ENSAIO
O futuro não foi branco
após o white-cubismo, os brown rooms/grey halls
Arquitecta, Curadora, Investigadora Pós-Doutoramento (IHA-NOVA/FCSH)
Psycho Buildings: Artists take on Architecture, galerias da Hayward Gallery, Londres 2008
© Foto: Stephen White. Cortesia do artista, da Matt’s Gallery, London, e da Galleria Franco Noero, Torino.
© Foto: Stephen White. Cortesia do artista, da Matt’s Gallery, London, e da Galleria Franco Noero, Torino
Sabemos já que o futuro não foi branco
Ao longo do século XX o espaço foi empalidecendo. O conceito abstracto de um cubo branco disseminou-se, tornando-se numa referência para expôr arte, design e arquitectura, mas também num conceito moderno para habitar, trabalhar, conviver e consumir. O “novo paradigma do novo” foi reproduzido internacionalmente por academias, por ateliers, pelos media e hoje tudo engloba: do museu ao ginásio, da agência de viagens ao T0, à hamburgueria ou ao hospital. Na opinião pública alargada, referir espaços arquitectónicos tornou-se indissociável das imagens minimalistas de depuração moderna.
O white cube domina, negá-lo é causa perdida, mas tem sido contraproposto. Durante décadas, o ângulo recto, a pureza da superfície branca e a abstracção do contexto dominaram o pensamento espacial, passando uma velatura branca, ou um gesso cartonado, sobre as preexistências, as linguagens decorativas e as texturas do passado 2. O contraponto ao white cube expositivo não é a black box performativa. Embora em fundo negro, esta segue preceitos que se lhes assemelham: abstracção, separação do exterior, iluminação artificial, neutralidade. Contudo, as black boxes mantêm-se espaços culturais (concertos, dança, teatro), enquanto os white cubes se disseminaram muito além da galeria.
O white-cube trouxe exemplos extremos de abstracção formal e espacial, epitomizados no exemplo do New Museum de Nova Iorque (SANAA, 2007) cuja composição arquitectónica consiste num empilhamento literal de cubos brancos que conformam o edifício, definindo as fachadas exteriores e as salas interiores. Se, globalmente, ser modern(aç)o passou a envolver uma geometria pura e branca, o New Museum celebra e monumentaliza essa ideia: uma grande obra exponenciada por cubos empilhados.
A supremacia do branco implícita a este paradigma tem sido contraposta pela crítica à ideologia que ele implica, da qual se destacam os ensaios históricos de 1976 de Brian Doherty, publicados em livro 3 a par dos projectos artísticos e instalativos que, por vezes, chegaram mesmo a atacar os interiores dos edifícios.
Supremacia do white-cubismo
A casa/pavilhão Haus am Horn concebida pelo pintor e designer Georg Muche, nos jardins próximos da Bauhaus de Weimar, abriu em 1923 como pavilhão experimental para apresentar as obras dos professores e estudantes da Bauhaus — instituição que celebra este ano o seu centenário. Experimental como a Bauhaus, a casa manifestava o desejo de espaço, de luz, de materialidade e de tecnologia que correspondia ao imaginário e ao espírito da escola. Esta peça foi desenhada entre disciplinas — pintura e design —, sendo um manifesto arquitectónico moderno em que se antecipa a espacialidade que viria a disseminar-se durante décadas. Desde o início que a Bauhaus define o espaço moderno para exibir as obras modernas. Esta primeira experiência codifica e encapsula aquelas características que são hoje replicadas nos espaços de exposição em galerias e museus de arte: a sala central é branca e recta, tem luz natural zenital, pavimento sintético liso em que as texturas e as matérias se neutralizam pondo em evidência o espaço e os objectos expostos nas suas paredes e no centro da sala.
Arrisco afirmar que, numa lógica higienicista, estética e funcional, os códigos do white cube atingem a sua perfeição máxima em ambas zonas húmidas da Haus am Horn: o water closet (wc) e a cozinha. Ambas as zonas são assépticas na garantia de que qualquer corpo estranho e vestígio de uso do espaço possa ser removido através da limpeza. Ostentam ângulos rectos, superfícies modulares brancas e materiais sintéticos, uma austera ausência de decoração, elementos técnicos e funcionais à vista (iluminação, aquecimentos, torneiras). Zonas essas que, sendo utilitárias e concebidas para os corpos e as suas matérias, são também avessas à apropriação pelos corpos dos seus utilizadores, garantindo que qualquer mancha, sujidade ou imperfeição fique evidenciada e possa ser removida eficazmente. O princípio higienicista garante o destaque aos objectos colocados no espaço (advertida e inadvertidamente), aspecto fundamental ao conceito do white cube.
Quando a exposição temporária Cubism and Abstract Art 4 abre em 1936 no The Museum of Modern Art (MoMA), a galeria expositiva surge neutralizada. No MoMA, o white cube separa os objectos da vida, acentuando a separação das artes decorativas daquelas modernas, tanto na criação como na encenação. Através das fotografias da época — a preto e branco — as paredes de exposição surgem brancas, enquanto os objectos artísticos e de design se destacam nas paredes. O gesto moderno de neutralização do contexto e destaque do objecto é particularmente acentuado na exibição das cadeiras tubulares de Marcel Breuer, exibidas suspensas lateralmente na parede, como obras de arte tridimensionais, retirando-lhes o sentido funcional que porventura teriam num pavilhão como a Haus am Horn.
Também nos EUA, ainda no MoMA e já nos inícios da Segunda Guerra Mundial, expôs-se e divulgou-se internacionalmente a actividade artística e educativa da Bauhaus, já após o conflito com o regime nazi. A simbiose entre a galeria expositiva e os conteúdos da Bauhaus: 1919-1928 5, imortalizada nas fotografias a preto e branco que foram disseminadas pelos media, é um paradigma moderno em continuidade e interligação entre os pressupostos da exposição e aqueles do espaço expositivo. A arquitectura, os elementos industriais e técnicos da galerias e os conteúdos expositivos da Bauhaus: 1919-1928” surgem em grande coerência e ênfase do carácter moderno, técnico e novo. Paradoxalmente, este aparato expositivo moderno seria no futuro adoptado globalmente tanto em exposições permanentes como em temporárias, onde os conteúdos a exibir permanecem pouco tempo, perdendo-se quase sempre a coerência entre espaço e conteúdo. A globalização do white cube é um fenómeno que dominou a quase totalidade dos museus e galerias mundiais. Com raras e assumidas excepções, o fenómeno está disseminado tão globalmente que podemos chamar-lhe white-cubismo.
Enquanto o edifício do Guggenheim de Bilbao (Frank O. Gehry, 1998) apresenta formas, materiais e inserção urbana exuberantes, o seu interior é neutro, branco e asséptico. Exibe uma geometria complexa mas os seus interiores correspondem ao paradigma moderno (escondendo as suas entranhas técnicas no interior das paredes). Por exemplo The Matter of Time, a escultura de Richard Serra na exposição permanente, revela características contraditórias: a peça executada em aço corten, com uma escala gigante, é concebida por um autor que pensa o espaço público e remete para a indústria metalomecânica desaparecida na frente ribeirinha de Bilbao. Está, porém, instalada numa sala branca, com piso sintético e neutro, com luz zenital, onde a presença do objecto e dos corpos dos visitantes se destacam, perdendo, ante a abstracção, a escala e a relação com o contexto, dada a sua separação do exterior. O paradigma espacial do edifício, embora de composição e geometria complexas, reproduz os preceitos modernos.
Regressando ao exemplo do New Museum de Nova Iorque, embora este paradigma seja realmente global e ultrapasse o mundo ocidental, ali sublima-se a espacialidade interior, oferecendo uma inversão interior/exterior. Os cubos brancos exteriores criam uma fachada branca que é, por vezes, suporte para obras de arte exibidas à cidade, como os néons Hell, Yes! de Ugo Rondinone. Tal como refere Doherty, a propósito da relação entre objecto/contexto, As modernism gets older, context becomes content. In a peculiar reversal, the object introduced into the gallery “frames” the gallery and its laws 6. Se a galeria branca anula o contexto e isola os objectos artísticos da sua relação com a sociedade, o objecto artístico passa a definir o contexto e a redefinir as suas leis: o cubo tornara-se fachada e agora o néon exterior transforma-a numa parede de galeria, em complexos jogos conceptuais e de linguagem arquitectónico-artísticos, que se abeiram dos limites do white-cubismo.
Críticas à ideologia dentro do cubo
O paradigmático white cube serve diferentes interesses e propósitos. Mais comummente, a sua potência instrumental no mercado global é uma das críticas dirigidas à ideologia inerente ao white-cubismo, pois promove o apagamento do contexto social, político e económico em que o artista cria: The white-cube gallery also obscures and “neutralizes” the physical space immediately surrounding its walls, erasing the social and material life that precedes the artwork’s production and installation. 7 A sua proliferação está associada ao crescimento dos mercados de arte globais, galerias privadas e públicas, e museus. Evidenciando o objecto em si, proporciona fundo neutro e condições lumínicas perfeitas, ideais ao registo e reprodução em catálogo, revista e livro, logo, potenciando a mercantilização e o fetichismo do objecto.
A propósito das razões dessa sua ascensão e disseminação, de modo subtil, a crítica de arte Charlotte Clonk 8 levanta, num polémico artigo, que transcreve uma conversa a com Nikas Maak e Thomas Demand, uma possível afinidade entre a afirmação da estética espacial e a noção de higiene e pureza que vai crescendo ao longo dos anos 20 do século XX: The white cube has various roots which all finally come together in the 1930s in the Museum of Modern Art in New York. (...) The valorisation of white paint was also supported by the architectural discussion of the time, in which hygiene considerations played a role: dirt shows, of course, more easily on white walls than on other colours. Ilustrando o artigo, uma fotografia da comitiva nazi de visita à exposição de Arte Degenerada no Kunst Palast de Düsseldorf, em 1938, ligando o nacionalismo germânico do Partido Nazi à alvura das paredes. O artigo prossegue com uma questão colocada por Niklas Maak, When did white assert itself as the wall colour? Para Charlotte Klonk, In Germany, interestingly, this takes place during the Nazi period in the 1930s. In England and France white only becomes a dominant wall colour in museums after the Second World War, so one is almost tempted to speak of the white cube as a Nazi invention. At the same time, the Nazis also mobilised the traditional connotation of white as a colour of purity, but this played no role when the flexible white exhibition container became the default mode for displaying art in the museum.
Sendo a globalização do white-cube posterior à Segunda Guerra Mundial, após derrota da ideologia nazi, terá existido uma inegável afinidade entre a proposta higiénica e a ideologia política, sendo estes espaços uma criação moderna da Bauhaus que perdurou na Alemanha nazi mesmo depois do encerramento da escola.
Como vêem e interpretam os artistas esta ascensão do white-cube? O sistema artístico hegemónico aceita e reproduz as normas e a ideologia destes espaços globais que são, por isso, dominantes. Contudo, existe uma tradição crítica de artistas que desafiam os white-cubes expositivos com gestos performativos radicais, nalguns casos em operações de desconstrução da arquitectura. Desde logo, as intervenções na galeria White Columns em Nova Iorque, nos anos 1970, e as obras paradigmáticas de Gordon Matta-Clark, como Conical Intersect que, em 1975, atravessou em Paris um edifício em Beaubourg, próximo do futuro Centre Pompidou, são exemplificativas da desconstrução da arquitectura e do gesto performativo violento, por vezes com motosserras, enquanto crítica/alternativa ao sistema expositivo e galerístico tardo-moderno. A propósito deste último, é com ácida ironia que assistimos à evolução com que o vizinho Centre Pompidou abriria como centro expositivo flexível, orgânico e transparente, e, ao longo dos anos, se viria a compartimentar num circuito expositivo estático, subdividido em salas e corredores por paredes brancas que o transformaram num contentor de pequenos white-cubes. O labirinto branco parece ser fractal e não ter saída...
Para abordar a perspectiva artística, um conjunto de três instalações separadas por 15 anos, em dois continentes, revela a contínua reflexão política, social e espacial. Em 1993, Hans Haacke ocupa o pavilhão da Alemanha na 45.ª Bienal de Arte de Veneza e altera profundamente a leitura do pavilhão nacional, de arquitectura austera, simétrica e despojada, reconvertido pelo regime nazi em 1938. Questionando simultaneamente a noção de nacionalismo implícita às representações oficiais da Bienal e atacando a solenidade austera do seu espaço arquitectónico, Haacke inscreve na parede branca interior a palavra exibida na sua fachada, Germania, num momento em que a reunificação da Alemanha era um tema presente na sociedade, após a queda do muro de Berlim em 1989. Num acto violento, Haacke levanta e rompe todo o pavimento de mármore branco que reveste os interiores, deixando-o revolto e intransitável, como tumbas abandonadas. O pavilhão, recuperado fisicamente após essa bienal, nunca mais seria o mesmo, hoje ele também inclui a história desta intervenção.
Em Nova Iorque, em 2007, na Gavin Brown’s Enterprise, o artista Urs Fischer extraiu toneladas de pavimento de toda a galeria, camada por camada, revelando a terra, o seu enrocamento, as fundações do edifício, a camada de betonilha de forma e o pavimento interior. A intervenção chamou-se You, que simultaneously attacks and fetishizes the attributes of galleries 9 . A visita faz-se entrando na sala de exposição, para descobrir que o pavimento desapareceu, estando agora a porta de entrada a meia altura entre os tectos e o fundo do fosso escavado. O branco das paredes contrasta com o tom argiloso da terra e o castanho das pedras. Descendo ao fundo da “trincheira”, observam-se as paredes intactas da galeria branca e prístina, num contraste absoluto com esta ferida no pavimento e a abstracção minimalista dos espaços da arte.
Mike Nelson instala, em 2008, nas galerias da Hayward Gallery de Londres, a peça To the Memory of H. P. Lovecraft, inicialmente concebida em 1999. A exposição é colectiva e chama-se Psycho Buildings: Artists take on Architecture e não podia ser uma interpretação mais literal: o artista ataca as paredes brancas com objectos cortantes e perfuradores, extraindo lascas e deixando um lastro de destruição. Ao longo de todo o espaço há um rasto de destruição até determinada altura, cerca de 1,5 m, como se um grupo de animais selvagens o tivesse atacado. Por detrás vêem-se as estruturas de madeira e as camadas de contraplacado que criam uma perfeita simetria de white-cube branco dentro deste edifício, que é uma pérola do brutalismo inglês. O artista ataca as camadas de cenário branco e revela a arquitectura brutalista do edifício com os seus gestos, brutais eles mesmos. Após esta exposição, a Hayward entraria num processo de recuperação, em que voltaria a assumir o seu carácter brutalista original, domesticado com as décadas.
O mundo fora dos cubos
O funcionamento do mercado e o investimento económico desempenham papéis fulcrais nestas opções arquitectónicas e espaciais, bem como o posicionamento crítico e a afirmação de um posicionamento ético e estético face ao sistema. Num extremo, as feiras de arte, efémeras, montáveis e desmontáveis num curto calendário, adoptam a modularidade arquitectónica para o aluguer de superfície comercial e o pladur branco e alcatifas cinza para definir os stands galerísticos que, como vimos, tornam abstracto e genérico o contexto de apresentação da obra e são uma nova arquitectura efémera dentro de pavilhões existentes. No espectro oposto, os projectos culturais de iniciativas artísticas independentes, auto-organizadas e sem fins lucrativos, que encontram, apropriam e ocupam locais disponíveis, assumindo a rudeza e a imperfeição das preexistências com as quais os artistas se podem relacionar na criação e são apropriações de espaços existentes sem que (quase nunca) exista projecto arquitectónico. Um olhar sobre as motivações políticas e sociais destes projectos revela o seu posicionamento à margem, oferecendo verdadeiras alternativas, ou mesmo utopias.
De que modo a crítica ao sistema da arte e ao desenho dos espaços expositivos influencia a concepção de novos projectos arquitectónicos? Naturalmente a resposta a esta questão não pode ser directa, o sistema de encomenda e construção de espaços culturais, galerísticos e museológicos é relativamente independente daquele da crítica cultural e da reflexão artística, ainda que o sistema seja complexo e tenha diversos intervenientes, dos coleccionadores e galeristas privados às fundações e aos representantes dos Estados. Importa voltar a sublinhar a crescente radicalização dos white cubes, o exemplo da White Cube Gallery Bermondsey, em Londres, desenhada por Casper Mueller Kneer architects em 2011, corporiza o conceito espacial que dá nome à galeria na perfeita união entre conceito espacial, designação do local e o sistema comercial da arte — uma composição de cubos compostos modularmente, pavimento brilhante e iluminação intensa, transforma o interior de uns antigos armazéns num racional tetris espacial cujo organigrama funcional corresponde à exibição, armazenamento e comércio.
Após quase um século de afirmação e depuração do white cube expositivo moderno, prossegue-se agora com a reconversão e transformação de edifícios existentes, e não com a criação do “novo”. As ideias e as transformações culturais induzidas pela produção simbólica da arte contemporânea (e por alguma produção material) influenciam o desejo por espaço expositivo e pela orgânica organizacional que, por sua vez, devem influenciar os projectos de arquitectura. O Palais de Tokyo, dirigido desde 1999 por Nicolas Bourriaud e Jérôme Sans, desenhado pela dupla Lacaton&Vassal, tornou-se num paradigma de como responder àqueles desejos de espaço expositivo mais próximo dos espaços de criação onde a arte pode intervir, distanciando-se do espaço moderno. Simultaneamente ocupa um edifício histórico adaptado a centro cultural contemporâneo, que inaugurou com uma arquitectura crua e rude, posteriormente adoçada e domesticada pela sucessão de exposições, revelando que o diálogo entre arquitectos e directores artísticos resultou numa proposta espacial perfeita para a programação contemporânea.
Com quase 20 anos, o Palais de Tokyo, é paradigmático na definição de espaço expositivo institucional concebido na relação entre as ideias da direcção artística, a intervenção dos arquitectos e o diálogo com as (potentes) preexistências. Embora o Palais de Tokyo não seja o pioneiro, pois três décadas de iniciativas “fora do cubo” o antecedem, é ali em Paris que se afirma uma nova abordagem ao espaço expositivo institucional para um “outro” tipo de espaços expositivos 10 que assumem as preexistências a par do exercício de desenho arquitectónico autoral.
Hoje, a potência do hangar industrial tornou-se no novo paradigma de espaço cultural, seja museológico ou galerístico 11. Importa esclarecer desde já que a espacialidade adoptada dos hangars não significa que estes não se tornem white-cubes. É necessário referir os fenómenos artístico-culturais — ou inicialmente de contracultura, embora uma ontologia seja impossível, e desnecessária, dado o carácter independente, informal e, na maioria dos casos, a contingência inerente ao seu próprio início. Nos espaços “fora do cubo” as sucessivas apropriações e ocupações vieram influenciar uma profunda transformação da espacialidade para a arte contemporânea, seja nos estúdios de artistas — pensemos nas Factory de Warhol, ou no loft de Judd —, seja nos espaços expositivos — como o Magasin de Grenoble, seja as zonas orientais das cidades — como abordámos no J—A #257 12. As dimensões e volumetria, a presença de elementos preexistentes, o acesso a grandes volumes e infra-estruturas de grande cubicagem determinam novas possibilidades à criação e à exibição, a par de enormes desafios à gestão e manutenção dos gigantes espaços, concebidos para a actividade industrial, que lhes incute um estado “em processo”.
Porém, em muitos casos, a acomodação de hangars a museus e galerias expositivas segue os meus preceitos modernos da galeria branca, através de pladurs e de processos de anulamento do traços e das preexistências. Por isso, se este ensaio poderia ser dedicado ao paradigma espacial do hangar enquanto espaço expositivo, considerando que os hangars estão também a ser esbranquiçados, creio que se justifica dar um passo mais além, e ensaiar uma proposta de leitura estratégica para intervenção sobre o espaço expositivo.
Brown rooms/grey halls: uma proposta
Pretendo focar aquele que acredito ser o embrião de uma linhagem de concepção espacial que abraça o espaço aquém e além das “preexistências” arquitectónicas — sejam históricas ou industriais. Olhemos as diversas camadas dos edifícios históricos. Esta proposta de leitura é também uma viragem na intervenção para a articulação entre a proposta/leitura arquitectónica (efémero ou permanente), a qualidade e intensidade das preexistências (das quais parte o projecto) e uma curadoria do espaço que produz sentido também partindo dessas preexistências. Dialogando com o hegemónico cubo branco, consideramos também o grey, o brown, e todas as gamas de “tons” intermédios que habitam os lugares, quartos e hangars, seja física ou simbolicamente.
Os brown rooms/grey halls são a minha proposta de designação de uma estratégia de leitura e intervenção no espaço 13, que assume os espaços imperfeitos, com presenças e ausências que significam. Pesquisando e intervindo em diversos locais que se tornaram espaços expositivos efémeros — tantos históricos como industriais —, faço uma proposta teórica: brown rooms/grey halls para auscultação e inserção na preexistência de um novo espaço físico expositivo. Olhemos os espaços físicos que se fazem presentes através de uma intensa materialidade que se manifesta nas camadas acumuladas, no escurecimento pelo tempo e nas histórias reais e imaginárias que incorporam. Vê-los é também ouvir as histórias sobre eles, são materiais e imateriais.
Por oposição à abstracção dos designados espaços white cube generalizados na exposição de arte contemporânea, vazios e esteticizados nas fotografias de arquitectura, o brown room/grey hall é um espaço com presenças, uma figura de não-neutralidade narrativa com a qual a exposição/o exposto estabelece diálogos. Salas antigas, históricas, abandonadas, acidentadas, hangars industriais desocupados e inactivos, arquitecturas toscas, de betão ou decadentes são espaços plasticamente férteis e socialmente carregados de histórias que se prontificam a ressoar no espaço. Questões como a performatividade do espaço, a activação dos sentidos ou a temporalidade, sejam as marcas da passagem do tempo ou as das apropriações efémeras, são potenciadas pelas suas qualidade “não-convencionais”.
Os brown rooms/grey halls são, por isso, o inverso de um receptor neutro convencionado pelos cubos e caixas abstractas, sejam brancas ou negras.
Um novo brown room para os ourives
O novíssimo Goldsmiths Contemporary Art Center, inaugurado em Setembro de 2018 no Sul de Londres dentro do recinto do Goldsmiths College, afirma através da sua arquitectura, com rasgo contemporâneo, um posicionamento perante o que deve ser hoje um espaço expositivo. O projecto pode ser lido como um manifesto, pois a nova galeria expõe e representa a visão que o College escolheu para apresentar publicamente os artistas convidados e os artistas aí formados. Desde logo, o “novo” edifício é um contraponto interessante quando em diálogo com o primeiro caso aqui referido, a casa/pavilhão Haus am Horn de 1923, em Wiemar. O primeiro white cube expositivo é uma contra-imagem do novo Art Center, de pequena escala, mas que reconverte e assume uma arquitectura preexistente, quase anulando a linguagem dos novos autores e da nova intervenção.
Quase um século após o parente alemão, o Goldsmiths Contemporary Art Center corporiza e afirma princípios relevantes a um paradigma espacial para a exibição artística no século XXI. Ora, o Goldsmiths College é uma referência internacional no panorama artístico, os seus programas assentam numa certa radicalidade política, estética e institucional, tanto no ensino como na pesquisa artística e das humanidades, cruzando disciplinas e criando novos departamentos e áreas inovadoras — dos estudos pós-coloniais, de género e queer, ao som, estudos urbanos e activismo social. Ali surgiu a young british generation, que ocupou espaços industriais no Sul de Londres, nas Docklands, para expôr os seus trabalhos artísticos — como na exposição Freeze, 1989 — marcando a visualidade internacional desde então. Também no Goldsmiths está instalado o grupo Research Architectura, conhecido pelo Forensic Architecture — finalista do Turner Prize 2018 —, um centro de pesquisa e criação interdisciplinar que entende a arquitectura na sua implicação com as humanidades e a tecnologia.
O Goldsmiths Contemporary Art Center resulta de um concurso público lançado para transformar o intrincado edifício técnico dos banhos públicos — sob sua tutela e abandonado — num novo local de exibição artística. O vencedor do concurso foi Assemble, um colectivo de artistas e arquitectos vencedor do Turner Prize 2015. A escolha do jovem colectivo interdisciplinar representa uma decisão simbólica, especialmente considerando a delicada tarefa em causa.
Dada a complexidade espacial do conjunto preexistente e a proposta vencedora, o projecto arquitectónico pode ser explanado em corte e nas simples maquetes analógicas que, abrindo em secção, expressam ludicamente os percursos, atravessamentos e o intrincado interior do “novo” edifício. Uma sucessão orgânica de salas, infra-estruturas, tanques, escadas e paredes ostentam texturas enferrujadas e diversos materiais antigos que revelam as ocupações anteriores. Dando-lhes estrutura, são percorridas por corredores e átrios que rasgam entradas e vãos sobre os espaços expositivos, que são conformados nas mais diversas geometrias e composições dentro das salas existentes.
O branco nos corredores contrasta com as texturas e cores das preexistências. Algures na escada principal pode-se espreitar pelo grande janelão que divide o centro de arte dos estúdios dos artistas, que organicamente ocupam o interior da antiga piscina desactivada. Criação e exibição justapostas lado a lado, entre a piscina e os tanques de água.
A sala principal do centro de exposições é o antigo tanque de água metálico, enferrujado pelo uso, que surge agora envernizado ostentando a patine, a materialidade e as horas de escorrência de água que acumulou. Junto à cobertura entra luz natural, que abre ao céu este opaco tanque. Na exposição inaugural, uma instalação deixava pingar do tecto gotas de água sobre placas eléctricas dispostas no chão, ligadas na temperatura máxima, que levavam a água a evaporar de imediato. Com esta peça artística, sobre o gasto e o desperdício, criou-se a continuidade perfeita entre o tanque histórico desactivado e a água evaporada perante os olhos do visitante. A relação entre arquitectura, história e instalação artística revela a potência dos brown rooms/grey halls.
Pensar o futuro do século XXI tem levado a duas vias mais ou menos escapistas 14, a utópica e a distópica, progressista uma, crítica e, algumas vezes, apocalíptica a outra. Quando olhamos ao espaço expositivo moderno, a historiografia do projecto e do desenho arquitectónico permitem abordar aspectos parciais, numa visão de progresso, à qual a crítica artística e ideológica acrescentam maior complexidade — a crítica vem quase sempre de fora. A supremacia do paradigma cúbico corresponde à utopia do progresso, da higienização, do controlo e ordenação e da abstracção do mundo exterior — porventura levando a ideias distópicas. Através da crítica dessas ideias, uma via porventura mais experimental e fragmentada, mas também mais aventureira, vemos surgir o exterior, o político, o social, e a parcialidade do posicionamento dominante — ou a falência de um modelo hiper-moderno de espaço, de sociedade e de futuro. Diversos exemplos de espaços expositivos que correspondem à ideia de brown rooms/grey halls e assumem a materialidade, a história e uma certa contingência que contrapropõem a ideia moderna e progressista do “novo”; tenho-os procurado em contextos pós-industriais 15. O recente Goldsmiths Center for Contemporary Art é um projecto experimental e labiríntico, um ensaio que afirma uma ideia de escola e de criação artística que fica demonstrada na sua arquitectura, tal como no paradigmático pavilhão de 1923. Penso que pode ser chamado de brown rooms/grey halls, ambos — edifício e conceito — são ensaios e ideias em crescimento. ◊