ENSAIO
Educação para o Arquitecto desempregado na era do Educador analfabeto
Professor Auxiliar (FA-UL)
© Foster + Partners
A actualidade apresenta um conjunto de realidades que altera as premissas do que deverá ser um sistema educativo conducente à formação do Arquitecto. Adicionalmente às premissas do passado, juntam-se agora as seguintes: 1–a lógica do mundo é global e suportada pelas tecnologias da informação e comunicação (TIC); 2–face a uma globalização de domínio anglo-saxónico, para se ser alfabetizado, devemos dominar a nossa língua-mãe e o inglês; e 3–na vulgarização das TIC começamos a reconhecer a necessidade de saber programar como requisito cultural básico, que se expressa já pela inclusão de conteúdos de programação no ensino básico, implicando, adicionalmente ao ponto 2, que a literacia mínima futura incluirá como requisitos mínimos não só o domínio da língua-mãe e do inglês, mas também de pelo menos uma linguagem de programação. A estas premissas acresce o excesso de arquitectos existente no país, sendo de esperar que a maioria dos futuros arquitectos não venha a encontrar emprego nas áreas tradicionalmente consideradas como actividade central do licenciado ou “mestre à bolonhesa” em Arquitectura.
Face a estas realidades, coloca-se a questão: como deveremos reestruturar o ensino da Arquitectura num contexto onde o candidato a arquitecto está condenado ao desemprego e o educador é analfabeto?
Podemos afirmar, em contexto português, que o ensino da Arquitectura reside ainda na tradicional hegemonia do Desenho (e da Geometria) como ferramenta e do projecto como método, factores vistos ainda pela maioria dos académicos como os essenciais, senão mesmo os únicos, necessários na formação do Arquitecto. Esta visão, que objectiva apenas a actividade tradicional de atelier, condena os estudantes a um futuro frustrado maioritariamente votado ao desemprego. Não se pretende negar o valor do desenho e do projecto enquanto ferramenta e método, mas apenas sublinhar a sua insuficiência como formação contemporânea em Arquitectura. Assinale-se ainda que a própria práxis profissional face às transformações introduzidas pelas TIC tem alterado mesmo o que são consideradas pelos ateliers as competências necessárias exigidas aos seus colaboradores.
Em defesa deste argumento apresentam-se exemplos:
1 — As dinâmicas aceleradas do mundo contemporâneo, onde a realidade dominante são cidades como Shenzhen na China, que em 30 anos cresceu de 50 000 para 20 milhões de habitantes, impõem a necessidade de responder num curto prazo a uma encomenda arquitectónica que exige originalidade, rapidez, rigor técnico e responsabilidade. E todas estas qualidades, com custos menores que antigamente. Face a esta realidade, a prestação qualificada que geralmente carece de tempo de maturação ficará naturalmente reduzida a um conjunto muito limitado de beneficiários disponíveis para pagar 10 a 20 vezes mais que o valor médio de mercado. Esta parece ser a tendência actual da encomenda.
2 — O desenvolvimento de software de suporte à prática do projecto e capaz de melhorar a resposta técnica nos termos da exigência acima mencionada; o software BIM (Building Information Modeling) é uma ferramenta que, na óptica do encomendador, vem permitir responder mais rápido, gerir alterações até à “última hora”, eliminar erros e omissões, verificar conflitos entre projectos de especialidades, gerar a documentação de suporte à construção e orçamento em pouco tempo. Esta práxis reduz drasticamente o tempo reclamado pelo arquitecto como necessário ao amadurecimento da sua arte, encaminhando-o para uma resposta tecnologicamente eficiente, rápida e profissional. Sublinhe-se que o BIM não é a ferramenta mais disruptiva, mas apenas um exemplo que já é realidade (e normativa em muitos países). As ferramentas disponíveis ditarão a exigência e características da encomenda e o que está em laboratório irá apenas acentuar esta realidade.
3 — Harlan Miller, coordenador do UNStudio’s Computational Knowledge Platform, foi keynote speaker na conferência eCAADe em 2018 1, onde apresentou os critérios de selecção de colaboradores arquitectos no atelier UNStudio de Ben van Berkel. O escritório selecciona arquitectos que provam o domínio de pelo menos um software de BIM, de uma interface de programação paramétrica e de uma linguagem de programação associada a um modelador de geometria complexa e ao próprio software de BIM. Desta pré-selecção escolhem os melhores. Miller revelou ainda que o tempo entre encomenda e início de obra tem reduzido significativamente, levando nos casos limite apenas um mês — um mês da encomenda ao projecto de execução, sem erros e omissões. Se alguns já o fazem, talvez venha a ser esta a bitola da encomenda.
4 — Na verdade já existe a plataforma que torna o arquitecto praticamente irrelevante. O website architechtures 2 presta um serviço baseado numa plataforma com suporte em inteligência artificial, onde o utilizador pode desenvolver, para um lote, o projecto de um edifício de habitação manipulando um conjunto de parâmetros e descarregar o modelo BIM para eventuais ajustes. Este modelo de negócio fornece em poucas horas o projecto de execução acabado incluindo orçamento e infra-estruturas a qualquer interessado, e disponibiliza várias linguagens arquitectónicas à escolha do utilizador. Assim que esta realidade caia na práxis da encomenda ela ditará o modelo. Isto não é ficção científica é concorrência.
Em síntese: o modelo de ensino tradicional em Arquitectura não prepara o arquitecto para agir neste mundo globalizado e informatizado.
O Educador analfabeto
Por quase todo o mundo, novas políticas de ensino começam a introduzir no ensino básico pequenos conteúdos de programação, linguagens desenhadas para serem ensinadas a crianças 3, permitindo-lhes começar a dominar pequenos fundamentos de programação. Esta ideia de ensino é sustentada pelo recente relatório da Ove Arup, Future of Schools 4. Quando estas novas gerações chegarem ao ensino superior (após 12 anos de formação) lidarão com a programação como quem hoje lê correntemente literatura inglesa no original. E confrontar-se-ão com um corpo docente que à luz destes critérios será maioritariamente analfabeto.
As oportunidades da Arquitectura
O ensino da Arquitectura, no entanto, poderá desempenhar um papel fundamental na criação das profissões do futuro, caso saiba incorporar nos programas de estudos conteúdos avançados relativos às TIC e ainda uma percentagem considerável de espaço de personalização de conteúdos para que o estudante criativo possa encontrar o seu nicho de especialização e conhecimento 5. Esta alegação parte de um argumento (de 2002) de Richard Florida 6 de que a maioria das profissões de sucesso do futuro ainda estão por inventar. Para Florida, as pessoas que irão inventar tais profissões possuem um conjunto de características que são coincidentes com as tradicionalmente encontradas no ensino da Arquitectura (métodos criativos, método de projecto e multidisciplinaridade) acrescidas de competências fortemente desenvolvidas e avançadas no campo das TIC. Sendo a multidisciplinaridade por ele apontada como característica essencial da formação do futuro profissional criativo e, também, uma característica da formação do Arquitecto, será importante acentuar a multidisciplinaridade aumentando o universo de formação livre optativa nos cursos de Arquitectura a fim de promover a criação de novas actividades profissionais (out of the box). Trata-se de formar criadores de novos empregos e ensiná-los a projectar novos modelos de negócio.
Alguns autores apresentam visões bem mais disruptivas das transformações do mundo. Destacam-se dois livros: The Master Algorithm de Pedro Domingos (2015) 7 e Homo Deus de Yuval Harari (2017) 8, nos quais se apresentam algumas evidências dessas transformações. Ambos nos falam do advento da inteligência artificial e da aprendizagem automática (machine learning) e de como tais abordagens irão transformar o modo como fazemos as coisas e lidamos com o conhecimento. Na conferência eCAADe supramencionada apresentaram-se trabalhos baseados em machine learning com o objectivo de desenvolver novas ferramentas para a Arquitectura 9. Trata-se de ferramentas em desenvolvimento laboratorial que virão provavelmente, e num futuro próximo, integrar software comercial, simplificando e limitando ainda mais a saída profissional do arquitecto.
Domingos e Harari referem como várias profissões serão substituídas por algoritmos mais fiáveis do que o veredicto humano dando como exemplos os diagnósticos médicos ou um veredicto legal. Interessa perceber que o equivalente em Arquitectura será integrar na máquina cada vez mais a resolução de componentes técnicas como a segurança, a contabilização de processos de obra, controlo orçamental, entre outros, pelo simples princípio de que são aspectos objectivos, processáveis por algoritmo, cujos erros não serão aceites pelas entidades responsáveis nem pelos clientes. A seu tempo as seguradoras exigirão prova de tais competências a fim de definir as suas responsabilidades na elaboração contratual dos seguros para Arquitectura.
Dir-se-á que tais tarefas levarão os engenheiros ao desemprego e não os arquitectos. Se, pela objectividade das tarefas é quase certeira a substituição do trabalho tradicional do engenheiro pelo software, quanto ao arquitecto, dada a dimensão criativa envolvida, poucos argumentarão a sua substituição pela máquina. Todavia, se a limitação das máquinas é apenas determinada pelas limitações dos seus criadores, deveremos admitir que uma máquina será pelo menos capaz de produzir o que os humanos são capazes e tão bem quanto eles. Domingos e Harari dizem-nos que a máquina será na realidade mais fiável que o humano porque aprenderá melhor que ele, será capaz de processar mais e melhor a informação e sem errar, o que ambos ilustram com o exemplo do automóvel sem condutor 10.
Voltando à Arquitectura e ao website architechtures, este estrutura-se de modo a responder à maioria dos requisitos dos edifícios de habitação, produzindo projectos com linguagens diversificadas e adaptadas à maioria das circunstâncias. Outras linguagens podem ser programadas aumentando o espectro da resposta em termos de discurso arquitectónico. Como o output do sistema é um modelo BIM paramétrico, o projecto produzido pode automaticamente ser ajustado através das ferramentas BIM, resolvendo circunstâncias não previstas no programa. Assim, a produção tradicional de habitação parece comprometida a ser cada vez mais dependente de ferramentas de geração automática de soluções e representará certamente uma redução significativa do mercado para os arquitectos. Outras tipologias de edifícios poderão também ser automatizadas. No universo da reabilitação refira-se a tese de Camila Guerritore 11 que apresenta uma gramática da forma 12 para o desenvolvimento de um sistema gerador de remodelações de edifícios de escritórios e sua adaptação para habitação. O modelo apresentado constitui a descrição técnica, em termos computacionais, de como implementar tal software, ainda que não seja o software. Só falta programá-lo. Outro exemplo provém do trabalho de Humera Mughal, de quem sou orientador, que visa desenvolver um software para optimização da ventilação natural em edifícios de desenvolvimento vertical. Este trabalho implica a produção de um software que gera uma variação infinita de soluções formais para edifícios em altura à qual se aplicará um sistema de optimização multicritério por via de um algoritmo genético destinado a seleccionar as soluções óptimas quanto à performance da ventilação natural. A geração de todas as soluções geométricas para esta tipologia de edifícios, está feita 13. Falta o desenvolvimento do software de optimização.
Coloca-se então a questão: quais serão as possíveis saídas profissionais para os novos arquitectos? E qual será a estrutura curricular ideal para o ensino da Arquitectura?
Estrutura curricular para o ensino da Arquitectura
Começamos pela segunda questão. A fim de promover as capacidades necessárias ao desempenho das profissões futuras que poderão ser desempenhadas por arquitectos, o ensino da Arquitectura deverá:
1 — Continuar a promover o ensino dos métodos de projecto e processos criativos onde se destacam o Desenho e a Geometria e todos os métodos e meios de representação associados (os tradicionais e os computacionais).
2 — Continuar a promover uma formação multidisciplinar, alargando mais o seu espectro, aumentando os conteúdos opcionais destinados à personalização da formação. Dever-se-á identificar o conjunto de áreas consideradas essenciais à formação em Arquitectura, determinando o número mínimo de créditos em cada área para o seu reconhecimento na prática tradicional da Arquitectura e acrescer uma percentagem expressiva de conteúdos optativos para a personalização da formação. Convém ainda incentivar os estudantes à obtenção de créditos em variadas áreas disciplinares podendo mesmo ultrapassar o número mínimo de créditos necessário à obtenção do diploma como meio de oferecer um carácter único à sua formação. O estudante assim formado será tanto mais especializado e exclusivo quanto mais pessoal for o seu percurso.
3 — Incluir conteúdos sobre conceitos de computação, programação, matemática de suporte, ferramentas e métodos próprios das TIC. Há quem alegue que o nível de educação digital mínima corresponderá a programar e manter um website próprio, já que tal servirá de suporte para quase todas as actividades profissionais do futuro. Isto implica que o nível mínimo de literacia do futuro licenciado deverá incluir o domínio da linguagem html, css e javascript. Como arquitecto consigo justificar mais duas linguagens: uma de programação visual paramétrica e outra de script.
Futuros profissionais
Assim, assumindo que esta formação passará a existir, qual será o universo de saída profissional para o arquitecto formado neste modelo?
• O arquitecto tradicional, como o vemos ainda hoje, mas destinado a uma práxis com maior suporte nas TIC 14.
• Actividades ancilares como as actividades intermediárias entre projecto e obra, preparador, coordenador de obra, construtor (maioritariamente suportadas em BIM), ou ainda as funções de carácter mais administrativo no âmbito do ordenamento municipal e funções afins (maioritariamente suportadas em SIG). São ainda actividades tradicionais mas representam uma saída profissional mais provável que as acima mencionadas.
As restantes saídas profissionais serão dependentes de uma formação avançada no domínio das TIC ou motivadas por formas de transdisciplinaridade invulgar e inventiva:
• Fabricação Digital. Os arquitectos poderão e deverão estar envolvidos no desenvolvimento de novas tecnologias de construção e em todas as vertentes desde a sua invenção até à oferta do serviço como “construtor digital”. Neste âmbito as primeiras ofertas já se encontram no mercado, mas será de esperar a médio prazo que surjam ofertas de nível tecnológico mais elaborado. São exemplos os casos do sistema Winsun na China 15 (implementado e em execução) e a 3D Printed Canal House dos DUS Architects 16 (em construção, mas ainda em fase experimental). É de esperar que tais avanços tecnológicos sejam rápidos porque os níveis de apoio financeiro a estas tecnologias são cada vez mais elevados. Sabendo que o desafio é tecnologicamente complexo, a pressão do incentivo é acentuada por projectos ambiciosos, como seja o desenvolvimento de tecnologia para construir na Lua 17 ou em Marte 18. Se a construção na Lua e em Marte não for, em breve, um nicho de negócio, presume-se que será uma oportunidade a longo prazo; o incentivo à investigação com esta orientação poderá ser um impulsionador importante ao desenvolvimento destas tecnologias sendo de esperar para breve séria competição com a construção tradicional. Este é um espaço para os arquitectos que deverá ser explorado por profissionais competentes, simultaneamente no nível tecnológico e arquitectónico. E a busca de novas expressões tectónicas para a construção digital será necessariamente um trabalho para arquitectos 19.
• Na linha de orientação sugerida pelo website architechtures, os arquitectos poderão começar a projectar sistemas de geração de soluções de natureza semelhante. As soluções produzidas no architechtures, embora já variadas na sua linguagem arquitectónica e estruturação espacial, podem ainda obedecer a critérios de linguagem e discurso estético mais personalizado, dependendo do arquitecto que programa o sistema de acordo com premissas estéticas pessoais. A linguagem do arquitecto deixará de se expressar somente por via do lápis ou de CAD, mas também através de programação e por esta via projectando uma família de objectos em vez de um objecto único. O modelo de negócio será não só diferente mas disponibilizado a um mercado internacional e viabilizado pela dimensão globalizadora da internet.
• Consultorias baseadas na espacialização de big data que permitem identificar dinâmicas e tendências do desenvolvimento urbano, performance urbana, dinâmicas espaciais da economia, dinâmicas sociais, suporte à decisão em planeamento urbano e simulação de cenários de desenvolvimento. Este é um mercado de trabalho não praticado ainda em Portugal e que leva a que grandes decisões de planeamento sejam tomadas ainda “ a coração” com base numa suposta experiência, mas na realidade sem fundamentação técnica objectiva. A tecnologia já permite desenvolver modelos de simulação e validação de cenários abordando problemas complexos como o planeamento das cidades. A análise de dados feita exclusivamente por ferramentas estatísticas ou por machine learning apenas poderá produzir informação relevante quando trabalhada por profissionais formados nas áreas que estudam o objecto de análise (a cidade), mas também detentores do domínio das ferramentas e meios teóricos de suporte à interpretação.
• É de esperar que o universo de necessidades em Arquitectura venha inclusivamente a impor o desenvolvimento de mais software, o qual, sendo fortemente especializado e centrado no conhecimento arquitectónico deverá necessariamente envolver arquitectos. Mesmo que a programação pura e dura seja feita por programadores especializados, o desenho e conceptualização de software para Arquitectura deverá ser sempre coordenado por arquitectos capazes de dialogar em pé de igualdade com os programadores.
Estas actividades só estarão disponíveis para aqueles que souberem acumular conjuntamente com a formação em Arquitectura elevadas competências nos domínios das TIC. Será de esperar a emergência de novas áreas de empregabilidade para o arquitecto. Tal mercado é necessariamente internacional, suportado pelas TIC, internet e big data, e com capacidade de empregar um percentual significativo de arquitectos; mas apenas aqueles que acumularem na sua formação as várias competências literárias: a língua-mãe, o inglês e linguagens de programação.
Existe uma fatia significativa de oportunidades profissionais que, de acordo com Florida, representarão a maior faixa de oportunidade: aqueles que em vez de projectar Arquitectura irão projectar novos empregos. Isso será feito por arquitectos porque detêm as competências necessárias para o efeito: têm formação em métodos criativos, metodologia de projecto, formação transdisciplinar fortemente personalizada e competências em TIC. Cada vez mais vemos aparecer modelos de negócio com este suporte, mas para tal é necessário projectar esse modelo de negócio, é necessário idear, desenhar e programar tais sistemas, website, interface e o que estiver associado.
Segundo Florida, serão os profissionais com estas competências que virão a criar os principais empregos do futuro. O ensino da Arquitectura tem assim uma oportunidade de luxo para se colocar na frente da formação de tais profissionais, mas para tal terá de transformar profundamente a sua estrutura e qualificar-se pela introdução de educadores alfabetizados apetrechados dos requisitos de literacia mínimos que a formação exige. O caminho de transformação já está iniciado, mas tem ainda a vencer uma barreira resiliente de preconceito. É urgente vencer tal barreira, pois a manter-se conduzirá o ensino da Arquitectura à perda da sua posição de vantagem. A educação em Arquitectura tem, portanto, de se renovar. ◊