OPINIÃO
Pensar o Impensável
Designer de comunicação, Interessado em Futures Studies
© Donald Davis
O futuro mais interessante para aqueles que o estudam é o futuro para além do qual não existem ferramentas de previsão fiáveis. Esta área de estudo chama-se futurologia ou, num termo mais elegante e acertado, Futures Studies. À primeira vista, um campo de estudo sobre o conhecimento do futuro é paradoxal e — como nos habituaram a ficção científica ou a futurologia pop — condenado ao ridículo como acaba por ser a maior parte das tentativas de vidência. Mas para os Futures Studies, pelo menos nos últimos 50 anos, não se trata de prever um futuro porque — e estas são duas das suas premissas basilares — o futuro não é previsível e nem tão pouco está pré-determinado. A terceira pedra basilar é o combustível interno dos Futures Studies: o futuro é, em parte, uma consequência das nossas escolhas individuais e colectivas no presente. Futures Studies está no plural porque explora a criação de cenários de futuro a partir de conjuntos de premissas iniciais com que decidimos jogar — que é como dizer: “E se?...”. A função dos futurólogos constrói-se à volta da noção de que os cenários que a nossa consciência colectiva projecta sobre o futuro têm uma influência decisiva na construção desse futuro.
Vivemos tempos em que o futuro se apresenta especialmente problemático. A sensação que me perpassa muitas vezes é a de que nos encontramos na convergência de dois tipos de cenários sobre o futuro que povoaram o imaginário colectivo do século XX. Tínhamos uma caricatura utópica de um futuro povoado de carros voadores, naves espaciais, uma vida fácil de preguiça e lazer servida por robots falantes e todo o tipo de gadgets. E tínhamos as previsões — principalmente a partir da segunda metade do século XX — de um colapso civilizacional devido às alterações climáticas causadas pelo crescimento vertiginoso da nossa civilização, tanto material e tecnológico como populacional, ou então devido a uma guerra nuclear. Muitas das melhores ficções sobre o futuro desse tempo eram variações destes cenários.
Quase 20 anos depois do ano 2000 algumas das mais icónicas fantasias tecnológicas do século XX começam a cristalizar-se diante de nós com o desenvolvimento — e usando termos do século XX — de carros que andam sozinhos, computadores falantes, computadores de bolso com televisão que fazem de telefone, próteses que se movem com o pensamento, tradutores de línguas em tempo real, mini helicópteros que entregam pizzas, mantos de invisibilidade, câmaras de vigilância em lojas que identificam os gestos nervosos de um ladrão antes de executar o crime, uma rede mundial de computadores onde se pode encontrar todo o conhecimento humano escrito e todas as imagens produzidas, etc. Por outro lado, nesta segunda década do século XXI a evidência das alterações climáticas provocadas pelo Homem torna-se cada vez mais difícil de contrariar. Assumindo algumas das piores previsões, os ecossistemas estão a entrar em colapso num demasiado curto espaço de tempo. De ano para ano atingem-se novos recordes meteorológicos, aumenta a frequência de ondas de calor, de inundações, de tufões, de tornados, etc. As alterações no ciclo sazonal, do qual depende grande parte da agricultura, ameaçam falhar colheitas sucessivamente. O aquecimento e a acidificação dos oceanos e a diminuição das calotas polares colocam em causa os ciclos de vida normais das algas e do fitoplâncton, responsáveis pela captação de grande percentagem do carbono e pela produção da maioria do oxigénio do nosso planeta. As piores previsões apontam que em menos de 10, 15 anos a nossa civilização entrará em colapso.
De certo modo o futuro está a decorrer, mais década menos década, como indicava o espírito das previsões sobre alterações climáticas, tal como o condutor que sabe o que vai acontecer se não carregar nos travões do carro que dirige para uma ravina. São demasiado intrincadas as teias de relações entre os gases com efeito de estufa, a produção de lixo, o monopólio de tecnologias antigas sobre melhores tecnologias, a obsolescência programada, a exploração pecuária e agrícola em massa, o crescimento populacional, entre outras questões. Tenta-se mudar esse futuro alterando os hábitos de consumo alimentar, material ou energético. Investigam-se e aplicam-se “medidas ecológicas” — ainda que muitas sejam apenas maquilhagem ética para consumo — mas rapidamente se percebe que, no seu conjunto, continuam insuficientes. Alguns advogam que simplesmente não existe crescimento que seja sustentável e há os que acreditam que nada do que possamos fazer pode evitar um colapso civilizacional ou mesmo a extinção. Outros acreditam que a tecnologia, de alguma maneira, trará as soluções sem contrapartidas civilizacionais demasiado pesadas. Para muitos começa a tomar forma, como saída possível diante do conjunto de pequenas soluções e atitudes, a ideia de um decrescimento económico deliberado. Tentar este decrescimento, perceber o que implica, além de ser um inaudito desafio político, económico e cultural, é um cenário para o qual não temos paisagem para nos vermos, pelo menos não no sentido ilustrativo com que nos víamos décadas atrás. É um cenário por explorar que pode gerar inúmeras interpretações contraditórias entre si.
De qualquer modo, o futuro, a capacidade de se divergir do rumo actual, parece colonizado de vários modos. Colonizado pela imagética publicitária das novas tecnologias que preenche parte das visões do futuro ou pela imagética hollywoodesca; orfão, diriam outros, pelo desaparecimento das grandes metanarrativas no século XX; refém de grupos económicos transnacionais com demasiada influência sobre os poderes políticos; colonizado pela complexidade do presente. A presença do futuro na discussão pública, digamos, num espectro de 50, 100 anos, praticamente não existe. O planeamento económico e político centra-se naturalmente numa gestão a curto e médio prazo, sujeita aos ciclos democráticos e, ainda que partilhe bastantes estratégias de análise, distancia-se dos Future Studies não apenas na ambição temporal, mas porque estes partem da premissa de continuação das condições actuais, com ênfase em dados empíricos, deixando de fora dimensões como as do inconsciente, da mitologia ou das tecnologias emergentes, isto é, a política procura controlar o futuro mantendo a segurança e estabilidade num futuro de continuidade enquanto que os Futures Studies procuram preparar-se para futuros preferíveis dentro da diversidade dos futuros prováveis 1.
O que me trouxe aos Futures Studies foi a sua capacidade de se opor a um destino aparentemente limitado, seja através da sua abordagem sistemática e construtiva de análise e de criação de cenários de futuro, seja pela sua vontade em querer democratizar o exercício de pensar o futuro como um acto de liberdade, responsabilidade e imaginação.
Os principais consultores de Futures Studies têm sido a indústria do armamento, os serviços de inteligência e segurança militar e as grandes empresas, nomeadamente as que estão ligadas à tecnologia. No universo académico, os Futures Studies têm a particularidade de poderem desenvolver-se sem estarem necessariamente presos ao serviço de interesses políticos ou industriais. Ocupam uma posição privilegiada para estudar, com amplitude e distância, os possíveis futuros dos seus objectos de estudo.
A concepção sintética de Futures Studies é a de que tratam do estudo da criação de hipóteses de futuros possíveis, prováveis e preferíveis, das concepções do mundo e mitos que lhes estão subjacentes 2 e das wild cards (eventos inesperados de alto impacto como algum tipo de inovação disruptiva game changer ou eventos naturais extremos). É um campo de estudo interdisciplinar que colhe e cruza dados da Sociologia, História, Estatística, Ciências Naturais, Tecnologia, Literatura, entre outras áreas de estudo, para alimentar uma amplitude holística em abordagens que podem balançar entre a ciência pura e dura, a dinâmica de grupos, a intervenção comunitária, a ficção, produção artística, etc., o que levanta sempre o debate sobre a validade das suas virtudes académicas, sobretudo pelo seu interessante paradoxo de se tratar de produção de conhecimento sobre o futuro. Obviamente não há conhecimento sobre o futuro, mas tal como toda a ciência, os Futures Studies passam num primeiro momento pelo conhecimento conjectural 3 — conjectura-se sobre aquilo que é possível e o que é mais provável que aconteça — e ainda que se possa conjecturar com lógica e acerto sobre dados bastante sólidos simplesmente não se podem testar as previsões. Mas a questão dos Future Studies não gravita em torno deste impasse epistemológico da ausência de informação sobre o futuro, pelo contrário, alimenta-se dele procurando produzir futuros alternativos plausíveis e atractivos. Diz-nos Stuart Candy que neste campo de estudo “devemos usar a nossa capacidade de exploração hipotética como um caminho onde a acção se sobrepõe à episteme na construção de um futuro que se torna sujeito a design activo em vez de descoberta passiva” 4.
Os cenários de futuro ou futuros alternativos, os resultados desta “exploração hipotética”, são um modo de sumarizar os resultados de uma investigação em Futures Studies. Um cenário é uma visão genérica que procura amplificar certos aspectos de um futuro e que pode ter a forma de uma estória, de um conjunto de imagens, de um filme, um conjunto de dados, etc. “Um cenário de futuro é uma tecnologia discursiva no final do espectro de um ‘E se?’ É acima de tudo uma experiência de pensamento” (Stuart Candy, 2010)
Existem vários modelos de classificação dos cenários produzidos. A tipologia conhecida pelos 3 P — os cenários possíveis, os prováveis e os preferíveis —, dentro dos futuros potenciais, é um dos enquadramentos de base dos Futures Studies. Explora-se numa primeira sequência aquilo que é Possível acontecer e, de entre o que é possível, explorar o que é Provável que aconteça e, finalmente, diante destes cenários, pensar em estratégias que possam conduzir a cenários Preferíveis e evitar os mais desfavoráveis. Outro quadro teórico de base, delineado por Jim Dator, director do The Hawaii Research Center for Futures Studies, distingue quatro tipos genéricos de cenários de futuro ou quatro tipos de narrativas onde os cenários acabavam por encaixar: os cenários de continuidade, de colapso, de disciplina ou de transformação. Nos cenários de continuidade nada vai mudar de substancial; nos cenários de colapso tudo muda devido a algum tipo de catástrofe como o evento de uma guerra nuclear mundial, ou um fenómeno natural extremo, como super-vulcões; os cenários de disciplina são, por exemplo, as sociedades conservadores descritas nos romances Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell e o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; os cenários de transformação radical são cenários em que, por exemplo, ocorre um despertar espiritual global potenciado por um novo tipo de conhecimento que leva ao desenvolvimento de uma sociedade em perfeita simbiose com os ecossistemas ou, então, em que o futuro é dominado por robots e inteligência artificial como no filme Terminator, de James Cameron (1984).
Passo a descrever livremente algumas metodologias e pontos de partida para ilustrar a prática de Futures Studies. Uma parte significativa destas práticas são dinâmicas de grupo que, entre outras coisas, procuram proporcionar a suspensão voluntária da descrença de modo a fazer emergir imaginários partilhados construídos através do diálogo. Podemos explorar o futuro a partir de premissas como a extrapolação de tendências sociais ou tecnológicas emergentes (novas tecnologias proporcionam novos comportamentos e valores). Podemos procurar tendências do futuro identificando e analisando assimetrias estéticas ou comportamentais subtis. Podemos explorar o impacto de wild cards e analisá-las com metodologias qualitativas e quantitativas. Podemos explorar o futuro através de jogos e simulações com humanos e computadores. Explorar o cruzamento de diversos dados estatísticos em modelações matemáticas temporais em busca de padrões significativos. Podemos explorar através de brainstormings ou dinâmicas de grupo do tipo “roda do futuro” 5. Podemos explorar o futuro estudando o passado e procurando paralelismos com eventos actuais. Podemos explorar o futuro através da análise de crenças e desejos de uma comunidades em relação a algum tema através de inquéritos de terreno e de workshops em contextos concretos. Podemos explorar o futuro a partir da análise dos tabus — if it’s taboo, it’s probably important, citando a futuróloga Sara Robinson. Podemos explorar através da dinâmica de grupo chamada Experiential Scenarios, em que se colocam os participantes em cenários de futuro com um roteiro específico, para o qual são convidados a pensar e a sentir esta realidade hipotética através do trabalho de design e criação de um artefacto ou de um serviço que pertença a essa realidade, num processo de arqueologia revertida. Podemos explorar diversas temáticas através de inquéritos pelo método Delphi 6. Podemos partir de premissas inspiradas em trabalhos de ficção que se desenvolvem habitualmente a partir de um “E se?...” como na ficção científica, na História Alternativa, nas Ucronias, no Retrofuturismo, etc. Podemos explorar, diante de um cenário de futuro desejável, o que fazer para lá chegar, numa espécie de engenharia histórica revertida, tal como o que fazer para termos uma sociedade mais equalitária, por exemplo. Pode-se actuar via Guerrilla Futures, que se podem entender como intervenções experimentais públicas sem contexto preparatório para testar e confrontar a população com possibilidade alternativas do futuro (como na distribuição de 80 000 exemplares em 2008 de uma edição falsa do New York Times divulgando acontecimentos que se gostaria então que acontecessem, tais como o fim da Guerra do Iraque ou a nacionalização da indústria petrolífera com o objectivo de combater as alterações climáticas). Estas metodologias usualmente misturam-se, trabalham em conjunto e inspiram-se umas nas outras tornando os cenários produzidos nos ponto de partida para nova explorações.
Um dos pontos essenciais dos Futures Studies é precisamente o de nos preparar para o inesperado. Sobre a natureza das premissas a partir das quais se constroem os cenários, nomeadamente em contexto de workshops em métodos como Scenario Planning 7, ou os Experimential Scenarios 8, Jim Dator refere na sua supracitada segunda lei das Dator’s Laws of the Future 9 — Any useful idea about the futures should appear to be ridiculous — que se as premissas não forem consideradas à primeira vista absurdas ou ridículas, se não gerarem descrença, se, pelo contrário, forem aceites instantaneamente então não vale a pena continuar o exercício porque pouco haverá a aprender. Premissas bastante divergentes do que pensamos que possa ser o futuro obrigam a exercícios de deslocamento da planície mental dos participantes que, ao longo do processo, enquanto se exploram e conjugam as consequências e comportamentos resultantes desses pontos de partida, começam a ganhar plausibilidade e aceitação, exercitando a capacidade de antecipação, de adaptação e cultivando o distanciamento necessário na qualidade de cidadãos de uma sociedade em que o futuro é efectivamente discutido. Stuart Candy refere que, a propósito dos Experimential Scenarios, “paradoxalmente criamos memórias de experiências hipotéticas” e o dom dessas memórias é que elas nos preparam para as mudanças (embora não as possamos definir ou fixar).
Diz-nos o autor islâmico e futurólogo Ziauddin Sardar: Future studies is largely about thinking the unthinkable. Only when we dare to think the unthinkable can we break out of the straightjacket of established trends and trajectories; and only by divorcing ourselves from the dominant trends within the global system can we hope to shape viable and desirable futures. In so far as theory and research in futures studies is about ‘unthinkable thoughts’, about new departures and new destinations, it is about dissent. 10 ◊