ENSAIO
A Perenidade da Forma
Arquitecto e curador
"Não se trata de colocar a poesia ao serviço da revolução, mas sim colocar a revolução ao serviço da poesia"
Falar de forma tornou-se hoje algo muito difícil e ingrato. Ainda que separando forma de formalismo, a forma é na nossa herança modernista resultado de uma função (form follows function) ou seja algo tido como secundário e consequente. Na prática sabemos que não é assim, sabemos que numa mesma situação, perante o mesmo programa, dois arquitectos encontrarão maneiras diferentes de ver a encomenda e de representar o projecto, espelhando uma diversidade inerente à subjectividade do acto criativo. É também recorrente ver as mesmas formas responder a programas completamente distintos. Se o valor da forma dependia antes da função e ainda antes disso do cumprimento estilístico enunciado pela tradição Beaux-Arts, hoje, a forma parece vincular-se apenas a uma autonomia autoral. Ainda que aparentemente liberta da “função” ou do “estilo”, a forma na arquitectura contemporânea, não parece conseguir-se libertar de uma certa superficialidade, talvez inerente à sua condição mais de “contentor” do que de “conteúdo” (salvaguardando-se que esta dicotomia pode, simplesmente, não fazer sentido: “forma é a configuração visível do conteúdo” ).
Parte da relutância em falar de forma hoje, decorre também de uma ressaca de “especulação formal” (não dizemos “experimentação formal” porque a palavra especulação ilustra melhor os interesses económicos). O Museu Guggenheim de Bilbau de Frank Gehry é talvez o melhor exemplo desta especulação por ser uma obra que, aparentando não ter limites, conseguiu com enorme mediatismo, um alargado consenso e retorno imediato no desenvolvimento da cidade. O mesmo não se poderá dizer, pelo menos ainda (sublinhe-se), da Filarmonia de Hamburgo projectada por Herzog & de Meuron.
Poderemos dizer que a relutância em falar de forma advém em primeiro lugar do factor económico, do custo da especulação formal, que em tempos de crise e de maior consciência das desigualdades nos leva a questionar (tantas vezes de modo simplista) o propósito da arquitectura dita “icónica” (Chales Jencks). Acresce a tudo isto, num cenário ditado pela mediatização, o sentimento de que a forma, hoje, parece ser um produto resultante da “imagem”: a imagem do poder em primeiro lugar, por vezes do populismo; e a imagem em si, enquanto veículo de representação, cuja plausibilidade facilmente nos seduz ao extremo da ambiguidade entre possível e impossível. Sendo que o impossível se constrói, mas tem um outro preço.
Enquanto dependente da imagem e da mediatização, a forma está subjugada a um poder que é na sua essência efémero, porque assenta numa incessante procura de novas imagens e de novas formas (ou ilusão de novas formas). O excesso de informação, o excesso de imagens que hoje alimentam as redes sociais é também o excesso e saturação que atribuímos à forma na sua vertente mais excêntrica e é quase sempre aqui que se dilui a fronteira entre forma e formalismo (entre essência e aparência).
A resistência a esse sentido de arquitectura como “espectáculo” (Guy Debord) tem passado por um discurso de recusa da forma – o que consideramos um grande equívoco (pelo menos no âmbito disciplinar). Essa recusa começa em primeiro lugar por desviar a atenção sobre o objecto arquitectónico em favor dos processos que levam à sua legitimação. Neste sentido os processos “participativos” tendem, cada vez mais, a impor-se demagogicamente, arrastando consigo um certo menosprezo pelos “projectos de autor”, como se estes não fossem também e sempre o resultado de processos participados, quanto mais não seja nas condicionantes que encontram.
Ironicamente, a mesma crítica que procura contrariar a especulação formal, facilmente adere ao seu contrário, isto é, à especulação informal. A palavra “especulação” matem-se porque a informalidade na arquitectura não é, não deixa de ser, uma outra forma de especulação económica, não só adjacente aos mesmos mecanismos do espetáculo mediático (veja-se o tema da última Bienal de Veneza), mas essencialmente por tudo aquilo que aceita abdicar em prol de uma ilusão de acessibilidade à arquitectura. A informalidade (e não estamos a falar de “estilo”), está quase sempre associada a uma ideia de low cost, ou seja, na desvalorização do trabalho, na exploração do trabalhador e tantas vezes na desresponsabilização do Estado e das suas obrigações sociais. A ideologia por trás do low cost é o capitalismo selvagem.
Mas o argumento mais importante a reter assenta na ideia de que a forma, enquanto saber disciplinar, terá sempre uma responsabilidade ainda maior perante a precariedade. Menos recursos implica um maior rigor formal, implica um maior reconhecimento do trabalho do arquitecto. E neste sentido a informalidade na arquitectura só deveria existir de modo espontâneo e decorrente de necessidades específicas, eventualmente até da vontade própria como opção decorrente do direito e liberdade que reconhecemos a cada um de desenhar a sua própria casa, mas não se poderá confundir esse quadro mais alargado da “arquitectura sem arquitectos” com uma desresponsabilização do papel do arquitecto nos desígnios da forma enquanto saber.
Há um outro equívoco na crítica que se vai fazendo à forma e aos arquitectos-autores (a mesma crítica que levou Frank Gehry a mostrar o seu dedo médio), é atribuir-lhes uma responsabilidade maior do que aquela que efectivamente têm. Os arquitectos têm uma responsabilidade sobre a forma, essa responsabilidade pode e deve ser crítica em relação à encomenda, mas dificilmente se pode fazer substituir à vontade política (no sentido da arte do compromisso), que num país democrático, deverá representar os interesses públicos (uma abstracção, por certo, mas que valerá alguma atenção final).
Arriscarei uma síntese a partir de “Uma História Triangular”, uma peça/instalação concebida por Eduardo Souto de Moura para a Sala Azul do Palácio Pombal no âmbito da 4ª edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa, sob o tema A Forma da Forma, e que tive a honra de comissariar. Esta peça representa três pirâmides, distantes no tempo e distintas na sua materialidade: a grande pirâmide de Quéops, na necrópole de Gizé, construída em pedra cerca de 2.560 a.C.; a pirâmide invertida em betão-armado idealizada em 1954 por Óscar Niemeyer para o Museu de Arte Moderna em Caracas; e a pirâmide em vidro construída por Ieoh Ming Pei, em 1984, no Museu do Louvre em Paris.
Eduardo Souto de Moura está interessado numa “autonomia da forma” não no sentido literal da “folie” (o que até seria legítimo, lembrando, por exemplo, o Parc de la Villette em Paris de Bernard Tschumi) mas no sentido figurado da procura de uma “linguagem” ou “caligrafia” (a diferença, costuma dizer Eduardo Souto de Moura, está na consciência ideológica). Sendo que esta procura só pode ser escrita ou reescrita pelo arquitecto que perante a imensidão da história e da cultura visual, assume, com mais ou menos humildade, a vontade de apropriação da forma, da sua re-significação, para lá da sua origem, do seu contento específico. Evoca-se portanto uma “perenidade da forma” que resiste ao tempo, como se de um abecedário apenas se tratasse (o Letrismo de Isidore Isou não andará muito longe).
Há, como parece claro, uma ironia nisto tudo, que não se diferencia muito da ironia que é considerarmos hoje “património da humanidade” uma pirâmide que só pôde existir como consequência de sistema despótico de escravatura. A perenidade da forma assenta na mesma legitimidade quase apolítica que permite pensar o classicismo como representação da primeira democracia ou da última ditadura.
É por tudo isto difícil falar de forma, e mais difícil ambicionar concebe-la entre uma herança do passado e um desejo de futuro. Ser arquitecto é ter essa ambição presciente do projecto. Para descanso de todos, poderemos concluir que, entre ícones e arquétipos (num intervalo alargado entre o espetáculo e a banalidade), há uma dimensão da forma que está para lá do arquitecto e que implica um outro sentido de participação ou de “interesse público”: a perenidade da forma dependerá sempre da memória colectiva. Esse escrutínio será sempre um olhar crítico de fora para dentro da arquitectura. ◊