OPINIÃO
Ferramentas para a arquitectura na 4.ª revolução industrial
Arquitecta e Editora
© 18—25 Studio
VR is one of the scientific, philosophical, and technological frontiers of our era. It is a means for creating comprehensive illusions that you're in a different place, perhaps a fantastical, alien environment, perhaps with a body that is far from human. And yet it's also the farthest-reaching apparatus for researching what a human being is in terms of cognition and perception.
Jaron Lanier 1
Pensar e desenhar arquitectura nesta 4.ª revolução industrial em que hoje vivemos implica uma atitude multidisciplinar, assentindo contaminações vindas de outras áreas, como a indústria militar ou a ficção científica 2. Se de um lado herdamos utopias urbanas e especulações tecnológicas, do outro emerge um mundo de experiências financiadas, que permitem o avanço de novas tecnologias que podem ter outro propósito que não a sua utilização em contextos de guerra... Da clássica perspectiva militar napoleónica às visualizações em realidade aumentada de Minority Report 3, muitas destas experiências podem hoje ser usadas na (ou transpostas para a) arquitectura.
Mas o que significa, no âmbito da arquitectura, no processo de projecto e na representação, estarmos na 4.ª revolução industrial?
Entre o final do século XVIII e inícios do XIX dá-se a 1.ª revolução industrial, transitando-se da manufactura para a introdução de maquinaria na fabricação de produtos em modo serial, marcada pela invenção da máquina a vapor e utilização do carvão como combustível. Na sua sequência, a 2.ª revolução industrial foi um aperfeiçoamento da anterior: as indústrias cresceram e multiplicaram-se, massificou-se a produção em linhas de montagem, desenvolveu-se o motor de combustão e elegeu-se o petróleo como combustível, introduziu-se a fabricação do aço, generalizou-se a fabricação e utilização dos polímeros, houve grande desenvolvimento na engenharia eléctrica, electrificaram-se as cidades e as vidas. A urbanidade teve grande crescimento, construíram-se fábricas e habitações, incrementou-se a mobilidade e as telecomunicações, foram produzidos em série novos materiais, nasceram estruturas em aço e em betão armado. A 3.ª revolução industrial, também conhecida por revolução digital, é a adopção da electrónica digital em substituição das tecnologias mecânicas e analógicas. Com início em meados do século passado, introduziu o computador como ferramenta de cálculo e a robotização na produção. A rapidez de cálculo e as novas máquinas adoptadas nas mais diversas áreas operacionais vieram acelerar todos os processos produtivos.
Hoje, na 4.ª revolução industrial, os sistemas digitais estão generalizados e entramos na era pós-digital, onde se fundem os universos digital e analógico. Metade da população mundial acede à internet e dois terços está conectada por telemóvel.
Cada vez mais somos seres digitais: através de um dispositivo digital temos acesso a tudo e a todos, sem sairmos do mesmo sítio; os nossos arquivos transformaram-se em milhares de dígitos binários; as redes sociais são o novo espaço público comunicante, o nosso espelho, e parecem cada vez mais direccionar as nossas escolhas; o mundo que nos rodeia começou a ter a “curadoria” de algoritmos que triam a informação, filtrando o que vemos e aquilo a que temos acesso. O mundo digital comanda as nossas vidas e sem ele parece termos perdido a nossa operacionalidade.
Surgidos durante a 3.ª revolução industrial, os sistemas CAD (Computer Aided Design) e o BIM (Building Information Modelling) são resultados do cruzamento da arquitectura com o mundo digital. O uso destas ferramentas veio transformar os meios de produção na área da arquitectura e da construção 4, trazendo à discussão conceitos e preconceitos sobre o impacto que teriam na própria concepção arquitectónica. No contexto português, se o CAD é já unanimemente aceite no meio profissional, há ainda quem questione a utilidade do BIM ou até a validade intelectual da arquitectura paramétrica.
No entanto CAD e BIM são hoje, indiscutivelmente, as ferramentas que permitem a optimização da performatividade do processo de projecto. Do BIM 1.0, enquanto mera visualização e representação gráfica de uma edificação, passámos ao BIM 2.0, fazendo a análise dessa edificação, para hoje se implementar o BIM 3.0, onde se simula a própria edificação 5.
É justamente nesta fase de simulação da obra projectada, numa construção virtual em escala real, que surgem novas ferramentas e tecnologias que transformam a metodologia projectual e optimizam a construção e, num futuro próximo, transformarão a própria arquitectura.
Realidade Aumentada — AR
A AR (Augmented Reality) permite colocar um layer de informação sobre a realidade, através de dispositivos de visualização — smartphones, tablets, óculos, etc. Essa informação pode ser seleccionada pelo indivíduo ou para o indivíduo, através de algoritmos de inteligência artificial (AI). Tem já uso na medicina, por exemplo na simulação de cirurgias, ou na engenharia mecânica, no auxílio à montagem de peças complexas de motores ou outros sistemas mecânicos. A sua utilização na arquitectura ainda não se generalizou mas abre a possibilidade da sobreposição de informação — textos, desenhos bi ou tridimensionais, imagens, animações ou vídeos — em maquetes ou espaços reais onde vão ser realizadas intervenções. Permite, por exemplo, comparar um estado anterior com a actualidade e até um futuro previsto. O mercado já disponibiliza algumas aplicações para iOS/Android que permitem sobrepor modelos 3D ao espaço físico, como a ARki, ou vizualizar peças de mobiliário colocadas no espaço, como a Ikea Place.
Gilles Retsin, arquitecto sediado em Londres, apresentou Real Virtuality na exposição Invisible Landscapes, na Royal Academy of Arts (2 de Fevereiro a 1 de Abril 2019), uma estrutura modular que foi montada usando AR: as indicações de construção, ordem e método, foram sendo sobrepostas ao espaço real como se se tratasse de uma maquete 1:1. A uma escala mais alargada, esta pode ser uma nova técnica a adoptar na indústria da construção civil, dotando os operários de dispositivos de visualização AR.
Realidade Virtual — VR
Com origem no universo dos videojogos, a tecnologia VR (Virtual Reality) foi hoje tomada pela arquitectura como uma nova ferramenta de trabalho e de comunicação de um projecto. Introduz uma simulação total de um ambiente ou uma nova realidade espacial, criando no utilizador a ilusão de presença física no espaço. Nesse ambiente, o utilizador — que poderá ser o arquitecto, outro projectista ou mesmo o cliente/promotor — é envolvido por um espaço virtual — a digitalização de um espaço já existente ou uma projecção do que irá ser construído — percepcionado através de um dispositivo óptico de visão estereoscópica (que pode variar em termos de graus de liberdade de movimentação do utilizador segundo três ou seis eixos — três eixos de rotação que se podem combinar com os três eixos de posição) como uma experiência real da vivência espacial e por isso imersiva. O espaço deixou de ser uma mera projecção para ser percebido pelo cérebro como real. Outras tecnologias complementares ajudam a essa imersão: dispositivos áudio sensíveis à orientação do utilizador, câmaras ajustáveis segundo a sua altura ou efeitos de paralaxe com base nos seus movimentos. Há já também diversos softwares que permitem desenhar apontamentos, modelar ou até mesmo aplicar materiais no espaço virtual.
Hoje, esta é a tecnologia que oferece a representação mais fiel à realidade, permite a adequação da relação ergonómica, em termos de escala e proporção, e experimentação de luz e materiais — senão uma nova realidade.
A VR introduz também uma importante mudança no processo de projectar. Uma vez que o espaço virtual é partilhado pelos vários projectistas, e até com o cliente, na mesma sala ou em localizações completamente diferentes, traz uma nova dinâmica no desenvolvimento colaborativo do projecto. Como ferramenta de ensino, traz a possibilidade de experimentação da espacialidade de um projecto académico, que outrora dificilmente veria a sua realização numa escala 1:1, de modo rápido e parcimonioso em custos e materiais.
No início de 2019 foi lançado no mercado um dispositivo óptico estereoscópico que já possibilita a conjugação das três realidades — os layers virtuais AR e VR sobrepõem-se ao espaço físico real, numa coexistência espácio-temporal (Mixed Reality — MR).
Drones
Estes apetrechos, pequenos robots voadores também conhecidos por UAV –unmanned aerial vehicle, surgiram no universo militar, no qual tinham uma utilização reservada, custosa e controlada. Nos últimos anos houve uma banalização do seu uso e hoje até podemos comprar um drone numa loja de brinquedos.
Equipados com câmaras, trouxeram à visualização de arquitectura um acesso a novas perspectivas para os locais de projectos e das obras e qualquer atelier pode hoje aceder à fotografia e videografia aéreas. Facilitaram-se os levantamentos de locais de construção, a digitalização de locais complexos, ou estruturas, por nuvens de pontos (que podem ser visualizadas em VR), a prospecção em locais de difícil acesso que poriam em causa a segurança de um humano, de modo rápido e eficiente.
A vista aérea introduz na arquitectura uma nova fachada visível, a cobertura vai com certeza deixar de ser um mero elemento técnico para passar a ser uma nova fachada de desenho cuidado, senão um novo portal de ingresso às edificações, quando o drone se difundir como meio de transporte. A arquitectura terá de responder à funcionalidade destas máquinas 6.
Como qualquer outro robot, os drones são exímios na execução de tarefas no processo construtivo, com a vantagem de serem aéreos: transporte de material de construção; realização de trabalho pesado ou complexo; montagem de estruturas tensionadas; pulverizações por spray; acções de recolha/colocação de peças; etc.
Neste âmbito, onde os trabalhos experimentais se têm multiplicado, é exemplo a pesquisa de Gramazio Kohler Research, em 2015, com pequenas máquinas voadoras usadas na construção de estruturas leves tensionadas; ou a pintura complexa de fachadas com o sistema Paint by Drone desenvolvido por Carlo Ratti em 2017 ou ainda os drones que executam pulverizações de argila sobre abrigos de terra para zonas de emergência, de Stephanie Chaltiel, em 2018. As simulações disponibilizadas pelos novos suportes e tecnologias significam, pela primeira vez na história da representação arquitectónica, a possibilidade de ter um projecto, de modo integral, passível de experimentação na escala 1:1 (em lugar da construção de uma maquete/protótipo à escala real).
Perante as transformações que a robótica — universo ao qual pertencem os drones — pode vir a trazer na quotidianidade futura, novas questões se podem colocar ao arquétipo da edificação, à construção e ao planeamento urbano. Um espaço aéreo povoado de objectos voadores, de transporte de pessoas ou bens, vem transformar as vias e infra-estruturas comunicantes e de circulação urbana, alterar a localização dos acesso às edificações e coloca também uma nova questão, a da privacidade 7.
Se no início se pôs em causa a utilidade destas tecnologias no âmbito da arquitectura — pelo distanciamento da realidade que a VR nos incute, ao introduzir-nos num ambiente virtual, ou a utilidade da AR, que pode ser um filtro condicionante e nocivo/enganador na apreensão do real — hoje está provado que elas vieram para ficar e que podem ter, num futuro próximo, um uso generalizado de consequências disruptivas, tal como aconteceu com a internet.
A complementaridade das novas realidades, virtual e aumentada, vem questionar a realidade física, como a conhecíamos, e tornar ténue a fronteira do que é real e ficcional na maneira como interagimos com o que nos rodeia.
Como é óbvio e válido perante todos os sistemas tecnológicos, há que não perder o sentido crítico. Se um mero percurso indicado no GPS pode conduzir à transgressão das normas instauradas na “realidade”, por falha na sua actualização, ou um jogo como o Pokémon Go levar a incidentes, só a avaliação humana poderá ser soberana na escolha final. ◊