiente.

Exigências como a análise do ciclo de vida dos materiais de construção sustentada nos princípios da economia circular, a gestão de resíduos, o reaproveitamento de águas pluviais, a eficiência hídrica e energética, por exemplo, são hoje indissociáveis de um pensamento projectual consequente em termos do que chamamos “sustentabilidade”. Parece, também, incontornável a necessidade de articulação entre Arquitectura, Antropologia, Economia, Direito, Arquitectura Paisagista e Engenharia do Ambiente, para apenas mencionar o óbvio. O curto prazo, como condição do projecto e horizonte de objectivos, adquire, nesta perspectiva, um carácter claramente criminoso. A Arquitectura, hoje refém de uma parafernália de legislação e de regulamentação pró-sustentabilidade, não pode continuar a furtar-se à produção de novas formas da sua prática. Porém, a humanização do espaço (pois é disso mesmo que se trata), que é necessariamente intrínseca a qualquer acto de qualificação, não se consegue medir, quantificar e comparar — e talvez por isso mesmo não é sequer seriamente considerada nos diplomas legais. Como obrigar a Arquitectura a “humanizar o espaço”, então?

A Arquitectura vem-se tornando um espectáculo, o que é bom e mau ao mesmo tempo. A bondade deve-se ao estatuto (de forçosa visibilidade) que a vida pública concede a tudo aquilo que é apresentado num palco. A maldade pode atribuir-se à circunstância de, aparentemente, serem apenas alguns a dominar esse palco, em condições mais do que duvidosas. Neste aspecto, a Arquitectura não é democrática: as elites determinam o que deve ou não ter visibilidade, o que se pode ou não construir e os critérios de legitimação de uma prática que interfere com a vida de todos. Haverá uma hiperconsciência da classe profissional que se reflicta nas formas de prática alternativas?

A Arquitectura entendida como campo de investigação inventa um “outro arquitecto-tipo” que procura modelos operacionais, desenha estratégias colaborativas, introduz conceitos improváveis e experimenta a partir de novos tipos de instrumentos, como contraponto à ideia da profissão apenas como serviço para a sociedade ou “indústria” cujo objectivo é a construção 19. É interessante verificarmos que vão surgindo, aqui e ali, abordagens políticas e críticas explorando os próprios limites das competências disciplinares, das quais emergem práticas alternativas de construção, desde a necessidade de performatividades que se desenrolam a partir do estar nos sítios com as comunidades e que só depois se transformam em programas e projectos — MUF Architecture/Art, Londres; o questionamento sobre a demolição como “desconstrução” para futura reinterpretação como “reconstrução” — ROTOR, Bruxelas; a possibilidade de poder identificar evidências em casos complexos, utilizando as competências e os instrumentos da Arquitectura, cuja análise tem peso jurídico — Forensic Architecture, Londres; a crítica política à produção contemporânea de espaço e ao espectro de relações estabelecidas com os corpos que o habitam — The Funambulist Magazine – Politics of Space and Bodies, Paris-Nova Iorque; o desenvolvimento de aspectos construtivos inovadores e metodologias de projecto adaptadas aos contextos locais — CRAterre, Grenoble; até à reutilização de materiais não convencionais através de projectos que testam os limites dos códigos de construção desafiando a própria filosofia do habitar — Earthship Concept, Novo México. 

A Cibernética e a Robótica transformaram a forma como encaramos a Humanidade. A (sonhada) colonização espacial, próxima da revolução trans-humanista, anuncia-se como possibilidade no nosso horizonte próximo. As tecnologias ditas emergentes — a Biotecnologia e a Nanotecnologia, a Biogenética e, sobretudo, a Bioética — alertam-nos para mais um paradoxo: a nossa confiança na Ciência parece ser inversamente proporcional à nossa confiança na Humanidade. Estas novas abordagens do conhecimento apresentam-se como campos de exploração da Arquitectura, podendo desenvolver-se em planos não ainda conceptualizados pela sua disciplina. Mas é absolutamente necessário deixar no passado o final do século XIX ou o princípio do século XX: o “vitruvianismo”, como referência mítica (e, portanto, inspiradora e quase intocável) da própria disciplina, está morto e enterrado 20, apesar do seu fantasma assombrar, sub-repticiamente, grande parte das elites críticas. É que as coisas são muito mais complexas do que parecem e as simplificações contabilísticas de uma economia de mercado, que se recusa a evoluir, conduziram-nos a um verdadeiro abismo. Na verdade, já nem de ideologias se trata: a brutalidade da situação, a escala dos problemas, o efeito devastador das consequências, dos abusos e das lógicas de positiva pilhagem dos recursos suprimem os espaços de esperança e de compromisso 21. Sem Ambiente propício à sobrevivência da espécie humana, não há nem Arquitectura, nem espécie humana. Há apenas a morte e o silêncio. Poderemos deixar que a Terra se transforme num planeta silencioso?

A Arquitectura (e os seus utilizadores) tem dificuldade em conceber o desenlace do último capítulo da sua História recente. Ao longo das épocas, de um modo geral, a Arquitectura manteve o seu protagonismo no contexto das actividades humanas úteis – talvez como a mais afinada expressão da Cultura no seio da qual emergiu. Poderemos até afirmar que as suas obras se transformaram em testemunhos de cosmologias, conformando-se, assim, à mentalidade específica de cada tempo. De resto, as técnicas construtivas evoluíram de modo a permitirem a erecção de “cenários” (tanto na privacidade como na publicidade) onde o drama da existência das sociedades se desenvolveu também sempre de acordo com os recursos de que estas dispunham e com a sensibilidade que definia as suas lógicas estéticas: a Estética tenta, sobretudo, tornar visível a Ética. Raramente houve hesitações ou ambiguidade naquilo que propunham como soluções para os problemas associados ao acto de habitar (qualquer que este fosse). A indústria, tal como a conhecemos, veio tornar o “impossível” possível. Com a artificialização dos materiais (betão, ferro, tijolo, etc.), associada à facilidade da extracção de matérias-primas, rapidez de transporte e da sua aplicação, a equação Construção-Ambiente alterou-se completamente. De súbito, o empreendedor torna-se uma espécie de faraó: a sua capacidade para intervir no território causa mais devastação do que a construção dos túmulos gigantescos da Antiguidade. A Arquitectura tenta resolver problemas criados (em termos ambientais) pela sua simples prática ao promover um modo de uso do território que ajuda à desestruturação da própria sociedade (em termos económicos e culturais). A construção continua a ser, todavia, um dos investimentos mais lucrativos do planeta. Afinal, considerando o panorama internacional do negócio da construção civil, teremos de reconhecer que a Arquitectura, hoje, está a funcionar como as enfermarias em cenários de guerra: tratam-se os doentes, mas nem se toca nos princípios da lógica beligerante. Aliás, utilizam-se, como terapia, medicamentos que apenas escondem sintomas e são produto da Economia resultante dessa mesma lógica. Perguntar-nos-emos, legitimamente: Arquitectura adequada para se salvar o planeta? Talvez, mas sobretudo Arquitectura consequente para se salvar a si própria. ◊