HOMENAGEM
O J—A de Manuel Graça Dias
Apontamentos sobre a primeira série (2000-2004)
Directora-adjunta J—A, séries 2000-2004 e 2009-2013
Arquitecta, Docente (FA-UL), Investigadora (DINÂMIA’CET-IUL)
A primeira passagem de Manuel Graça Dias pelo J—A, Jornal Arquitectos, foi entre 2000 e 2004. O convite foi realizado pela arquitecta Olga Quintanilha (1942-2005), então presidente da Ordem dos Arquitectos, através do Conselho Directivo Nacional. O J—A foi resultado dessa primeira direcção, e uma invenção sua (o Jornal “dos” Arquitectos que o precedeu fora uma revista ainda muito próxima do boletim informativo que estivera na sua origem, em 1981, apesar dos artigos críticos que também publicava). O propósito era, portanto, límpido: “Penso ser chegado o tempo de privilegiar a componente ‘debate’” (Graça Dias, n.º 195, 2000, p. 10).
Manuel Graça Dias imaginou uma revista de teoria e crítica, sem conteúdos noticiosos. Exigiu autonomia editorial e condições económicas para manter uma pequena equipa de redacção. Reuniu um conselho editorial com pessoas que admirava e com quem gostava de partilhar conversas sobre arquitectura — Alexandre Alves Costa, Eduardo Souto de Moura, João Luís Carrilho da Graça, Jorge Figueira e Michel Toussaint —, convidou-me para directora-adjunta e compôs a equipa com Jorge Estriga na edição da secção de projectos. Mais tarde Clara Germana Gonçalves juntou-se a nós, e pouco depois Jorge Nunes substituiu J. Estriga. Com os Barbara says..., Manuel Graça Dias (MGD) desenhou o layout e o logotipo. As últimas edições seriam já criações gráficas da equipa de Jorge Silva. E como era um arquitecto que gostava de palavras, começou,genericamente, por interpelar textos literários — na forma de romance e poesia —, e depois ensaios críticos. Esta primeira direcção produziu 23 números, em língua portuguesa, sem suporte digital, lançados sempre com meses de atraso. Alguns saíram melhores que outros.
Enquanto leitor compulsivo, MGD mantinha com os livros uma relação visceral que transferia directamente para a revista. Os títulos que designavam cada nova edição funcionavam como uma narrativa para o número que era montado de forma livre e sem constrangimentos — algo que mudaria radicalmente na segunda série, de que foi igualmente responsável, entre 2009 e 2013, e que tinha como mote “Ser”.
Entre 2000 e 2004, o J—A reinventava-se a cada novo número. Uma ideia de continuidade, contudo, era garantida pelo grafismo dos Barbara says..., e posteriormente dos Silvadesigners. Capas idênticas — onde se mudava a cor ou o padrão wallpaper — davam suporte a uma identidade editorial que se pretendia reconhecível apesar da singularidade das sucessivas edições. Na fase em que o design foi encargo de Jorge Siva, por exemplo, cada novo número requeria igualmente uma nova fonte caligráfica desafiando o habitual pragmatismo a que MGD era muitas vezes associado. Mais que uma revista, o J—A apresentava-se como uma “colecção”, rompendo com o passado, mas também com o futuro da revista, que não repetiria este excesso de experimentalismo a cada nova produção.
O miolo da revista funcionava como uma miscelânea, composta de excertos do livro que servia de mote, comentários breves, textos críticos curtos, ensaios mais ou menos longos, depoimentos recolhidos entre arquitectos sem tempo para escrever (mas que MGD gostava de ouvir pensar, como Vítor Figueiredo ou Manuel Vicente), entrevistas e mesas-redondas (um formato muito encorajado nesta primeira série). Os textos eram escritos por encomenda. Alguns tornar-se-iam antológicos, identificando com precisão o estado da arte dos temas abordados. A secção de projectos era sempre curta, (normalmente) arriscada e objecto de polémica entre o conselho editorial. Existia a convicção de que o J—A não tinha capacidade económica (e equipa) para produzir bem uma edição de projectos. O desenho, considerado uma forma de representação em perda entre os novos arquitectos, era recuperado e exposto com destaque através de demandas específicas.
Em 2005, na primeira (e até agora única) antologia feita a partir do J—A, MGD escolheu 17 artigos que deveriam representar a sua proposta editorial. A selecção tinha como pano de fundo “orgulho, indiferença estilística, abertura à indeterminação, elogio da poética e requisição crítica” (Graça Dias, n.º 218-219, 2005, p. 229). Em itálico surgiam orgulho, indiferença estilística, indeterminação, poética e crítica, ou seja, palavras-chave que sintetizavam o que fora um programa “crítico”.
Manuel Graça Dias pretendeu sempre que o J—A existisse como uma revista de crítica, no sentido mais manifesto do termo. Nunca, porém, desejou implementar uma revista de tendência. Por isso, perante o desafio de fazer um balanço, destacaria a vontade em produzir uma série que contradissesse de algum modo a “natural” obsolescência que caracterizava este tipo de media. Nas suas palavras, “teria de ser mais ‘espessa’ (...) de ideias, de registos, de críticas, de interrogações, em forma de textos, buscados os temas por entre aqueles que a arquitectura diária nos lembra, mostra, traz” (Idem, pp. 222-223). Os recursos viriam também de áreas tangentes aos circuitos mais óbvios da cultura arquitectónica, “por analogia, procurando os duplos, as sombras, os reflexos da nossa ignorância face ao que fazemos, da nossa incapacidade em enunciar ou explicar aquilo que nos parece (...) adequado” (Idem, p. 223). Seguindo essas 23 edições, desde o número 195 montado a partir de “A Cidade e as Serras”, de Eça de Queiroz, tornava-se possível traçar uma leitura para a cultura arquitectónica do período: a arquitectura portuguesa, entre a contemporaneidade e a história, uma geografia física e humana em desarticulação, a omnipresença de Álvaro Siza, a cumplicidade de arquitecturas próximas, como a brasileira e Paulo Mendes da Rocha (pré-Pritzker e pré-Museu dos Coches), o pós-modernismo em dissolução. Não haveria lugar ao corte com o que tinha sido alcançado antes — e por isso lá estavam a arquitectura moderna e os seus mediadores (Nuno Teotónio, Portas, Távora) — mas existiria espaço para novos modos e daí, também, a presença de uma nova geração que de forma semelhante à de MGD estimava a escrita como modo de actuação e interpelação à arquitectura.
Através do J-A, MGD procurava interlocutores que gostassem de debater a condição coeva da arquitectura sem o imediatismo que muitas vezes — na sua opinião — colocava em risco a coerência e sobrevivência das narrativas disciplinares. Havia a preocupação em não produzir um discurso excessivamente “datado” ou que se esgotasse a cada novo número. Consequentemente, consolidar uma actividade crítica assente em recursos não condicionados pelo tempo imediato constituía um primeiro ponto da sua agenda editorial. Daí também a exigência de uma crítica “espessa”, inteira e densa. O segundo aspecto prendia-se com uma ideia de cultura portuguesa, lugar a partir do qual pretendia interpelar a arquitectura produzida no país, desafiando a condição de periferia tradicionalmente preponderante. George Kubler seria convocado literalmente avant la lettre. No número sobre “A Arquitectura Portuguesa Chã”, Jorge Figueira alertava que, apesar de apaziguados, os portugueses permaneciam na periferia (Figueira, n.º 200, 2001, p. 31). Enquanto Paulo Varela Gomes duvidava do rotineiro não alinhamento nacional, alertando que “a investigação, conduzida em Portugal (...), não [tinha] cessado de encontrar excepções à simplicidade que se julgava dominante (Varela Gomes, n.º 200, 2001, p. 8).
Similaridades temporais e culturais surgiam como hipóteses de trabalho, que MGD gostava de trazer à discussão nos circuitos corporativos em que o J—A normalmente se movimentava Procurava-se essa dupla condição de ser local ainda que universalmente perfilado: “Perceber que pensamos, questionamos — ao mesmo tempo —, as mesmas coisas que outros...” (Graça Dias, n.º 218-219, 2005, p. 224). Os autores interpelados ao longo do J—A reforçavam esta condição de contemporização que MGD perseguia. Mais do que ninguém, era Manuel Vicente que garantia o realismo do discurso e Siza quem fornecia os argumentos construídos.
Graça Dias lançava uma estratégia com centro no objecto: “De quê fala uma obra, que modos promove, que mudanças inaugura?” (Idem). Servia-se deste argumento para começar a descrever o terceiro componente da análise crítica que o J—A deveria validar e que se condensava em uma ideia de “Estilo”; na verdade, um pretexto para testar uma hipótese de mediação entre Alexandre Alves Costa e Manuel Vicente. Em números sucessivos do J—A, “Estilo” foi ponderado entre significado (o que conta é “a relação entre a obra e a vida”, Alves Costa citando Távora, n.º 200, 2001, p. 38) e qualificação (“‘Porque é que tu gostas disto?’ – ‘Sei lá’ E fica-se muito tempo a pensar”, Vicente, n.º 203, 2001, p. 87).
Seguiam-se princípios como o “Imprevisto”, decorrente da condição urbana contemporânea enunciada desde o primeiro número, e finalmente a “Poética”, que iria permitir “resolver”. Para Graça Dias, o J—A teria pretendido seguir uma via não tecnocrática, um horizonte “menos circunstanciado”, resultados “mais exaltantes” (Graça Dias, n.º 218-219, 2005, p. 227). Era já de si que falava. A sua personalidade sistemática, que lhe permitia migrar entre múltiplas actividades, revia-se no exercício permanente de um “método poético” (como o descreveu), criativo e intuitivo, todavia disciplinado. Traçou-o naturalmente como árduo, não se fosse supor “que tudo se pudesse resolver nas revoltas do ‘acaso’” (Idem). Estes seriam — numa descrição final — os caminhos da Crítica. Parafraseando Varela Gomes, confirmaria no fim desse texto de 2005, o tal onde justificava o seu programa editorial, que o rigor a que esta estava obrigada era “a capacidade de responder a um processo dinâmico” (Idem, p. 228): “A nós — convocava agora a equipa J—A — talvez nos interessasse menos o acordar das massas; satisfar-nos-íamos com o acordar dos (...) arquitectos” (Idem, p. 229). Para Graça Dias, desconfio, a primeira série do J—A foi o alargar de uma outra (nova) conversa, a tomada de uma consciência mais aquilina a propósito da urgência da crítica, o escavar sobre a cidade (à qual regressou obsessivamente nos últimos anos). Foi também o tempo em que algumas das suas convicções mais antigas se foram esvanecendo. Sendo possível rastrear, nesse preciso momento, o pensamento de um conjunto alargado de autores, seria MGD quem emergia nessa primeira série, colocando em debate parte das suas incertezas, próprias da maturidade, convocando-nos para a discussão, ouvindo de todos os lados da barricada, esboçando, de forma informal uma ideia de “grupo”. É da leitura fina desses números que também poderemos mapear onde se posicionou enquanto arquitecto nas últimas duas décadas da sua vida. ◊