CRÍTICA
O novo MAAT
Mais do que uma questão de forma, um problema de tempo
Arquitecto e curador
Todos os arquitetos são formalistas. Apenas temos diferentes formas de mentir sobre esse assunto.
Lisboa, tarde de feriado de 5 de Outubro de 2016: a frente ribeirinha de Belém enchia-se de passeantes para ver o novo Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), instituição promovida pela Fundação EDP como complemento do, também seu, Museu da Electricidade na Central (Termoeléctrica do) Tejo. Nessa noite, jornais e telejornais anunciavam que 15.000 pessoas tinham cruzado a linha férrea, na zona de Belém, para conhecerem de perto a nova obra assinada pelo atelier britânico AL_A, dirigido pela arquitecta Amanda Levete; omitindo, na sua generalidade, que nessa mesma tarde, nessa mesma frente ribeirinha, muitos visitantes ali estariam para assistir à inauguração de um dos polos da 4ª Trienal de Arquitectura de Lisboa, e em particular o edifício-pavilhão “A Forma da Forma” comissariado por Diogo Seixas Lopes, e desenhado, em conjunto, pelos arquitectos Nuno Brandão Costa, Kersten Geers (Office KGDVS) e Mark Lee (Johnston Marklee), no pátio da Central Tejo.
A simultaneidade dos dois edifícios naquele lugar – um permanente, outro efémero; um mediaticamente celebrado, outro omitido – leva-nos a tecer algumas considerações sobre a interacção entre formas e tempos (para regressarmos a um tema da Trienal de Lisboa), em face de uma outra relação: a da arquitectura com a cidade.
Foi o historiador de arte George Kubler que, na obra A Forma do Tempo. Observações sobre a História dos Objectos (1962)2, nos ensinou a ler a sedimentação do tempo (leia-se também da “cidade”) a partir do permanente diálogo entre objectos e imagens (leia-se também “arquitecturas”)3. Na língua inglesa, o conceito de “forma” encerra mais do que a aparência ou o estilo do objecto (style/styling) remetendo também para o processo da sua modelação (shape/shaping). Nesse sentido, para Kubler, todo o tempo possui uma forma – ou “fôrma”, como costuma dizer Nuno Portas – e, no sentido inverso, qualquer forma é sempre moldada por um tempo, podendo ou não sobreviver-lhe.
De que modo podemos ler estas interacções na frente ribeirinha de Belém? E como situar o novo MAAT nessa relação entre tempos e formas?
No tempo da cidade
Numa leitura feita a partir da cidade, é possível dizer que o novo MAAT não consegue fugir à tentação icónica que marca os restantes museus projectados nesta frente urbana. A herança histórica deixada pela mitificação estadonovista do lugar de Belém – como centro da Grande Exposição do Mundo Português de 1940 – parece inspirar uma certa monumentalidade formal nos edifícios culturais ali erigidos ao logo das últimas décadas; isto, apesar dos bem-intencionados percursos, praças e terraços democráticos, debruçados sobre o Tejo, propostos por Vittorio Gregotti no Centro Cultural de Belém (CCB), por Paulo Mendes da Rocha no Museu dos Coches e, agora, por Amanda Levete no MAAT. É interessante perceber como a visão da “fotografia-postal” ou dos renders digitais da fachada ondulante deste novo museu, sob a sua varanda pública, colocam sempre o ponto de fuga, ora no Padrão dos Descobrimentos, ora na Ponte 25 de Abril, perpetuando fatalmente essa aspiração monumental.
Mas a História repete-se de outro modo: uma vez mais, em Belém, inaugurou-se um ícone arquitectónico sem que este estivesse totalmente terminado – lembremos que o CCB continua amputado em dois módulos, o Museu dos Coches não possui uma museografia definitiva, e o novo MAAT necessita de evidentes “acabamentos”; mas, sobretudo, sem antes se tratar de requalificar a relação da cidade com os espaços públicos desta frente ribeirinha, a qual mais não é do que uma “manta de retalhos” feita de relvados desconexos, esplanadas improvisadas, parques de estacionamento avulsos, viadutos envelhecidos e outras reminiscências de épocas anteriores. A anunciada intenção de juntar mais uma ponte pedonal (à já proposta por Paulo Mendes da Rocha?) sobre a Avenida Brasília e a linha férrea paralela, integrando-o no projecto paisagístico do novo MAAT, apenas acrescentará mais um “retalho” ao conjunto, o qual necessita urgentemente de ser repensado de forma mais contínua e articulada.
No tempo da cultura
Em relação ao tempo cultural em que vivemos, é também possível encontrar algumas contradições no projecto museológico e museográfico do MAAT. Na sua anunciada missão interdisciplinar, de cariz generalista, o novo museu assume uma abrangência temática que, paradoxalmente, poderá limitar apostas disciplinares de maior especificidade reflexiva e discursiva. Uma instituição cultural que hoje deseje ser sobre “tudo” – agradando a todos os públicos, de todas as formações –, corre o risco de se tornar num projecto sobre “nada” em particular. Toda e qualquer tendência actual para a “parque-tematização” da cultura deveria ser, também aqui, criticamente evitada.
Por outro lado, e tendo que viver entre a realização de “exposições-pacote”, em itinerância internacional, e exposições realizadas “site-specific”, por convite a criadores e curadores, tudo levaria a crer que o novo projecto do MAAT nos ofereceria espaços expositivos mais codificados, gerando a oportunidade única de libertar o interior da Central Tejo dos excessos museográficos – aproximando-o da sua condição original –, e de ali criar um lugar de trabalho desafiante para esses artistas convidados. Assim aconteceu, por exemplo, na Sala das Turbinas da Bankside Power Station, em Londres, “resgatada” pela dupla de arquitectos Herzog & de Meuron no seu projecto para a Tate Modern.
Aparentemente, tal não ocorrerá em Belém. Nos eventos inaugurais do MAAT – e que deixam adivinhar a sua futura política museológica – a grande exposição “site-specific” da artista Dominique Gonzalez-Foerster instala-se no coração ovóide do novo edifício, enquanto a Central Tejo se enche de mostras mais convencionais, em salas do tipo “cubo branco”, ali implantadas à força, e cuja escala e materialidade não resistem à incontornável magnitude espacial daquele valioso património industrial.
Central Tejo – MAAT
Central Tejo – MAAT
© Bruno Lopes
No tempo da arquitectura
É também por essa (não) relação arquitectónica com a Central Tejo que o novo MAAT gera as maiores perplexidades. Assumindo-se como um seu complemento, o edifício de Amanda Levete não estabelece, no entanto, qualquer empatia significativa com aquela construção precedente: nem franca, nem desafiante, preferindo aparentemente apostar na quase indiferença.
Na verdade, o novo MAAT inscreve-se numa tendência arquitectónica bem codificada, a que alguns chamam de “blob architecture” ou “blobitecture”4 e que marcou sobretudo as décadas de 80 e 90 do século XX. Recusando continuidades racionais, históricas ou espaciais, com tecidos ou edifícios urbanos pré-existentes, muitos exemplares dessa arquitectura biomórfica, de formas curvas e fluidas, preencheram diferentes cidades americanas e europeias durante a “festa” icónica que marcou o último fim-de-século, sob a assinatura de arquitectos como, entre outros, Frank Gehry, Zaha Hadid, Daniel Libeskind e Peter Cook, ou colectivos como Morphosis, Coop Himmelb(l)au e Future Systems – este último formado, em 1979, precisamente por Amanda Levete e Jan Kaplicky.
Na última década, e após uma revisão crítica dessa tendência, conduzida sobretudo na cultura europeia, muitas dessas arquitecturas (e dos seus arquitectos) viraram-se para as novas cidades da China e do Médio Oriente – no Dubai, Abu Dhabi ou Qatar –, ou seja, para lugares sem sedimentação histórica e a necessitar urgentemente desses irrepetíveis gestos icónicos. O problema é que esses mesmos gestos se tornaram fastidiosamente repetitivos, criando uma cíclica sensação de déjà vu – de país para país, de cidade para cidade –, num processo de progressiva deterioração, quer do modelo, quer da qualidade da arquitectura. Esse fenómeno desaguou agora na frente ribeirinha de Belém, evidenciando o modo como se perdeu uma bela oportunidade para debater, experimentar e interagir com a memória industrial e portuária da cidade – recordemos, de novo, o notável exemplo da reconversão e da recente extensão da Tate Modern em Londres –, para dar lugar, em Lisboa, a uma proposta datada, que dificilmente sobreviverá à “forma do tempo”, para evocarmos de novo George Kubler.
No tempo do tempo
Ao percorrermos a margem do Tejo, naquela tarde de feriado, era inevitável estabelecer uma relação entre o novo MAAT e o efémero pavilhão “A Forma da Forma”, implantado no pátio da Central Tejo. Pensado como um cadavre exquis, composto por “pedaços” de diferentes obras dos três arquitectos convidados pela Trienal de Lisboa, o pavilhão expunha, no exterior, a sua “ossatura” regular de alumínio, em contraste com a sinuosidade depurada dos espaços “internos” por ela gerados.
No seu assumido formalismo – “todos os arquitectos são formalistas”, recorda-nos Mark Lee na abertura deste texto –, esse pavilhão parecia dialogar abertamente com a estrutura aparente das fachadas da Central Tejo, afinal, também ela um cadavre exquis composto por distintos volumes construídos ao longo do tempo. Não disfarçando a sua actualidade, o mesmo pavilhão conseguia, ainda assim, estabelecer uma descomplexada continuidade com a sua pré-existência, passando, de algum modo, a “pertencer-lhe”.
Inadvertidamente, aquele frágil e efémero objecto, incapaz de resistir aos rigores do tempo climático, acabaria por denunciar o anacronismo do telúrico e oneroso objecto do MAAT, colocando-nos, por absurdo, perante uma questão incómoda: do ponto de vista daquele lugar único, qual desses objectos merecia afinal permanecer, e qual devia ser por fim desmontado? O tempo histórico o dirá. ◊