ENTREVISTA
Conversa com
Alexandre Alves Costa
Arquitecto, Doutorando (FAUP)
Maio 2016
Escreveu extensamente sobre a existência de uma arquitectura portuguesa. Ainda faz sentido colocar essa questão nos dias de hoje? Não será um acto retrógrado para esconjurar a globalização ou, pelo contrário, é a única forma de nos salvarmos da «dissolução da espiral» de que fala a Agustina?
Às vezes acho que vale a pena continuar a pensar sobre isso nos tempos contemporâneos, outras vezes penso que – com as alterações civilizacionais, a sociedade da informação, a circulação de ideias e meios – já não faz sentido. Oscilo entre estes dois extremos.
Claro que estou sempre a tender para a minha própria história que é a de tentar encontrar uma identidade para a arquitectura portuguesa. Essa vontade, quase ideológica, recoloca-me na tradição do meu próprio pensamento. Mas tenho dúvidas, ainda para mais com a internacionalização que a arquitectura portuguesa sofreu.
Será que a expressão dos arquitectos portugueses lá fora tem alguma especificidade? Penso claramente que não. Há, sim, uma leitura da sua intervenção, em cada sítio, que se prende com uma clara vontade de identificação com aquele contexto particular. Aliás, como diz Fernando Pessoa, «um português que é só português não é português». E acrescento o que eu próprio escrevi «o Siza é holandês quando está na Holanda, é alemão quando está em Berlim.»
Em certo sentido isso leva-me a pensar que os portugueses continuam a ter uma capacidade de interpretação da cultura local e do seu sistema produtivo que lhes permite elaborar propostas apropriadas a qualquer parte do mundo onde exerçam a sua profissão.
O Teatro de Carrilho da Graça, em Poitiers, o que é que tem de português? Nada. O que provavelmente representa é uma particular capacidade de compreensão e identificação do lugar onde se insere, o que me parece uma característica bastante nossa.
É algo que advém, talvez, da nossa pequenez. Os ingleses não têm necessidade de se identificar seja com quem for porque são, eles próprios, produtores. E os centros de produção transportam-se a si próprios sem necessidade de adaptação. Nós, pelo contrário, temos que nos ir adaptando, porque somos receptores: de ideias, de debates ou de discussões que se processam lá fora.
O Frampton começou a dizer que a nossa universalidade advém da nossa capacidade de relação intensa e autêntica com o nosso lugar. Eu não concordo. Prefiro o pensamento mais actual, por exemplo do Nuno Grande, que denominou a exposição de arquitectura portuguesa, em Paris, como “Les Universalistes”. Os portugueses conhecem muito bem a produção dos grandes centros e têm, isso sim, uma enorme capacidade de adaptação desse conhecimento às condições específicas da nossa realidade. O que provavelmente também acontece na Lituânia ou na Estónia e em outros sítios que não me interessam tanto.
De que forma?
Os arquitectos portugueses nunca foram ignorantes em relação ao que se passava nos grandes centros produtores e a prova é que durante o Renascimento, ou imediatamente a seguir, fizeram arquitectura corrente, neutra e anti-clássica, como era o desejo do comitente. No entanto, quando tinham um cliente especial que lhes encomendava uma obra especial, demonstraram a sua capacidade de projectar com tanta qualidade e erudição quanto a dos arquitectos dos grandes centros.
Essa capacidade foi, assim, utilizada em função da realidade portuguesa, dos seus sistemas de produção, da capacidade de financiamento, e até de pressões de tipo ideológico ou político. A verdade é que quando importavam um estilo – e isso é muito claro desde a entrada em Portugal do Românico ou outro qualquer – os arquitectos adaptavam-no para que fosse realizável em Portugal. Portanto os modelos sofreram um processo de simplificação, a nível construtivo, decorativo e espacial. E este processo acabou por constituir-se como um gosto, assumindo, portanto, também razões formais.
Para além disso, Portugal a partir das necessidades de consolidação do Império vai exportar a sua arquitectura para os novos territórios, como imagem do seu próprio poder. Há, pois, uma convergência, de ordem económica, política, ideológica, de capacidade profissional, no desenvolvimento daquele processo de simplificação que acabou por se constituir como uma, entre outras, invariantes da arquitectura portuguesa.
Tem sido difícil determiná-las porque o próprio exercício da arquitectura portuguesa é muito contraditório do ponto de vista das linguagens. Há leituras e visões completamente diferentes. Se compararmos o que se faz no tempo de D. Afonso V, uma espécie de estilo Chão, sem nenhuma decoração, com o que se passa no reinado de D. Manuel I, em que as questões da representação ou comunicação quase literária de conteúdos são fundamentais, o que encontramos de semelhante? Eu tenho a presunção de ter encontrado: retirando-lhe a decoração significante, o edifício aparece-nos na sua maior simplicidade formal e construtiva.
Tudo o que referimos converge com o estado de pobreza e as dificuldades que se viveram quase permanentemente no país. E que constituíram travões à inovação. A experimentação precisa de quem a pague e nunca tivemos dinheiro (ou até vontade) para isso. Neste sentido, uma solução que funcione bem, repete-se porque está garantido o seu sucesso funcional, construtivo e até formal. Há uma espécie de perenidade nesta espécie de síntese final que leva a que na arquitectura portuguesa exista uma grande continuidade sem rupturas de fundo. Transpor este pensamento metodológico para a contemporaneidade é complicado, embora estimulante.
É a arquitectura portuguesa como “uma espécie de arte da resposta”.
É sempre uma arte da resposta e, salvo alguns casos especiais que transportaram assumidamente a ideologia para o interior do exercício profissional – gente ligada ao Movimento Moderno, os neo-Realistas, se é que os houve, ou o SAAL –, os arquitectos são normalmente neutros ao longo da sua história. Como costumo dizer, não conheço nenhum arquitecto que tenha sido queimado pela inquisição. Demonstraram, sempre, uma capacidade enorme de adaptação à realidade, estivessem de acordo com ela ou não.
E como transporta essa leitura de continuidade para o momento presente?
Como funcionam neste momento os arquitectos portugueses? Tão apaixonados pelas visões do mundo mais desenvolvido... provavelmente mais pequeno-burgueses que os nossos mestres-pedreiros, mais novos ricos, mais ansiosos por virem nas revistas do que Diogo ou Francisco de Arruda...
Para responder a isto tenho que considerar a obra de Álvaro Siza. Ele próprio é um centro de inovação, totalmente liberto das questões de representação pessoal, do estrelato, da vontade de vir nas revistas e figurar nas exposições. A felicidade dele não é fazer tão bem como lá fora, mas fazer o que lhe é próprio. Ele diz sempre que é conservador, tradicionalista, por gostar de manter as coisas que são boas. A palavra conservador tem uma conotação negativa, mas ele usa-a positivamente, no sentido do reencontro de uma continuidade. Tal como em Távora.
Porém, há uma tendência mais recente na arquitectura portuguesa para se assumir uma linguagem mais internacional, estabelecendo conscientemente uma ruptura com a tradição, com a memória, e encontrar uma relação directa com o universal. Talvez porque os meios de produção também tendem a aproximar-se.
Estamos numa mudança de paradigma e ainda não tenho elementos suficientes para arrumar as ideias nem veleidades de ter uma interpretação séria sobre isso. Costumo dizer, provocatoriamente, que estamos entre a respiração vital do Vale do Ave e o “star system” e nem um nem o outro destes extremos ajudam a construir a harmonia que vai estando desfeita no nosso território nacional.
Onde é que identifica essa ruptura, onde é que já não encontra o dito ar de família?
Sem considerar moralisticamente que a ruptura é um mal em si própria, penso sempre no Eduardo Souto de Moura, pelo rigor e pela coerência do seu pensamento. Ele é um internacionalista que rompe conscientemente com a História (diz ele...como se isso fosse possível...). Espero que não se pense que a palavra ou o conceito de “internacionalista” tenha, para mim, alguma coisa de pejorativo. O que ele faz, faz bem. Lembro uma história que se passou quando o Eduardo trocou impressões sobre a sua obra das Bernardas, em Tavira, com o Professor Horta Correia, que lhe enviou alguns elementos sobre a história do edifício. Numa carta que me escreveu dizia-me: Eu sei que ele vai dar cabo de tudo, mas também sei que vai ficar muito bem.
Agora quando penso na Escola do Porto e nas novas gerações que se seguem à consistência da obra do Eduardo, isso retira-me alguma paz e sossego. Porque tenho muito medo destas identificações formais, que não me parecem opções profundas, estruturais, mas antes de natureza epidérmica. Mas é muito interessante e muito comovente, ver como esta geração que rompe, de facto, com qualquer tentativa de continuidade é simultaneamente uma geração muito respeitadora da Escola do Porto, tentando evitar, como é tradição na classe dos arquitectos, os cortes geracionais, como andam por aí a propagar aqueles que eu chamo de novíssimos e que ainda não deram provas construídas.
Mas a leitura identitária não é uma construção?
A minha leitura, como todas as leituras identitárias, é inventada. Ou construída. Tem sempre um fundo de verdade, mas eu digo: se calhar o contrário também é verdade, mas não me interessa! Eu quero é forçar esta parte, com a qual estou comprometido, política e, ideologicamente.
De resto – e longe de mim estar a comparar-me – acho que é o que faz o Eduardo Lourenço ou, então, o Teixeira de Pascoaes que dizia: “se não sabem ser portugueses, há uma disciplina nova que se pode criar nos liceus para ensinar a ser português: ensinar aquilo que queremos que as pessoas sejam”. Estas teorias da identidade são tão forjadas como o milagre de Ourique. Já que as tiveram de inventar para justificar a Nação, porque é que eu não hei-de continuar nessa onda, se eu quero que a Nação continue?
O que eu não sei é se quero que a Nação continue ou que a Nação se desfaça em nações com outras identidades... Isso ajudaria, talvez, a esclarecer alguns aspetos, já que a nossa identidade como Nação, como diz José Mattoso, é uma construção política. É deste jogo intelectual que eu gosto e que me interessa cada vez mais, talvez por estar fora de moda. E gosto até de a discutir com esta novíssima geração que a considera uma questão totalmente desinteressante.
Mas tudo o que disse são mais dúvidas do que certezas. Sei que continuarei a tentar construir este projecto, e não é, como diria Eduardo Lourenço, por “benfiquismo patriótico”, mas por achar que vale a pena, por questões, diria, de subsistência, manter esta discussão viva. ◊